
1. O homem que nunca existiu e nunca morreu
Uma mentira enorme, contundente,
esmagadora, sem paliativos. É com isso
que deparamos assim que chegamos.
O Vale do Medo
Em junho de 1960, viajei até Génova para comprar um chapéu. Tinha adquirido esse costume quando rodava filmes em Itália: passar uns dias no Grand Hotel Savoia e comprar um Borsalino de feltro ou panamá, conforme a época do ano, na Luciana, da Via Luccoli. Havia já algum tempo que rodar filmes pertencia ao passado, mas ainda conservava alguns dos velhos hábitos e dinheiro suficiente para os man- ter; e Génova, com transbordo em Ventimiglia, ficava só a quatro horas de comboio da minha casa de Antibes: o tempo necessário para ler o último romance que o meu amigo Graham Greene acabava de me enviar com uma amável dedicatória. O chapéu era um pretexto adequado para passar uns dias na cidade, passear pelo porto velho e comer massa na minha trattoria favorita. Naquela ocasião, decidi-me por um panamá clássico de cinco centímetros e meio de largura da aba, com uma bonita cinta cor de tabaco; e uma hora mais tarde, após visitar duas ou três livrarias, pendurava-o num cabide de Al Veliero, onde depois de conversar com o proprietário, velho amigo, desfrutei de um agradável spaghetti com amêijoas e butarga. Saía para a rua pondo o chapéu quando encontrei Pietro Malerba. Na realidade, quase tropecei nele.
– Cazzo, Hoppy. Que surpresa!
Detesto que me chamem Hoppy. Só as pessoas relacionadas com os meus primeiros filmes é que costumam fazê-lo. Refiro-me aos que continuam vivos. Nem sequer o nome artístico pelo qual me conhece quem se lembra de mim me satisfaz. Hopalong Basil é vulgarmente eufónico, reconheço – devo-o a um agente teatral falecido em 1935 –, e durante vinte e cinco anos figurou nos cartazes de cinema e nos títulos de créditos dos meus filmes, muitas vezes em tamanho maior do que o dos outros intérpretes. Mas nunca me senti confortável com ele. Prefiro o nome real, inscrito na chapinha de latão que a senhora Colbert, a minha criada, esfrega com líquido limpa-metais na porta da casa com vista para o Mediterrâneo onde vivo há algum tempo: Ormond Basil.
– Que surpresa – repetia Malerba, encantado por me ver ali.
Abraçou-me com palmadas sonoras nas costas. Tudo muito meridional e muito próprio dele. Muito italiano. Forçava um pouco o afeto, por isso supus que com a minha velha glória pretendia impressionar a sua acompanhante, uma senhora madura, mas ainda de boa aparência, cujo rosto me parecia muito familiar.
– É o Hopalong Basil, lembras-te? – Olhava para mim sob as sobrancelhas grisalhas que lhe davam um aspeto de Mefistófeles maléfico. – Conheces a Najat Farjallah, claro.
Disse-o com orgulho evidente de proprietário. Eu nada tinha a objetar àquilo, e assim, tirei o chapéu, beijei a mão cheia de joias e cumpri os rituais devidos. Com o fervor do público que a tinha aclamado como uma semideusa já um pouco extinto, a célebre soprano estava na posse de uma beleza prestes a murchar, embora ainda eficaz: olhos grandes e escuros debaixo de um turbante de seda, boca bem desenhada, nariz pouco semítico, apesar da sua origem libanesa, vestes adequadas – eu tinha lido algures que era a sua amiga milanesa Biki Bouyeure quem a vestia –, embora o decote me parecesse excessivo para as duas e um quarto da tarde. Modos lânguidos acostumados à admiração alheia, conscientes de si mesmos.
– Oh, sim, claro – disse ela. – O senhor Sherlock Holmes em pessoa.
Sorri educadamente, quase cúmplice; que outra coisa podia eu fazer? Não era a primeira vez que a diva e eu nos encontrávamos – depois de a conhecer em Roma, tinha-a visto no La Scala a fazer de Medeia – e reparei, como noutras ocasiões, que me observava com interesse, de cima a baixo. Eu acabava de fazer sessenta e cinco anos, e as minhas vértebras já não eram o que tinham sido: a idade faz encolher um pouco, mas conservava a maior parte do metro e oitenta e sete de altura, o ventre liso e o rosto anguloso e magro que, noutros tempos, os ecrãs de cinema tinham tornado muito popular. Também uma certa flexibilidade de movimentos. Se Errol fosse vivo – refiro-me a Errol Flynn, é claro –, ainda teria podido dar-lhe duas estocadas como as que lhe desferi nos ensaios para a cena da praia de O Capitão Blood: o pobre coitado sempre foi um péssimo esgrimista, enquanto eu me desenvencilhava realmente bem. Num duelo a sério tê-lo-ia matado cinco ou seis vezes, como a Leslie Howard em A Máscara de Ferro, e a Tyrone Power em A Espada Espanhola. Mas, enfim. Estas são histórias antigas.
O facto é que estavam ali Pietro Malerba e Najat Farjallah, e ali estava eu com o meu chapéu novo no porto velho de Génova, ignorando que nesse preciso momento um centro de baixas pressões se deslocava para o Mediterrâneo oriental e iria imobilizar-se entre Chipre e o mar Negro. Aquilo faria soprar do golfo de Tarento ventos de força 9 e 10, pouco frequentes naquela época do ano, que fustigaram o mar Jónico e a costa ocidental da Grécia com uma tempestade tão violenta que durante vários dias ficou suspensa a navegação em volta de Corfu: uma ilha grande a que os gregos chamam Kerkira, cujo nome Malerba acabava de pronunciar em relação ao seu iate, o Bluetta.
– Ó homem, vem connosco. Duas semanas relaxado e ao sol. Tenho um assunto que talvez te interesse: uma coprodução da Warner e da RAI para a televisão.
Aquilo não soou nada mal. Desde que eu tinha interpretado o papel secundário de um aristocrata russo em Guerra e Paz, estava há cinco anos sem trabalhar, se excetuarmos outro papelzinho de segunda numa série de televisão, Ivanhoe, com Roger Moore – ator regular, rapaz simpático –, onde eu interpretava a personagem de vilão elegante; que, Holmes à parte, foi sempre outra das minhas conspícuas especialidades. Era poupado e de gostos discretos. Além disso, a vida aperta, mas não sufoca: as minhas duas ex-esposas tinham falecido, graças a Deus. A primeira, alcoolizada na quinta de Pacific Palisades da qual se tinha apropriado depois do nosso divórcio – começámos a beber quase ao mesmo tempo, mas ela foi mais depressa do que eu. A segunda, num oportuno acidente de automóvel: cento e cinquenta metros de ribanceira na estrada de Villefranche, com incêndio final e gasolina inflamada ao chegar ao fundo. Quanto ao resto, a minha bonita casa de Antibes estava paga há muito tempo; mas não me fazia mal rechear o colchão para os tempos incertos, a velhice tão próxima, a Guerra Fria e outros etcéteras que por aquela época obscureciam o horizonte. E Malerba era um produtor importante na Cinecittà e nos grandes projetos do cinema e da televisão norte-americanos na Europa. Portanto, disse-lhe que sim, com grande satisfação sua e visível interesse da divina soprano, que me seguia fazendo-me olhinhos. O resto da tarde, entreguei-me a fazer as compras oportunas, fiz transferir a minha bagagem do hotel para o porto e nessa mesma noite dormi num luxuoso camarote do Bluetta.
Uma semana depois, contra todos os prognósticos, vi-me confinado na pequena ilha de Utakos, em frente de Corfu. Ou vimo-nos os três. Pietro Malerba, Farjallah e eu tínhamos ido a terra para almoçar no hotel Auslander, cujo restaurante gozava de certo renome, quando as coisas se complicaram. Da varanda tínhamos visto que o mar começava a salpicar com a primeira marejada de uma inesperada tempestade e que o vento fazia oscilar e gemer os ciprestes, uivantes como almas penadas. Não estava tempo para regressar a bordo, pois anunciava-se uma noite incómoda, por isso Malerba reservou três quartos: um para Farjallah e outro para ele, ainda que comunicantes entre si – estava separado de uma conhecida atriz em Itália, onde não existia o divórcio, e preferia manter as formalidades –, e um para mim. A ideia era embarcar de novo assim que acabasse a tempestade, mas esta alcançou tal intensidade que, quando na manhã seguinte quisemos deixar o hotel, fomos informados de que toda a navegação na zona tinha ficado suspensa até o tempo melhorar, e que o comandante do Bluetta se tinha visto forçado a levantar as âncoras e a refugiar-se no sotavento de Corfu.
– Que emocionante, Ormond! – dizia Farjallah, agarrada à mão de Malerba, embora pestanejasse para mim. – Como nos vossos filmes.
Malerba deixava-a flirtar, bonacheirão e irónico, porque me conhecia sobejamente. As divas, mais ou menos castas, não me davam frio nem calor. Os meus anos de caça tinham passado, e além disso sou um cavalheiro inglês da velha escola: nunca me ocorreu rondar o território de um amigo ou de um conhecido, e muito menos se dele dependesse ou pudesse depender um trabalho. David Niven, velho e querido camarada – tínhamos coprotagonizado dois bons filmes, incluindo o delicioso Dois Cavalheiros e uma Loura, com Ginger Rogers –, costumava comentar isso entre dois copos: nunca metas a mão no bolso onde levas o dinheiro. Que, dito pelo muito britânico Dave, soa mais elegante do que parece.
Mas o que interessa realmente nesta história é que me vi, ou nos vimos Malerba, Farjallah e eu, uma vez interrompido o nosso cruzeiro, confinados naquela ilha de pouco mais de um quilómetro quadrado. Embora tal não servisse de consolo, havia outros hóspedes em situação semelhante: uns, porque também não tinham podido apanhar o ferry que fazia a comunicação da ilha com Corfu e Patras; outros, porque tinham previsto prolongar a sua estada. No total, éramos nove de diversas nacionalidades. E todos, hóspedes do único lugar habitado, nos encontrámos ali de bom grado ou à força. Como nos romances de Agatha Christie.
Mesmo em tais circunstâncias, Utakos era belíssima: um paraíso minúsculo de oliveiras, cedros, ciprestes e buganvílias, com o embarcadouro em forma de espigão sob as ruínas de um antigo forte veneziano, uma colina espessamente arborizada que conservava no cimo os restos de um templo grego, e numa concavidade desta, protegido de quase todos os ventos, o hotel Auslander: uma villa do século XIX com uma vista esplêndida para a costa da Albânia e para o relevo montanhoso de Corfu, que se recortava todas as manhãs à distância sobre a contraluz de incríveis amanheceres. Nem a tempestade tirava sequer um bocadinho de beleza à paisagem, pois o intenso vento de noroeste que agitava o mar mantinha o céu sem uma nuvem, limpo, azul e luminoso.
O facto é que às 12h05 do segundo dia, depois de ler um bocado na varanda do meu quarto – Mani, a viagem à Grécia de Patrick Leigh Fermor –, desci à sala de jantar e Gérard, o chefe de sala, conduziu-me à mesma mesa que Malerba, Farjallah e eu tínhamos ocupado no dia anterior.
– Os seus amigos não o acompanham, mister Basil?
Disse-lhe que não. A diva costumava levantar-se tarde e Malerba revia um contrato a assinar pelo seu sócio Samuel Bronston sobre um filme que queriam rodar em Espanha com Charlton Heston e Sophia Loren. Eu estava sozinho e pedi o menu. Um pouco mais longe comia também a sós, com a cabeça inclinada sobre o prato, um indivíduo baixo e gordo de aspeto levantino e, na mesa contígua, conversava um casal maduro de ar germânico que, pelo idioma, supus ser suíço, alemão ou austríaco. Quanto a Gérard, o chefe de sala, era magro, distinto e francês, e vestia com sóbrio aprumo o fato preto e o papillon próprios do seu digno ofício. Tinha um belo cabelo grisalho, um nariz aquilino aristocrático e um dente de ouro que, ao sorrir, reluzia no lado esquerdo da boca, sob o fino bigode. Também era um pianista razoável, e na noite anterior, depois do jantar, tinha-nos amenizado o serão teclando no velho Steinway do salão.
– Recomendo-lhe o peixe, mister Basil – propôs ele, serviçal.
– Qual é o peixe?
- Dourada, e chegou só há dois dias. – Depois de olhar de soslaio para a sala de jantar, baixou a voz até um ponto discreto. – E recomendo-lho muito, porque se o tempo continuar assim, demoraremos a ter peixe fresco.
– Não se fale mais nisso – anuí. – Considere meu esse peixe esquivo.
– Sábia escolha, senhor, embora lhe peça que desculpe as deficiências do serviço. A cozinheira e outra empregada de mesa tiveram de ficar em Corfu e é a senhora Auslander quem se ocupa da cozinha. O peixe terá de ser na chapa.
– Não importa. Assim parece-me bem.
Dirigiu-me um olhar de dúvida.
– O vinho?... Um Goumenissa Boutari, por exemplo?
– Não bebo álcool, obrigado – recordei-lhe.
Reprovou aquilo com um leve esgar e uma cintilação áurea.
Na sua silenciosa e mediterrânica opinião, não beber vinho com o peixe era uma blasfémia. Mas eu tinha visto o perigo demasiado perto: estava há quase cinco anos, graças à força de vontade, longe de bebidas fortes. Ou suaves. Longe de todas.
– Para sobremesa temos bolo de framboesas pretas, muito saborosas. Colhidas na própria ilha.
– Terei isso em conta. Obrigado.
Foi para outras mesas. Se de algo estou orgulhoso, inclusive mais do que da ordem de cavaleiro do Império Britânico, que nunca pus na lapela – a rainha Isabel foi grande fã minha nos seus primorosos anos de juventude –, é do meu tratamento com o pessoal subalterno. Desde rapaz que aprendi que são eles que resolvem os problemas, e que a sua boa ou má vontade depende do julgamento crítico que inspiramos. As duas guerras vividas na minha longa existência – a primeira mais incómoda do que a segunda, pois passei-a na lama da Flandres com Ronnie Colman, Herbert Marshall e um outro velho amigo – não tinham feito senão aperfeiçoar uma ideia confirmada no cinema: são os sargentos, e não os generais, ou seja, os eletricistas, os carpinteiros de estúdio e as maquilhadoras, para mencionar alguns, que decidem as batalhas e os filmes.
Segui Gérard com o olhar enquanto me dedicava às entradas: azeitonas pretas, queijo fresco e polvo cozinhado em vinho – a senhora Auslander era uma boa cozinheira. Era um prazer vê-lo trabalhar movendo-se com elegante desenvoltura de uma mesa para a outra, circunspecto e profissional, atento a tudo, abrindo garrafas, vigiando o modo como Evangelia e Spiros, os jovens empregados de mesa, atendiam a sala.
Foi então que se abriu a porta envidraçada que dava para o vestíbulo e um homem garboso entrou na sala de jantar. Gérard viu-o chegar.
– Oh, senhor Foxá – disse ele.
Foi ao seu encontro com o dente a reluzir através da sala de jantar e conduziu-o a uma mesa próxima da minha. O recém-chegado era bem-parecido e não passava muito dos quarenta. Eu tinha-o visto de longe na noite anterior, durante o jantar. Agora vestia um blazer azul-escuro, camisa aos quadrados sem gravata e calças de flanela. Eu observava-o discretamente quando um agradável cheiro a peixe me fez virar a cabeça. Evangelia, a empregada de mesa, costumava caminhar silenciosa como uma gata.
– Aqui tem a sua dourada, senhor.
– Ah, sim... Obrigado.
Durante um bocado, concentrei-me em manusear garfo e faca – detesto a pá do peixe – desfrutando do prato e do meu copo de água fresca. Depois observei os outros hóspedes. Estava a olhar para eles quando vi entrar uma mulher: de trinta e tal anos prestes a dobrar o cabo dos quarenta, típica visitante ocasional das ilhas gregas. Trazia um vestido estampado leve de alças que revelava os seus ombros bronzeados e trazia na mão um chapéu de palha de abas largas com uma fita vermelha. Tinha o cabelo muito loiro, as pernas bonitas e os olhos cinzentos ou azuis; eu não tinha estado suficientemente perto para verificar. Não era de todo uma beleza, mas, para inglesa, não estava mal.
Foi sentar-se diante da mesa para onde a conduziu o solícito Gérard, mas fê-lo com ar irresoluto, olhando em redor. Parecia inquieta. Trocou com o chefe de mesa algumas palavras que não consegui ouvir e este negou com a cabeça. Tornou a olhar em volta, desconcertada, e ficou a observar a porta como se esperasse que alguém aparecesse por ela. Deduzi que aguardava a sua companheira de viagem, outra mulher de aspeto muito parecido com o seu. Partilhavam o quarto, julgava eu entender, e tinha reparado nelas no dia anterior.
Pedi a Evangelia que me servisse o café no terraço, pousei o guardanapo, pus-me de pé e atravessei a sala de jantar em direção à porta envidraçada. Ao passar junto das mesas, sem olhar para ninguém em particular, notei que todos me observavam.
Habituado à curiosidade do público – ainda que muito menor nos últimos tempos, como digo –, correspondi através de uma leve saudação com a cabeça.
A vista do terraço era magnífica e justificava sobejamente o lugar. A antiga villa tinha sido construída diante de uma paisagem formidável: as ruínas do templo grego sobre a colina com ciprestes e cedros negros escalonados na densa encosta; o jardim de oliveiras, mimosas e buganvílias que descia até à praia; e para além do mar, que o sol e o vento convertiam em gravura azul-cobalto encrespada de salpicos brancos, as montanhas longínquas da Albânia e a costa escarpada de Corfu, nítidas apesar da distância.
Evangelia trouxe-me o café, oriental, muito turco. Tirei do bolso a minha lata de cigarrilhas Panter e acendi uma com o Dupont de ouro que vinte anos antes Marlene Dietrich me oferecera durante a rodagem de A Espia e o Patife, onde ela e eu tivemos algo mais do que palavras e celuloide. O terraço estava protegido do sol por um toldo que pendia imóvel, pois ali não havia nem um sopro de brisa. A beberagem, espessa como lama, queimou-me os lábios e a língua. Por isso, deixei-a arrefecer.
Outros hóspedes tinham tido a mesma ideia que eu. O casal de aspeto germânico – depois soube que eram alemães e se chamavam Hans e Renate Klemmer – passou ao meu lado para ocupar uma mesa perto da escadaria de pedra branca, sob os ramos de uma frondosa magnólia e uma desavergonhada Vénus de mármore pela qual subia, pudica, uma trepadeira. Atrás, dissimulado entre arbustos de mimosa, estava o gerador a gasóleo que, durante o dia e parte da noite, dava energia elétrica ao hotel.
Senti outra presença próxima e levantei o olhar. O homem a quem Gérard tinha chamado Foxá estava de pé, perto de mim. Sorria, cortês.
– Estará cansado de o incomodarem – disse ele.
Falava num bom inglês com sotaque espanhol. Neguei com a cabeça, amável, indicando a cadeira ao lado. Pareceu hesitar por um momento.
– Não quero ser impertinente.
– Não, por favor. Peço-lhe... Sente-se.
– Francisco Foxá – apresentou-se. – Paco, na realidade.
Todos me chamam assim.
Demos um aperto de mão. A dele era franca, vigorosa. Estava moreno do sol, e o cabelo negro, um pouco ondulado, dava-lhe ar de galã de cinema. O seu aspeto era o de quem sabe perfeitamente distinguir um samba de um mambo. Parecia-se muito com um jovem que por aquela época começava a destacar-se em Hollywood, Cliff Robertson.
Acomodou-se num dos cadeirões de vime, e quando Evangelia chegou, pediu-lhe um conhaque.
– E o senhor, quer outro?
– Por agora, não – respondi. – Obrigado.
Tirei a minha lata de cigarrilhas, ofereci-lhe uma, deu-me lume com a caixa de fósforos do hotel que estava em cima da mesa e fumámos enquanto ele ia bebendo do seu cálice e conversávamos sobre banalidades. Cavaqueámos um bom bocado. Impressionava-o, disse ele a rir-se – tinha um riso agradável –, escutar a minha voz, tantas vezes ouvida no cinema: e qualificou-a com «precisa e sólida pronúncia inglesa», idêntica à que eu utilizava nos filmes para dizer coisas como «Começa o jogo, Watson!» ou «Sabe que para morrer basta perder três litros de sangue?».
Assenti, satisfeito. Era sempre consolador que nos recordassem tais coisas.
– Desculpe eu olhar assim para si – desculpou-se –, mas é maravilhoso estar diante de si. É claro, os filmes do Sherlock Holmes eram os meus favoritos... Quantos chegou a rodar?
– Quinze.
– Meu Deus, creio que os vi todos. Não me surpreende que, ao imaginar o grande detetive, o façamos com o seu rosto.
Agora fui eu quem desatou a rir.
– Pois, é como vê. – Toquei na minha cara com os dedos. – O seu detetive envelheceu. Não fiz nenhum Holmes desde O Cão dos Baskervilles, e isso foi há dez anos. Quase não piso um estúdio cinematográfico nem o palco de um teatro. Esse género de filmes baseados em romances de mistério deixou de interessar ao público. Agora este exige perseguições de auto- móveis, tiros, sobressaltos e espetáculo... Já não se trata de acender com elegância um cigarro, mas sim de empunhar uma pistola. E eu as pistolas manejo-as muito mal.
Foxá fez uma expressão simpática.
– Vi-o não há muito tempo, numa série de televisão. Dirigi-lhe um sorriso agradecido.
– Um pequeno papel de vilão, só isso. Nada de sério enquanto trabalho.
– Não importa o que faz ou deixa de fazer, porque o Sherlock Holmes continua a ser o senhor.
Entre um golo e outro de conhaque expôs porquê. Mais algumas rugas em torno das pálpebras e na testa, comentou com indulgência, e um pouco mais acentuada a contração de concentração ou fadiga nas comissuras da boca. Eram estas as mudanças mais destacadas, o que não representava grande coisa. Agora eu tinha cabelos brancos, mas continuava a pentear-me para trás com risco ao lado, andava bem barbeado, e o casaco de tweed muito usado – Anderson & Sheppard, naturalmente – e a gravata de tricô sobre a camisa cinzenta conferiam-me, na sua opinião, um elegante desalinho. Os meus olhos escuros e vivos, um pouco arregalados, continuavam a olhar o mundo com interesse penetrante. Ou assim lhe parecia.
– São os olhos de Holmes, garanto-lhe. – Olhou em redor. – Até esperamos ver aparecer de um momento para o outro o doutor Watson... Como se chamava o ator? – Tentou lembrar- -se. – Ah, sim. Bruce Elphinstone.
Anuí tristemente. O meu querido Bruce, que nos quinze episódios encarnou a personagem do doutor Watson, tinha falecido de cancro há quatro anos. Disse-o a Foxá, que não sabia. Expressou as suas condolências e depois ergueu o copo, como se brindasse a ele.
– Intérprete magnífico – disse ele.
– E grande rapaz – acrescentei. – Duvido que, sem ele, os filmes que protagonizei tivessem tido tanto êxito.
O meu interlocutor observava-me com muita fixidez. Comecei a sentir-me incomodado.
– Meu Deus, peço-lhe – disse ele de repente. – Faça-o por mim.
Aquilo surpreendeu-me.
– O que é que pretende que eu faça?
– Não sei. Quando isto passar, o senhor sairá daqui e não voltarei a vê-lo na minha vida.
– E o que quer dizer com isso?
– Olhe para mim. O que deduz?
Demorei a compreender a que se referia. Então ri-me.
– Sou só um ator, estimado amigo.
– Por favor. Não pode imaginar o que significa para mim.
Olhei para ele longamente, ainda surpreendido. No fim esbocei um sorriso. Porque não?, disse para mim mesmo. É amável e não tenho nada melhor para fazer.
– Pratica desporto – disse eu. – Talvez ténis.
– Correto.
– E é canhoto.
Dirigiu uma rápida olhadela às suas mãos.
– Caramba! É muito evidente?... Desde criança que me educaram a utilizar a direita. Até trago o relógio no outro pulso. Como é que se deu conta?
– No cinema chamar-lhe-íamos salto do eixo.
Peguei na caixa de fósforos da mesa, lancei-lha e apanhou-a no ar. Depois ficou a olhar para mim, confuso.
– Faz todos os gestos instintivos – esclareci-o – com a mão esquerda.
Deu uma gargalhada.
– Que o diabo me leve.
Decidi arriscar um bocadinho mais. Aquele espanhol era divertido e o jogo começava a agradar-me.
– Além disso – acrescentei, ousado –, fez a barba durante o apagão de luz de meia hora que tivemos esta manhã.
Desta vez observou-me de boca aberta. Demorou a reagir. – Isso já é espantoso – disse ele, por fim. – Como pôde... Toquei-me numa face, mais bem barbeada do que a outra.
– Também me aconteceu a mim. Calculo que a janela da sua casa de banho lhe iluminava mais o lado direito da cara do que o esquerdo.
– Sim! – exclamou, maravilhado. – Eu via melhor o esquerdo.
– É espantoso – repetiu.
– Ó homem, não. É elementar. – Meu caro Watson?
– Sim.
Rimo-nos à gargalhada. Eu estava a passar um bom bocado. Acendemos outras duas cigarrilhas das minhas e ele pediu mais um conhaque. Procurei manter o olhar longe do seu cálice e o pensamento alheio ao aroma deliciosamente francês que vinha até mim.
– Chegou mesmo a penetrar tanto assim na personagem? – interessou-se ele.
– Durante quinze anos convivi com ela. Li cada romance e cada conto dezenas de vezes. Era uma boa forma de entrar na personagem. Quase nada do que acabo de dizer provém das minhas próprias deduções.
– Diz isso com um certo pesar. Como se não estivesse satisfeito.
– Oh, não acredite. Estou. Obtive muita satisfação, mas também me colou à personagem. Temo que não se lembrem de mim por outras interpretações e só por essas.
– Eu, sim, lembro-me de outros papéis, fazia uns vilões magníficos. Em A Aventureira de Sumatra, por exemplo, ou aquele espadachim em A Vingança dos Pardaillan... Para não falar do malvado cobrador de impostos de A Rainha de Castela. – Dirigiu-me um olhar de respeito quase religioso. – Que tal é Greta Garbo?
– Bela. Tímida. Mais sensível do que um sismógrafo.
– E é verdade isso que dizem, que como boa sueca gosta de bebidas fortes?
– Despachava vodca como quem bebe cerveja.
Respondi-lhe um pouco distraído, pois a inglesa que eu tinha visto na sala de jantar acabava de me atrair a atenção. Tinha aparecido no terraço, acompanhada por Gérard, e os dois interrogavam Evangelia. A mulher parecia nervosa.
– O senhor é muito amável por recordar os meus filmes – disse eu.
– De qualquer forma, houve outros que interpretaram Sherlock Holmes, e continuam a fazê-lo; mas nenhum como o senhor.
– Pois não pense que isso faz feliz a quem também foi um ator clássico – expliquei com amargura. – Trinta e dois papéis em dezassete obras de Shakespeare, duas dúzias de filmes como intérprete de outras personagens... Tudo isso caiu no esquecimento. O famoso detetive engoliu-o.
Fez uma expressão resignada e observei outra vez a inglesa. Tinha-se sentado junto da porta envidraçada, como se esperasse alguma coisa. Gérard parecia querer tranquilizá-la. Vi que Evangelia atravessava o terraço e descia pela escadaria, dirigindo-se ao jardim contíguo à praia do hotel.
– E o que faz o senhor aqui? – Voltei a atenção para o meu interlocutor.
Contou com simplicidade, sem reservas. Estava confinado em Utakos quase por acaso, no termo de uma aventura sentimental com desfecho pouco feliz. Ela, casada, tinha decidido romper a relação, furiosa pela sua recusa em apoiá-la numa separação legal do seu marido. Por isso, dois dias antes, após uma noite de discussões e reprimendas, fez as malas e pediu que lhas levassem ao ferry. Teve sorte e embarcou no que ia ser o último navio que tinha tocado Utakos antes de o temporal ter deixado a ilha incomunicável. A ele, por esperar o seguinte, já não lhe deu tempo.
– Então, é solteiro – supus. – Felizmente.
– E a que se dedica?
– Escrevo romances.
– Ena, caramba. Talvez tenha lido algum romance seu.
– Duvido. São histórias baratas, policiais e do Oeste, que se publicam em Espanha e na América Latina. Nenhuma, exceto um conto, está traduzido para outras línguas... Romance popular, imagine, que escrevo com dois pseudónimos diferentes: Frank Finnegan e Fox Creek. – Piscou-me o olho, cúmplice. – Que lhe parecem?
Sorri.
– Qual é o do Oeste?
– Creek, é evidente. O outro, Finnegan, é especializado em loiras platinadas e detetives privados bêbedos.
– Caramba. Está a impressionar-me.
Deu uma alegre gargalhada.
– Não sei se está a falar a sério. Mas não pense que isso não me agrada.
– Disse-o sinceramente. De romances de índios e de cowboys não sei grande coisa, mas sempre tive curiosidade pela construção dos romances policiais. Reli muitos na minha época Holmes, claro, de diversos autores.
– Releu?
O meu interlocutor parecia satisfeito ao ouvir aquilo. Confirmei, divertido.
– O que eu gosto nesse tipo de romances é que, tirando os grandes clássicos, são os únicos que se prestam a lê-los duas vezes.
– Compreendo. Uma para desvendar o mistério e outra para verificar como é que ali chegou... Refere-se a isso?
– Sim, exato. E o que mais me fascina é a arte narrativa do engano.
Anuiu com agrado.
– Gosto que veja as coisas desse modo, porque tem toda a razão. Nos bons romances com enigma, a solução está à vista desde o princípio.
– Convenientemente oculta – respondi.
– Exato. O senhor deve ser muito bom leitor.
Fiz um gesto de modéstia, ou da modéstia que um ator é capaz de se permitir. Que nunca é muita.
– Só razoável e por razões biográficas – respondi. – Interpretar aqueles filmes deixou-me certos hábitos.
– É maravilhoso. – Observava-me, admirado. – Nada mais, nada menos do que Hopalong Basil em pessoa...
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