INTRODUÇÃO
Tempo é luto
Começa aqui uma viagem sobre o fim, nas múltiplas formas de que ele se reveste e como se impõe. Tudo acaba a todo o instante, ou, como escreveu Wisława Szymborska, «quando pronuncio a palavra Futuro, / a primeira sílaba já pertence ao passado»; do mesmo modo que existe uma natalidade presente em todas as coisas, um recomeço constante, assim o surgimento de algo novo implica perda, deixar de ser o que era. E, no meio dessa perda, da transformação em nada face ao tudo, para usar a formulação de Pascal, há sempre um nascimento. Essa simultaneidade é inerente a todos os fenómenos. O tempo é luto, pois empurra constantemente com uma mão — para um passado inacessível — tudo o que foi criado, mas é também celebração, na medida em que cria com a outra. Trata-se de dois movimentos, mas apenas na aparência: analisados atentamente, reduzem-se a um fenómeno. Por isso, encontramos sempre uma forma de contradição quando pensamos nesta coreografia de dois rostos: por vezes, a perda imensurável, outras, a surpresa da criação e metamorfose; por vezes, estamos perante o abismo da extinção, outras, a contemplar um campo de girassóis ou a ouvir a voz de Chavela Vargas cantar os dois beijos que leva na alma: «el último de mi madre y el primero que te di». Morte e vida, o último e o primeiro. Se neste livro pretendo falar do fim, dele será sempre indissociável o início. Há ainda uma terceira face, que tantas vezes passa despercebida, porque emerge em diferentes manifestações: a transformação do mundo em narrativa, em representação, em memória, em arte, em algo que, não sendo a própria coisa, é a sua dimensão depurada ou destilada.
No estamos en guerra
Cheguei a Santiago, capital do Chile, no início do Outono, durante a fase mais conturbada dos protestos de 2019. Era noite, havia recolher obrigatório, encontrando-se, por isso, as ruas mais ou menos vazias, algumas delas em muito mau estado, com buracos e as pedras do pavimento reviradas, pedaços de ferro ou betão espalhados, postes partidos, carros partidos, montras partidas, múpis partidos. Tudo o que via confirmava os avisos de amigos chilenos para que não fosse ao Chile naquela altura. As ruas estavam um caos, cheias de buracos, era difícil circular. As viagens com buracos, lugares onde podemos tropeçar, sempre me fascinaram, e considero que o valor da viagem depende também, ou sobretudo, desses buracos, das surpresas que nos são impostas no caminho. Ao contrário das viagens planas — que são isso mesmo, planas —, não acabam engavetadas num armário qualquer das nossas memórias, cheio de naftalina, corroboradas apenas por um monte de fotografias que ninguém quer ver e que é a única maneira de preservar a memória de viagens insossas e defendê-la das traças, da corrosão, uma recordação morna de um tempo morno, incomparável aos acontecimentos que jamais precisarão de naftalina, pois a sua espessura é tal, que nos assoberba e abraça, nos pontapeia e, se puder, nos esfaqueia, deixando as suas cicatrizes. Por vezes, também literais, como é este o caso.
Fiquei alojado num pequeno apartamento no centro. Ouviam-se helicópteros a sobrevoar a cidade, algumas sereias. Ao olhar pela janela, vi um grande mocho pousado no telhado do prédio em frente, solene e pétreo, intocado pelo caos das ruas e pela presença dos helicópteros, e a sua estranha imagem, recortada como um aviso mitológico, encarnando uma espécie qualquer de tragédia, com a sua presença que furava a noite e a condensava na sua figura, compeliu-me a pegar na câmara fotográfica e tentar uma fotografia fadada ao insucesso, pela distância, escassez de luz e falta de objectiva que pudesse captar aquele momento com toda a carga cénica que transportava.
A presença daquele mocho revestia-se duma dimensão profunda, a concretização da noite animalizada numa testemunha mais ou menos sinistra, manifestando a constante iminência da morte, cuja proximidade haveria de ser mais do que evidente durante toda essa viagem.
No dia seguinte, apercebi-me de um cheiro que se derramava pela cidade, omnipresente, e não dei logo conta do que significava.
Durante o dia, a capital era varrida por uma agitação permanente, grupos que fugiam da Polícia, das balas de borracha e do gás que empestava tudo.
«No estamos en guerra» era a frase de ordem. Via-se escrita em todo o lado, ouvia-se em todo o lado, contrariando o ambiente que se sentia nas ruas. «No estamos en guerra.»
Repetia-se.
«No estamos en guerra.»
A insistência nesta frase tinha razões históricas: depois do golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973, que derrubou o Governo democraticamente eleito de Salvador Allende, o general Augusto Pinochet cometeu um sem-número de atrocidades, escudado na ideia de que o país estava em guerra, criando, por exemplo, a missão chamada «Caravana da Morte», uma operação militar comandada pelo general Sergio Arellano Stark, que percorreu várias cidades do país para acelerar a execução de prisioneiros políticos (dezenas de pessoas foram submetidas a julgamentos sumários, torturadas e executadas, transformando este episódio num símbolo da violência do regime de Pinochet). Por esse motivo, e para que não se repetissem episódios idênticos aos da ditadura, o povo negava agora essa condição, o que não haveria de ser suficiente para impedir inúmeras formas de violência, tortura e mortes.
Mudar de camarote no Titanic
Alguns dias depois da minha chegada, almocei com R., um amigo editor e livreiro de origem mexicana que está radicado no Chile há vários anos. Contou-me que sempre se gabara, junto dos seus conterrâneos, da vida tranquila que levava em Santiago. Já não se podia gabar dessa tranquilidade e, uns dias antes, enquanto conversava ao telefone com um amigo mexicano sobre o assunto, haveria de ouvir a seguinte frase: «Mudar de país na América Latina é como mudar de camarote no Titanic.»
Quando saímos do restaurante, numa grande avenida vazia, com quatro faixas separadas por um passeio ajardinado (ou mal ajardinado), dois guanacos que se encontravam do outro lado começaram, sem qualquer motivo, a disparar gás contra nós, cegando-nos momentaneamente, quebrando a tépida monotonia de início de tarde e a lassidão pós-almoço. O ataque injustificado tomou-nos de surpresa, e hesitámos em que sentido seguir, sem saber se deveríamos voltar para trás ou continuar em frente. Com os olhos e a cara a arderem, optámos por correr na direcção oposta à que seguíamos, o que se revelou uma péssima escolha, pois era precisamente para onde estavam virados os guanacos. Os carabineros inverteram o sentido da marcha para a faixa mais próxima de nós, num espaço em que a avenida permitia a manobra, e aproximaram-se, parando a escassos dois ou três metros — havia apenas, entre nós e eles, a distância que o passeio permitia —, e os jactos de gás atingiram-nos directamente na cara, queimando-a. Sem conseguirmos ver quase nada, corremos para trás dum quiosque e depois para uma rua perpendicular à avenida, por onde seguimos a cambalear. Era uma rua larga, também deserta, de sentido único. Quando recuperámos um pouco da visão, os blindados tinham dado a volta ao quarteirão, numa perseguição evidente, e estavam agora à nossa frente, avançando para nós. Olhámos para todos os lados. Não havia outra rua, nem maneira de escapar. Ou continuávamos na sua direcção ou voltávamos para trás e seríamos obviamente apanhados em poucos segundos. Nenhuma das possibilidades era solução, estávamos encurralados, e sem saber porquê. Os carabineros não se teriam dado a todo aquele trabalho apenas para nos verem chorar por causa do gás e nos darem umas traulitadas; não podia ser apenas um grupo de arruaceiros fardados que se entretinham a provocar lágrimas nos rostos de quem se cruzava com eles, tinha de haver algo mais por detrás daquela perseguição. Fosse o que fosse, ali estávamos nós, vacilantes, a ver os guanacos avançarem na nossa direcção, fazendo-nos sentir como animais selvagens apanhados numa armadilha.
O focinho dos guanacos
Sem lugar para onde fugir, eu e R. descobrimos um beco que terminava num enorme portão de metal. O espaço não nos oferecia qualquer tipo de escapatória, sendo, na verdade, o pior refúgio concebível naquela situação, uma vez que nos tínhamos distanciado do olhar de possíveis testemunhas ou de alguém que pudesse interromper a perseguição — o desespero não é bom conselheiro. Encostámo-nos à parede, não havia saída. Sabíamos, nós e eles, que já não se tratava de violência extemporânea, mais ou menos impetuosa, mas de uma perseguição deliberada que estava a ser levada ao limite, e o limite éramos nós, encostados à parede dum beco, à espera duma sentença aleatória, tão grotesca
quanto gratuita.
O primeiro guanaco parou mesmo ao nosso lado. De onde estávamos, víamos apenas a parte da frente do veículo, que fazia lembrar o focinho de um predador, um dinossauro que nos observava de lado, como fazem algumas aves. Durante segundos, os carabineros olharam-nos através dos vidros escuros do blindado. Se naquela manhã eu tinha andado no meio dos protestos, já a zona onde almoçáramos estava perfeitamente tranquila, sem sinal de manifestantes ou manifestações, e a rua onde nos encontrávamos agora não tinha nenhum pedestre senão nós os dois. Tirei o casaco para tentar proteger o rosto. Eis-nos ali, encurralados num beco, sem testemunhas, à espera de um qualquer desenlace.
É desse lugar, em que a morte nos espreitava através do vidro escuro dum blindado, que quero escrever este livro. Dali, onde estava com R., suspenso entre a vida e a morte (lugar a que haveria de regressar, nesta mesma viagem, acabando nas primeiras páginas dos jornais), tenho o espaço privilegiado para falar do fim do mundo, da esperança, da alegria, do desespero. Ali, pendurado na incerteza, com os pés junto ao abismo, e não à secretária diante da qual me sento agora: estas palavras vêm desse beco, com a cabeça coberta, à espera do fim, e são projectadas no presente, como um ser mitológico com o corpo no passado e a boca no futuro. Este livro nasce de um beco.
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