IV

As Origens do Ódio a Si Mesmo

Como pais pouco carinhosos criam crianças que se odeiam a si mesmas

Um facto central da primeira infância é que os bebés que vêm a este mundo estão inteiramente à mercê de outrem. Não têm força, inteligência ou préstimo inatos; não podem lutar nem queixar-se, retirar-se ou defender a sua posição; a sua sobrevivência depende unicamente da capacidade de olhar dos seus berços com aqueles olhos enormes, inocentes e lindos e encantar os pais para que cuidem deles. É esse poder que têm de atrair amor que garante que sejam alimentados e vestidos, protegidos e assegurada a sua sobrevivência.

Em troca desses cuidados, as crianças mais pequenas oferecem prontamente a pais ou cuidadores a sua admiração incondicional. Adoram e deixam-se impressionar sem reservas por quem lhes pega ao colo e dá banho, por quem aquece o leitinho ou lhes muda as fraldas. Sentem um verdadeiro assombro por essas pessoas gigantes que sabem ligar uma máquina de lavar roupa e pontapear uma bola por sobre as copas das árvores. Nesta fase, não têm nenhum desejo inato de questionar ou duvidar de figuras de autoridade.

Dado o que está em jogo, segue-se que as crianças mais pequenas são instintivamente sensíveis à sua própria competência para manter esses protetores que admiram como aliados. Quando sentem que são amadas, podem sossegar e tratar das inúmeras outras prioridades imediatas da primeira infância: perceber como se abre uma gaveta, descobrir o que é uma tomada elétrica, o que são as palavras e como gozar a vida.

Mas se o amor for um bem escasso, o quadro fica mais complicado. Há infâncias em que, por uma diversidade de razões, os pais se sentem menos encantados do que deveriam. Deixam o bebé a chorar, gritam um com o outro, talvez haja violência e histeria, desespero letárgico e terror. A criança sabe instintivamente que está em grave risco; se a situação não for corrigida de alguma maneira, no limite ainda pode ser abandonada à morte numa encosta qualquer.

Nesse caso, a nossa biologia desencadeia um processo sombrio, porém lógico. A criança começa a esforçar-se muito mais. Redobra os esforços para encantar, para ser boa, para fazer o que se poderia esperar dela, para sorrir e se fazer estimar. E começa a pensar o que estará errado com ela que explique a desaprovação e os maus-tratos dos pais, e não vê outra solução senão procurar as respostas no seu próprio carácter e comportamento.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Simultaneamente, a criança resiste ao que a alguns poderia parecer o comportamento óbvio: irritar-se e culpar os adultos que a rodeiam e não tratam dela como deviam. Uma ideia tão ousada é estranha aos anos indefesos da primeira infância. Nenhum bebé está em posição de desafiar os seus protetores quando mal consegue chegar à maçaneta da porta, quanto mais abrir uma torneira. É preciso ter-se a chave de casa e uma conta no banco para fazer do cinismo uma opção razoável. É muito mais intuitivo questionar-se porque se é horrível, do que queixar-se de ser tratado mal e injustamente.

As crianças transformam naturalmente o mal que lhes fazem em antipatia por si próprias. Perguntam-se, não tanto «Porque é que os meus pais não tratam de mim?», mas sim «Como terei eu falhado a estas pessoas admiráveis?» Odeiam-se a si mesmas, em vez de porem em causa aqueles que deviam protegê-las; a vergonha substitui a ira. Tudo considerado, parece-lhes a opção mais segura.

Instala-se então uma espiral de ódio a si mesmo.

Um bebé que cresce mal-amado está constantemente a imaginar quais serão os seus erros. Os pais podem ser alcoólicos, narcisistas, sádicos ou deprimidos; podem nunca preparar uma refeição digna desse nome, ou gritar destemperadamente sem saírem do quarto, mas nada disso importa. Os pais não podem ser encarados senão como figuras impressionantes. Se a paternidade é tão boa como deveria ser, então a falta de amor terá de ser explicada por a criança ser uma pessoa horrível, estúpida e má, egoísta e atrasada, fisicamente repulsiva, irritante e frívola.

Quando a infância fica para trás, muita desta dinâmica é esquecida. O adolescente ou jovem adulto descarta aquilo que se passou realmente. Não tem uma ideia clara dos primeiros anos – e é bem possível que os pais façam questão de que não tenha. Em vez de uma indagação psicológica honesta, há o sentimentalismo do álbum de fotografias e dos momentos mais prazenteiros das férias em família. A ex-criança já não sabe ver que o seu sentimento de vergonha tem origens específicas; talvez seja uma coisa com que já nasceu, ou algum fenómeno natural como o mau tempo ou a gripe.

A libertação chega quando passamos a considerar uma ideia altamente implausível: que o ódio a nós mesmos, longe de ser inevitável, é o reconhecimento de uma privação inicial, e que, muito ao contrário de reverenciar ou admirar esses que nos recusaram o amor, estamos agora em posição de compreender, questionar, de nos sentirmos entristecidos e de chorar o que não recebemos.

Afinal, não somos assim tão desprezíveis; só carecíamos de melhores ideias para explicar por que razão não conseguíamos encantar aqueles que deveriam ter estado do nosso lado desde o primeiro dia.

Negligência emocional

Quando imaginamos os problemas que envolvem aquilo a que se chama uma má infância, pensamos imediatamente em crianças fisicamente maltratadas, agredidas, mal alimentadas, abusadas sexualmente, ou, então, tratadas com o mais vivo desprezo: crianças a quem se grita, a quem se aponta o dedo, que são desprezadas, gozadas e atormentadas.

Essas imagens lancinantes tornam difícil compreender que pode haver outro tipo de danos a que as crianças são expostas, em vários sentidos mais prevalecentes e igualmente prejudiciais. Nestes casos, não existe violência física, nem insultos, nem gritos. À primeira vista é como se tudo estivesse bem. Mas isso seria ignorar o tipo específico de feridas que podem ser infligidas através daquilo a que os psicólogos chamam «negligência emocional».

Estamos tão habituados a reagir a abusos que resultam de intervenções, que esquecemos os que decorrem da ausência. A criança emocionalmente negligenciada não ouve gritos, nem é agredida, enclausurada ou insultada; é apenas ignorada, por vezes muito subtilmente. Os pais não lhe sorriem com frequência. Nunca têm tempo para olhar para um desenho que acabou de fazer ou para a história que escreveu. Ninguém se lembra dos nomes do seu animal de peluche. Ninguém repara que está com um ar triste e que o primeiro dia de escola pode ter sido difícil.

Há sempre alguma coisa mais urgente do que passar algum tempo com ela (talvez um irmão de que é preciso tratar ou as exigências profissionais ou as do outro cônjuge). Os pais não parecem de modo algum encantados ou interessados. Não há mimos nem festinhas na cabeça, nem alcunhas carinhosas, nem palavras ternurentas. Os aniversários são esquecidos. As lágrimas ficam por consolar. Os pais nunca olham a criança nos olhos.

À primeira vista, nada disto parece especialmente mau, sobretudo porque esse comportamento insidioso é em larga medida invisível. É até compatível com todos os outros sinais de uma vida familiar saudável. A negligência emocional pode existir numa casa bonita, com um frigorífico bem recheado e uma piscina no jardim. As crianças emocionalmente negligenciadas podem ser enviadas para as melhores escolas e rodeadas dos melhores tutores e amas. Tudo pode ter um aspeto muito são e privilegiado.

Mas isso não significa que não estejam a ser infligidos danos graves. No século xix, o psicólogo William James considerou que pode ser tão prejudicial, ou mesmo pior, ser vítima de indiferença como de tormentos físicos: «Não seria possível conceber punição mais vil, caso tal coisa fosse possível, do que alguém ser largado numa sociedade e passar absolutamente despercebido a todos os seus membros. Se ninguém se virasse quando entramos, respondesse quando falamos, ou quisesse saber o que fazemos, se todos e cada um nos “ignorasse”, e agisse como se não existíssemos, depressa despontaria em nós algum tipo de raiva e desespero impotentes perante o que a mais cruel tortura física seria um alívio.» Raiva e impotência é exatamente o que uma criança pode sentir quando toma consciência de até que ponto é indiferente aos que a puseram nesta terra, ainda que essas pessoas nunca lhe tenham dado uma palmada no rabo ou cortado a semanada, com a diferença de que essa raiva e desespero não serão provavelmente conscientes e claramente sentidos. É bem mais provável que tais emoções se transformem num sentimento de vergonha, combinado com a continuada admiração e respeito por aqueles que o provocaram.

Facto categórico da vida psicológica é a aversão de qualquer criança ao pensamento de que há qualquer coisa errada com os respetivos pais, mesmo quando há e muito; a criança não se poupará a esforços para evitar que tome corpo a ideia de que os pais possam estar mentalmente perturbados ou ser essencialmente uns brutos. E continuará apegada e obcecada com uma figura cuja crueldade e insensibilidade qualquer observador objetivo reconheceria num instante.

A criança tentará tudo antes de pensar que foi lesada pelo seu progenitor – sobretudo se o progenitor é encantador para as outras pessoas e relevante na esfera profissional. A criança limitar-se-á a presumir que há algo profundamente errado consigo mesma que justifica a indiferença. Deve ter falhado de alguma maneira; no seu íntimo há de ser profundamente feia, repulsiva ou incapaz. É a única explicação concebível para o vazio em que a sua existência foi recebida.

O adulto que emerge de uma infância tão complicada e velada estará provavelmente num estado de confusão. À superfície, poderá sentir tão-só um desejo persistente de agradar a quem dele primeiro cuidou. Mas, no seu íntimo, sentirá dúvidas dilacerantes, paranoia e desprezo por si mesmo. Para serenar tais sentimentos, poderá virar-se para o álcool, ou desenvolver vícios calmantes ou entorpecentes para evitar enfrentar a repulsa que julga causar.

Começaremos a resolver estes problemas se reconhecermos a expressão «negligência emocional» e decidirmos tratá-la, e, com ela, o nosso próprio historial, com indispensável seriedade. Os nossos desgostos de infância poderão não se perfilar entre os mais notórios ou dignos de notícia, mas podem ser ainda assim substanciais e genuínos. O nível de vergonha que sentimos é prova disso mesmo. Não fomos agredidos, mas fomos feridos. Deixámos de receber esse amor que torna as pessoas firmes e realizadas, que lhes permite sentirem-se autênticas e merecedoras, que evita que se deixem impressionar por aqueles que as maltratam, e que evita que queiram suicidar-se quando fazem alguma asneira.

Como deveríamos ter sido amados

São tantas as vezes que ouvimos que uma infância difícil pode estragar as pessoas, que nos esquecemos por vezes de considerar como o contrário é fascinante e revelador. O que acontece nessas famílias em que os cuidados emocionais existem? O que significa isso de ser devidamente amado e tratado, e o que acontece às pessoas que o não são?

No decurso de uma infância que possamos considerar devidamente acarinhada, é de esperar que aconteçam algumas das seguintes situações:

Nos primeiros dias e meses, uma criança amada é rigorosamente o centro do universo parental. Durante algum tempo, é em torno dela que tudo gira. Quando chora por leite, os outros vêm a correr; quando esboça o primeiro sorriso, os outros ficam encantados; quando tem alguma coisa a dizer, os outros ouvem. Essas atenções todas não são receita para um egoísmo sem limites; só podemos esperar tornarmo-nos adequadamente modestos e capazes de cuidar dos outros quando experimentámos o sabor precoce de omnipotência completa.É essa experiência enriquecedora de egoísmo infantil que alicerça o altruísmo do futuro adulto.

Livro: "O Ódio A Si Mesmo"

Autor: Alain De Botton

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 18 de julho de 2023

Preço: € 15,90

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Numa infância acarinhada, a prole pode esperar ter a sensação de que agrada realmente aos pais – não por alguma coisa que faça, mas simplesmente por existir. Sente toda a energia do primordial júbilo parental, e a sua chegada é sentida como um passo positivo muito desejado e celebrado na vida dos pais. Essa impressão é alimentada pelos mais insignificantes momentos diários: os pais resplandecem quando a criança entra na sala, há beijinhos acalorados de manhã e à noite, há fotografias da criança afixadas na porta do frigorífico, as preocupações da criança são notadas e as suas alegrias recordadas.

Disto retira a criança uma confiança básica em si mesma e no seu direito a existir. Não se sentirá insignificante nem intimidada. Não se sentirá obrigada a pedir desculpa pelos seus apetites, nem se coibirá de expressar os desejos. Não acabará presa a pessoas sádicas ou irresponsáveis; saberá sair depressa de maus relacionamentos.

Sem se julgar com direitos inalienáveis, saberá, porém, que tem um lugar neste mundo. E se as coisas alguma vez correrem realmente mal, saberá tomar o seu próprio partido e defender-se do destino com a indispensável compaixão e tolerância.

Numa infância acarinhada, a prole beneficia de interpretações solidárias dos seus comportamentos e motivações. Se entorna qualquer coisa na cozinha, não é por ser «burra e desajeitada», é porque é tão fácil entornar aquelas embalagens novas. Quando não quer partilhar os brinquedos com outra criança, não é por ser «um malandrete dum egoísta», é apenas por exprimir um apego legítimo ao que é seu, muito como um adulto faria se lhe pedissem que partilhasse o carro ou a mulher com um estranho qualquer. Os pais carinhosos sabem não fazer do filho o vilão de cada percalço que vivem.

Os pais carinhosos têm consciência de que em todas as vidas há uma série de comportamentos estranhos, e não culpam a criança por falhar, ou porque de vez em quando tem mau feitio e fica farta de tudo. Os pais estão suficientemente confiantes para saberem que tempos mais risonhos virão e que a criança não se sentirá genuína se não lhe forem dadas oportunidades bastantes para dar largas à fúria e ao desapontamento com o estado das coisas, incluindo a escola, os irmãos, o fim dos filmes, a hora de ir para a cama… e com os seus muitos erros que por vezes deixam os pais profundamente aborrecidos.

Os pais carinhosos dão à criança a sensação de que é capaz de descobertas interessantes e ideias próprias. Em vez de se precipitarem para o parque como se tivessem entrevista marcada com os baloiços e o escorrega, os pais permitem-se mudar de planos por causa da curiosidade da criança: talvez seja um intrigante muro de tijolos que precisa de ser investigado e tocado, com aqueles tijolos cheios de pequenas diferenças, uns muito macios ao toque, outros muito ásperos, e um ou outro com uma almofadinha de musgo; talvez seja uma flor lindíssima junto à parede, a pedir mesmo uma cançãozinha em honra dela; talvez seja uma poça a pedir para ser atravessada a espadanar água ou coberta de folhas que precisam de ser espalhadas naquela superfície prateada. Talvez seja um caracol a arrastar-se pelo pavimento que muda todo o programa da tarde, porque aquela criatura precisa de ser examinada ao pormenor, investigada e talvez mesmo levada para casa em cima de uma folha para ser largada no jardim. De certeza que nem Charles Darwin nem Alexander von Humboldt alguma vez tropeçaram em coisas tão emocionantes durante as suas longínquas viagens de exploração.

Numa infância acarinhada, a prole não é incentivada a admirar pais ou cuidadores mais do que seria conveniente à sua autoconfiança. O adulto poderá ter alguns poderes, mas a criança é genuinamente encorajada a compreender que é apenas um ser humano, com tudo o que esse termo complacente indica: é um pouco pateta, às vezes, de vez em quando preguiçosa, capaz de encher-se de chocolates quando acabou de jantar, e viciada em programas de televisão idiotas. Por conhecer de perto estas imperfeições a criança consegue a seu tempo ultrapassar o adulto e sentir-se capaz de tomar lugar ao lado dele no reino dos crescidos. Consegue, além disso, aprender a lidar com as suas fragilidades, pois se o adulto que tanto reverencia está longe de ser perfeito, também ela pode encarar os seus defeitos e aceitá-los sem vergonha. É possível ter uma escorregadela, ser-se palerma, e ainda assim ser digno de admiração.

Se estes ingredientes emocionais forem transmitidos ao longo da fase de crescimento, será certamente possível confiar que o seu destinatário será claro quanto às necessidades que tem, compreensivo com os próprios erros, pronto a evitar o convívio com gente maldosa, capaz de amar os outros, e, acima de tudo, livre para sentir compaixão por si mesmo e pela sua vida menos que perfeita, mas ainda assim digna.

Razões de sermos maus pais

Tendo em conta a importância de se ser devidamente amado pelos pais para se ter uma vida adulta emocionalmente sã, poder-se-á perguntar por que razão, em tantos casos que vão do lamentável ao verdadeiramente trágico, as coisas correm tão mal. Por que razão há tantos pais que poderão ser pessoas decentes e atenciosas noutras áreas, e falham miseravelmente na capacidade de amar os pequeninos que trouxeram a este mundo?

Entre as numerosas possibilidades, destacam-se duas em particular. A primeira resulta de uma das mais óbvias e inevitáveis características da primeira infância: a criança chega a este mundo num estado de completa e quase chocante vulnerabilidade. Não consegue mover a cabeça, não compreende minimamente o funcionamento dos próprios órgãos, vive numa penumbra de caos e mistério, não consegue regular-se a si ou às suas funções. Estando assim tão indefesa, tem de olhar para os outros e rogar misericórdia: tem de pedir-lhes que lhe tragam alimento, que lhe afaguem a cabeça, que lhe lavem os membros, que a confortem depois de comer e lhe compreendam as zangas e as tristezas.

Este desamparo inicial leva muito tempo a desaparecer. Mesmo ao fim de dois ou três longos anos, a descendência ainda está fraca, confusa, incompetente e frágil. Os dedos não são mais espessos que raminhos, qualquer cão doméstico poderia matá-la, e mentalmente vive numa confusão de ideias estonteantes, peculiares, irrealistas e sentimentais. Julga que o ursinho de peluche está vivo, conversa com as plantas, espera ansiosamente que o Pai Natal desça pela chaminé, gosta de andar à roda de mão dada com outros pequeninos para cantar cantigas sobre fadas, mamãs e papás, e depois faz desenhos de flores gigantes e borboletas amigáveis, antes de adormecer a chupar o polegar agarrada ao cobertor preferido.

Para a maioria das pessoas, tudo isto é muito querido. Mas para cuidar de um ser tão pequenino, um adulto vê-se forçado a assumir um estratagema emocional muito particular, um estratagema que ocorre tão intuitiva e prontamente na maioria das pessoas, que tendemos a nem dar por ele: somos forçados a consultar as nossas memórias do tempo em que tínhamos a idade que a criança tem, para conseguirmos proporcionar-lhe mais exatamente o tipo de cuidados e atenção de que ela precisa.

Visto de fora, parece que estamos só a pôr-nos de joelhos para brincar às princesas com a criança, a satisfazer o pedido de uma refeição saborosa, a abotoar pacientemente o blusão para a proteger do frio e a ajustar o barretezinho de lã antes de irmos ao centro comercial.Mas para realizar estes gestos, uma parte de nós teve de vasculhar o passado e imaginar-se na pela da pessoa pequenina de que estamos a cuidar agora, bebendo nas nossas recordações íntimas e nas do nosso corpo, para conseguir compreender os desgostos, partilhar as alegrias, corrigir as inépcias e reagir ao choro desesperado.

Embora cuidar de crianças seja por vezes esgotante, a maioria dos adultos não tem qualquer dificuldade em conectar-se com a versão infantil de si próprio. Mas essa capacidade está longe de ser natural ou espontânea: existe em função da saúde e é consequência de certo grau de privilégio emocional. Para o tipo de pais com maiores dificuldades, porém, esse género de cuidados baseados na identificação é demasiado problemático. Algures no seu íntimo ergueu-se um muro com metros de espessura e arame farpado no topo entre a sua vida de adulto e a sua vida de criança. Algo nessa infância foi tão difícil que não voltam nem querem voltar a imaginá-la. Terá sido, talvez, um dos progenitores que morreu, ou que lhes tocava de maneira imprópria, ou que os deixava desvalidos ou os humilhava. As coisas da infância eram a tal ponto desagradáveis que a vida adulta foi toda ela baseada na firme recusa de reviver o desamparo e a vulnerabilidade dos primeiros anos. Nunca, nem por vinte minutos enquanto o jantar aquece, se irão baixar e lembrar a criança que foram, para brincarem com a criança que têm diante de si.

Esse tipo de adulto pode ter-se tornado extremamente competente no mundo profissional. Será reconhecido, provavelmente, como decidido e firme, com opiniões seguras, com um carácter predisposto à ironia e ao cinismo, e uma abordagem estoica (ou dura, simplesmente) de quaisquer problemas, sejam seus ou alheios. Talvez goste de dizer «não tenho remorsos» e «não vale a pena chorar». Em teoria, são adultos que nada têm contra a ideia de cuidar de uma criança – também querem ser pais, e talvez tenham lutado muito para poder sê-lo. Acontece, simplesmente, não terem consciência de que não irão conseguir ser bons pais, a menos que, e quando, tenham feito as pazes com a versão infantil de si mesmos.

Enquanto essa vulnerabilidade os tolher, continuarão secreta e inconscientemente a resistir e a não se deixarem comover pela vulnerabilidade do seu filho. Não conseguirão ter paciência para a falta de jeito e a agitação do pequenino; nunca terão interesse em brincar com peluches; irão achar patética a choraminguice da criança só porque alguém espezinhou um trevo de quatro folhas ou porque o livro preferido tem um rasgão. E, sem querer, irão dizer «Não sejas pateta», ou até «acaba com essas criancices» quando o filho chorar porque o olho do boneco se partiu; ou poderão dar-lhe o banho à pressa e recusar-se a ler-lhe a história que ele tanto pede ao deitar.

Pode juntar-se a isto uma segunda característica e a lacuna correspondente do progenitor: uma inveja mal resolvida. Por mais estranho que possa parecer, é possível que um progenitor inveje que o filho possa ter uma infância melhor do que a dele, e trate inconscientemente de fazer para que o não seja. Embora visivelmente empenhado nos cuidados da criança, o progenitor debater-se-á com o impulso de lhe infligir alguns dos mesmíssimos problemas que enfrentou: a mesma negligência, a mesma escola medíocre, a mesma ausência de ajuda ao seu desenvolvimento… a nova geração terá de sofrer o mesmo.

Para sermos bons pais, precisamos não só de revisitar as memórias das nossas próprias infâncias, mas também de nos conseguirmos conciliar com as privações por que passámos, para não sentirmos inveja de quem talvez tenha a sorte de não passar pelo mesmo. Mas há um determinado tipo de progenitor traumatizado que continuará sempre a ser de alguma forma uma criança carente e desapontada, a quem parece insuportável que outra criança tenha mais do que ele teve. É como um irmão atormentado e atormentador num lar disfuncional, a descarregar a sua dor em alguém mais indefeso, certificando-se escrupulosamente de que a outra criança se sente tão triste e carente como ele.

Tivemos a infância que tivemos, e nada podemos fazer quanto a isso. Mas quem planear ter um filho tem a responsabilidade de garantir que tem uma relação saudável com o seu próprio passado, que é capaz de ir beber nele reservas de ternura e empatia, e que é capaz de não sentir inveja de quem não tem de participar nos seus sofrimentos. Seremos mesmo adultos quando formos
capazes de dar aos filhos a infância que nós próprios merecíamos, e não aquela que tivemos.