CAPÍTULO 1
A estrada para lá do portão de segurança, ladeada pela folhagem do verde intenso de junho, descrevia suavemente uma curva até desaparecer de vista.
– Código? – Conor não conseguia recordar-se de nenhuma alusão de John Price a um código do portão. – Isso não é um intercomunicador?
O taxista abanou a cabeça.
– É preciso um código para entrar – disse.
Conor tentou telefonar a John, mas a ligação nem chegou a ser estabelecida – uma única barra, indicativa da rede precária ali existente. O telemóvel do taxista também não apanhava sinal.
– Talvez possa continuar a pé – sugeriu o homem enquanto a fina máscara cirúrgica lhe caía do nariz, à semelhança do que acontecera várias vezes durante a corrida. Conor sentiu-se satisfeito por a mãe ter ficado a salvo no apartamento deles em Yonkers, onde quase toda a gente andava ainda protegida nos espaços públicos.
O mapa do telemóvel não estava a carregar, por isso ele não sabia onde se situava exatamente a casa de John naquela península de três quilómetros que se erguia na costa meridional do Massachusetts. Tinha de transportar uma mochila a abarrotar, uma mala com uma roda estragada, o saco de ténis de pôr ao ombro com três raquetes e, o mais volumoso e incómodo, outro saco com a máquina portátil de encordoar, que pesava uns treze quilos. Todas as etapas da viagem que fizera a pé desde aquela manhã – do apartamento da mãe até ao Mitsubishi dela, do carro até à estação de Metro-North, da Grand Central até ao táxi que o levara a Port Authority e daqui ao autocarro para Providence, Rhode Island, e depois para este táxi – tinham-no obrigado a arrastar-se como uma lagarta.
Mas as opções eram caminhar ou esperar, com o taxímetro a contar, que outro automóvel abrisse o portão. Conor pagou, tirou as suas coisas da bagageira e passou por uma abertura destinada a peões. Uma tabuleta de madeira, pregada a uma árvore, deu-lhe as boas-vindas, numa letra manuscrita:
Propriedade Privada
Entrada Proibida
ASSOCIAÇÃO DE CUTTERS NECK
Na estrada estreita de Cutters Neck, que se bifurcava e serpenteava ao longo da península, não se ouvia nada a não ser o canto dos pássaros e o estridular metálico dos insetos. Na beira do caminho, a madressilva adoçava o ar marítimo acre. À esquerda via-se um veleiro sonolento na baía plácida. O Atlântico também se avistava do outro lado do istmo em forma de salto agulha.
Conor tinha visto fotografias aéreas do local em sites de imobiliárias, mas nada o preparara para a beleza praticamente intacta do local que agora atravessava – onde, e ainda lhe custava a crer, iria viver durante o verão. Tirou uma fotografia ao mar para mandar à mãe mal tivesse rede.
Passou pelo primeiro caminho de acesso: um arco de gravilha que se curvava na direção de uma casa cravejada de vigias, com telhas cor de ardósia escurecidas em certos pontos como bananas demasiado maduras. Na entrada era bem visível um tranquilizador letreiro a proclamar black lives matter (1): ele não fizera ideia do que esperar do ponto de vista político de um condomínio fechado na ultraconservadora Nova Inglaterra.
As poucas casas seguintes seguiam o mesmo estilo arquitetónico. Não se viam adornos, salvo uma enorme bandeira dos Estados Unidos que drapejava à brisa numa das entradas.
Conor pousou a máquina de encordoar e esfregou o braço dorido. Arrependia-se já de a ter trazido: podia até nem lhe dar uso durante todo o verão. Ainda havia uma loja desportiva na vila que encordoava raquetes, mas ele não estava para pagar um serviço que conseguia fazer.
O primeiro sinal de vida humana nesta paisagem idílica foi dado por um carrinho de golfe que passou a zumbir, capitaneado por uma pré-adolescente loira, com dois miúdos mais novos e ainda mais loiros ao lado dela. Conor sorriu-lhes e acenou de forma amistosa, esperando que lhe oferecessem boleia na retaguarda, mas os três limitaram-se a olhar fixamente para Conor à sua passagem, inexpressivos como atores infantis num filme de terror.
Por fim, chegou à caixa de correio do endereço de John, cujo número, felizmente, tinha memorizado. A meio do caminho de acesso relvado, entre a álea de árvores, via-se um curto trilho perpendicular que conduzia a um bosquete. Ali ao fundo, recuado, numa pequena clareira de onde se avistava a casa de John, escondia-se um bangalô, o alojamento gratuito de Conor até ao fim do verão.
Não totalmente gratuito – pago por meio de uma troca direta. Como não tivera sorte no mercado de emprego e entrara em pânico por ter de reembolsar o empréstimo académico de 144 mil dólares das propinas da faculdade de Direito mal o confinamento da pandemia foi levantado, Conor contactara em maio o clube de ténis de Upper East Side onde tinha trabalhado durante os verões enquanto tirava o curso. O confinamento obrigara ao encerramento do local, mas o seu antigo patrão informou-o de uma oportunidade de trabalho que tinha acabado de lhe ser comunicada: um membro do clube estava na disposição de oferecer alojamento no seu bangalô à beira-mar em troca de aulas seis vezes por semana, e o instrutor poderia ganhar mais dinheiro dando aulas a outros residentes na área que tal desejassem.
E agora ali estava ele. A porta encontrava-se entreaberta – quando ele perguntara pelas chaves, John respondera que ninguém fechava as portas no istmo, o que inquietou o natural de Nova Iorque habituado ao ritual noturno de fechaduras e correntes. No bangalô amplo havia uma cama de solteiro e uma secretária, uma kitchenette, uma pequena casa de banho com chuveiro. John abastecera o frigorífico e os armários e deixara-lhe uma bicicleta com um cesto para a viagem de vinte minutos até ao mercado da aldeia.
Poucos luxos, mas também poucas distrações: um sítio ideal para se refugiar durante os oitenta e quatro dias de estudo que lhe faltavam para o exame da Ordem, entre aulas de ténis.
O telemóvel de Conor parecia captar agora alguma rede, embora ainda apenas uma barra, mas a bateria já com sete anos estava nas lonas. Enviou a fotografia do mar à mãe e um SMS a John a dizer que tinha acabado de chegar.
Passados poucos minutos, ouviu uma pancada na porta. Quando a abriu, viu um homem elegante, na casa dos sessenta, a uns quatro metros de distância. Trazia vestido um casaco e uma gravata escuros que não combinavam com os calções cor de salmão e as sandálias.
– Bem-vindo a Cutters – disse John com um aceno.
– Prazer em conhecê-lo, Mr. Price. – Apesar de se encontrarem a uma distância segura, Conor tirou a sua máscara do bolso e colocou-a, em sinal de respeito.
– Chame-me só John, por favor. E não há necessidade da máscara quando estamos ao ar livre.
– Claro – disse Conor. – A minha mãe tem diabetes, por isso estou habituado a usar sempre máscara.
O seu olhar foi de novo atraído para a parte inferior do corpo de John. Nunca tinha visto um homem com calções cor-de-rosa.
John reparou e indicou as pernas com um gesto.
– Tenho estado a ter reuniões via Zoom, daí este aspeto de homem de negócios de bermudas. Creio que a pandemia é a nova sexta-feira com roupa informal.
– Eu vim de autocarro desde Port Authority, daí isto... – Conor indicou com um gesto a sua indumentária amarrotada.
– Aquela estação de Providence não há maneira de melhorar – observou John, com um risinho. – Uma pessoa daqui estacionou lá o carro. Deixou-o quinze minutos e em plena luz do dia foi assaltado. Não lhe recomendei que viesse na Amtrak?
Recomendara, mas o bilhete de comboio mais barato era cento e dezanove dólares, e o autocarro custara trinta e quatro.
– Sempre gostei mais de autocarros – disse Conor.
John informou-o das idiossincrasias do bangalô e disse que apareceria na manhã seguinte para ir a pé com ele até ao court.
– Oh – acrescentou, quando já ia a afastar-se. – Há uma festa no istmo, hoje à noite. Ao ar livre, claro. Considere-se sempre convidado por mim para todos os eventos sociais do istmo.
– Muito obrigado – respondeu Conor. – Estou bastante can- sado, por isso talvez prefira ficar por aqui.
– Tem a certeza? Bem sei que socializar com um enxame de WASP (2) formais talvez não seja o melhor programa noturno, mas pode ser que arranje mais clientes. Isto se não se importar de misturar negócios e lazer...
Conor tinha apenas três aulas de ténis agendadas, além das sessões com John não pagas. Ainda que todas estas se convertessem em aulas semanais, ele precisaria que o verão lhe rendesse bastante mais.
– Desde que os WASP não piquem – respondeu.
Passados uns torturantes segundos em que Conor pensou que a sua piada de mau gosto teria sido considerada ofensiva, John sorriu.
– Se picamos, já nem damos conta – disse ele. – Tornámo-nos imunes.
John dissera-lhe que o bangalô tinha também um duche exterior nas traseiras, por isso Conor decidiu experimentá-lo. Nunca tomara um verdadeiro duche no exterior. O vento entrava pela janela do cubículo de madeira, situada ao nível dos olhos, que permitia uma boa vista para o mar azul-esverdeado à distância. Em contraste, a casa de banho em Yonkers não tinha janelas era acanhada, e com a covid eles tinham tido receio de chamar alguém para consertar o ventilador que avariara em abril: agora, cada duche transformava-se numa sauna claustrofóbica.
Ele nem acreditava na sorte que tinha tido – não só conseguira um trabalho de que precisava tanto, como o local de trabalho incluía um chuveiro ao ar livre com vista de mar.
Poucos minutos antes das seis, ele entalou a camisa com botões no colarinho no seu único par de calças caqui e dirigiu-se para a festa. O seu nervosismo ia aumentando à medida que se aproximava, inseguro quanto à indumentária: estaria vestido de forma adequada? (Deveria ter trazido o blazer de casa? Onde é que se podia comprar calções cor-de-rosa?) No seu trabalho como instrutor de ténis já tinha lidado com muitas pessoas mais velhas e abastadas e sabia como se conduzir junto delas: ser extremamente educado, mostrar-se de bom humor, e ser deferente, como um empregado num restaurante de classe. Todavia, Cutters Neck estava a um nível ainda mais rarefeito, e além disso, o que era pior, agora iria viver entre eles, no seu próprio território.
Umas dezenas de convidados deambulavam nas traseiras da casa, junto de uma piscina infinita que parecia supérflua, rodeados como estavam pelo mar infinito. Os convivas eram sobretudo pessoas mais velhas que, como John, haviam buscado ali refúgio do vírus, mas via-se também um grupo de universitários ou liceais e vários bandos irrequietos de crianças e respetivos progenitores.
Conor reparou de imediato que não se avistava uma única máscara. Mesmo tendo as recentes manifestações a propósito de George Floyd sugerido que os ajuntamentos ao ar livre poderiam ser seguros, uma festa concorrida era arriscada o suficiente para o fazer considerar dar meia-volta. Se contraísse covid, ninguém quereria aulas suas durante, pelo menos, duas semanas.
Mas era verdade que ele precisava de angariar mais trabalho. Não querendo chamar a atenção como hipocondríaco ou alguém com sin- tomas, manteve a máscara no bolso e foi direito às entradas, pois não tinha comido nada substancial desde o pequeno-almoço. Porém, ao ver duas pessoas antes dele retirarem os seus ovos cozidos da bandeja com a mão, ignorou a comida e decidiu-se por um gim tónico.
John encontrou-o e arrastou-o para junto dos restantes. Os homens – dois igualmente de calções cor-de-rosa e outro de calças vermelho-tomate – disseram todos o nome e o apelido enquanto lhe apertavam a mão com vigor, por isso Conor seguiu-lhes o exemplo. Conheceu a amistosa mulher de John – que afirmou fazer exercício não a jogar ténis mas a cortar as plantas invasoras do istmo – e três pessoas que já se tinham inscrito nas suas aulas. John apresentava-o a todos como o excecional instrutor de ténis vindo de Westchester (não de Yonkers, reparou Conor) cujas aulas estavam a preencher-se rapidamente. A maioria dizia, infelizmente, que ou nunca tinha jogado ou há anos que não o fazia. Muitos dos residentes tinham vagas parecenças, à exceção de um excêntrico descabelado que perorava sobre os perigos das toxinas na água.
Tirando este, os residentes de Cutters mostraram-se sociáveis e receberam-no bem, por isso Conor começou a descontrair-se. As pessoas muito ricas não deixavam por isso de ser pessoas.
– Oh, é tão atraente! – exclamou a anfitriã, com o seu cabelo grisalho a denunciar uma interrupção recente nas idas ao cabeleireiro. – Tem a certeza de que é instrutor de ténis e não ator?
– O último papel que representei foi na primária – disse Conor, baixando a cabeça, acanhado. O embaraço era real, ainda que a modéstia esquiva e o sorriso confundido se tivessem já tornado um hábito. Sabia, por experiência, que esta era a única resposta aceitável, pois desvalorizar por completo o cumprimento seria tão egoísta como aceitá-lo sem reserva.
O efeito que exercia nas mulheres era o único campo da sua vida em que nunca tivera de fazer grandes esforços. Era pura sorte genética, claramente uma vantagem, mas em certas ocasiões conseguia perceber em parte o constrangimento que ele imaginava que as mulheres bonitas sentiriam: ser ao mesmo tempo desejado e objetificado, mirado e não visto de todo. Algumas pessoas – em especial os professores – pre- sumiam que era pouco inteligente, até ele revelar o contrário.
Não se queixava, claro, mas se pudesse escolher uma vantagem nata, escolheria o dinheiro. Esta tornaria muitas coisas mais fáceis, desde a saúde da mãe às suas expectativas de carreira, passando pelo conforto básico de não ter de atravessar quatro estados com a sua bagagem às costas, de autocarro.
– Então e a política? – A mulher, cujo nome Conor não apanhara, voltava à carga. – Tem aspeto de quem podia ser presidente. Não achas que ele tem aspeto de presidente, John?
– É verdade que tem algumas semelhanças com o Kennedy – admitiu John. – Antes de lhe dar o meu voto, diga-me: tem esque- letos no armário? Atirou alguém de uma ponte?
– Ninguém que já tenham encontrado – respondeu Conor, agora ainda mais constrangido, sob o escrutínio de John. – Tem uma piscina maravilhosa, já agora – disse ele, esperando mudar de assunto.
– Obrigada disse ela. – Sabia que a Suzanne Estabrook estava no mesmo hotel que o Teddy Kennedy, em Martha’s Vineyard, no fim de semana em que ele caiu da ponte em Chappaquiddick?
A conversa voltou-se naturalmente para as eleições presidenciais. – O Tom Becker vai votar nele – confidenciou ela.
– Está a brincar comigo... Outra vez? – perguntou John. – Não aprendeu a lição?
– Ao princípio ele não quis admitir. A Sally teve praticamente de lho arrancar a ferros.
– Não se preocupe – disse John a Conor. – Só temos no istmo cinco ou seis eleitores que votam em Trump. Adoraríamos livrar- -nos deles, caso tenha algumas ideias.
Após alguma conversa em torno da covid (a anfitriã: «Não gosto nada de dizer isto, mas é sobretudo uma questão de classe. Eu ficaria absolutamente em choque se alguém de Cutters morresse disso. Nem sequer penso que alguém daqui a apanhe»; John: «Oh, vamos todos apanhá-la. Vamos todos acabar por apanhá-la. A única questão é saber quando») e mexericos sobre um casamento adiado no istmo e a extravagante lista de presentes do casal (um garfo Tiffany – um só garfo, precisou a anfitriã, não um faqueiro – custava trezentos e sessenta dólares), John afastou-se para cumprimen- tar outra pessoa. A anfitriã retirou-se também, mas antes disse ainda a Conor que se ia ausentar na segunda-feira durante duas semanas e ele poderia usar a piscina à vontade durante esse período.
– Obrigado – disse ele. – A verdade é que não sou grande nadador.
A rapariga que ele vira a conduzir o carrinho de golfe à chegada passou a correr envergando um vestido às flores e reuniu-se a um grupo de jovens com indumentárias semelhantes. Ali eram todos brancos, com a única exceção de uma família negra cujo pai e filho exibiam polos quase idênticos.
A festa tinha sido um fiasco no tocante a trabalho. Ele devia pirar-se agora, enquanto John estava ocupado, mas o cocktail que fora bebericando só tinha enfatizado o quão o seu estômago estava vazio. Dirigiu-se para as entradas quando não estava ninguém por perto e, com a cautela mandada às urtigas pela bebida, devorou numa sucessão rápida quatro metades de ovos cremosos. Depois pegou na garrafa de gim de boa qualidade para acompanhar a comida, mas, antes de a inclinar para o copo, ergueu-a nas mãos. Tinha de compensar o dia de estudo que perdera em viagem e uma bebida era o seu limite para se conseguir concentrar nos livros.
Os universitários conversavam numa roda, junto da piscina. Apesar de poucos parecerem ter idade legal para beber, todos seguravam copos largos ou de vinho, numa atitude que indiciava grande familiaridade com festas à beira-mar repletas de cocktails. Em uníssono, riam-se com a despreocupação dos jovens que não têm de estudar para nada, que não têm empregos que os obrigam a acordar cedo, que podem beber quanto quiserem sem que haja consequências. Conor não conseguia imaginar o que seria sentir-se assim. Para ele, tinha sempre havido um treino matinal de ténis, um local de trabalho onde picar o ponto, dinheiro a ganhar para ajudar a pagar a renda, um teste ou um ensaio iminentes, um livro grosso a resumir.
A distância que sentia em relação aos seus pares não se devia apenas ao fosso que entrevia nas respetivas responsabilidades. Nem ao facto de se sentir sempre um pouco perdido quando os ouvia murmurar, num calão que ele não dominava, acerca de algo que nesse momento era popular nas redes sociais, ou um novo programa televisivo ou uma canção ou uma celebridade. Era o modo como falavam de si próprios, o que divulgavam sem pejo a quem os quisesse ouvir, exibindo a fragilidade como uma prova de força, orgulhando-se das feridas e das fraquezas que outrora eram motivo de vergonha. Conor supunha que seria benéfico para eles, mas anunciar ao mundo a própria vulnerabilidade era uma coisa para ele incompreensível. Num jogo de ténis, nunca se revela uma lesão a um adversário, se se puder evitar.
Atravessou-lhe o espírito uma imagem dele a carregar sobre o grupo, qual bola de bowling lançada a um conjunto de pinos de madeira clara, e a derrubar os miúdos ricos para a piscina.
Quando se preparava para trocar o gim por uma água com gás, uma voz atrás dele, grave mas distintamente feminina, perguntou:
– Vai servir-se dessa garrafa, ou dar-lhe um beijo?
A mulher era alta, quase da altura de Conor. Uns grandes óculos escuros refletiam o sol poente, e a aba larga de um chapéu de palha sombreava um rosto exangue cujas feições afiladas cortavam o ar como a proa de um navio. O cabelo de comprimento médio era quase tão loiro como o das crianças que andavam por ali por todo o lado. Uma rede de veias azuis percorria a pele quase translúcida dos seus braços musculosos.
– Peço desculpa – disse ele. – Queria... Posso servi-la?
Ela estendeu o seu copo ainda três quartos cheio, como se ele fosse um empregado.
– Não se acanhe – disse ela, apontando-lhe um dedo, depois de ele a ter servido com parcimónia. – Não vou conduzir.
Ele fez o que lhe indicavam e acabou de encher o copo com um pouco de água tónica, e depois, quando ela acenou para o balde de gelo, com dois cubos retirados com pinças.
– Ora, ora – disse ela. – Não o estou a reconhecer. É um bastardo?
– Perdão? – disse ele, tão chocado pela falta de educação dela que nem estava certo de ter ouvido bem.
– Um bastardo é o filho ilegítimo de alguém. Estou a perguntar se essa é a razão por que não o reconheço.
A pergunta bizarra, feita sem a entoação de uma piada, fê-lo esquecer-se momentaneamente da razão por que estava ali.
– Não, sou... Sou o instrutor de ténis. – Tecnicamente, tinha certificação apenas para treinador amador, e não instrutor profissional, mas o antigo patrão recomendara-lhe que embelezasse um pouco a verdade, para conseguir aquele emprego.
– Sou o instrutor de ténis – repetiu ela, como um robô. – E gosta de ser chamado pela sua profissão, ou também tem um nome?
– Conor O’Toole.
– Ah, sim. Mandaram um e‐mail sobre umas aulas. – Ela ergueu o queixo; por trás das lentes escuras estaria provavelmente a estreitar os olhos com suspeita. – Não está a tentar enganar-nos a todos, pois não, Conor O’Toole? Não é um vigarista a fazer-se passar por instrutor de ténis, com um intuito nefando?
A mulher disse aquilo sem sorrir e deu um gole, sempre de óculos escuros assestados nele. Era raro as mulheres deixarem-no constrangido, mas bastou um minuto a falar com ela para Conor se sentir inseguro e hesitante, como se um ajuntamento de peões o estivesse a observar enquanto estacionava em paralelo.
– Só vim dar aulas – acabou por dizer.
– Bastante útil. Bom, e então como é que uma pessoa pode ter uma aula com o muito sério Conor O’Toole?
– A informação está toda no e‐mail que o John enviou. – Ao ver que ela não reagia, acrescentou: – Cento e cinquenta dólares por uma aula de uma hora.
(Conor sugerira inicialmente o número redondo de cem dólares, mas John dissera-lhe que iria atrair mais clientes se cobrasse cento e cinquenta, pois «aqui ninguém vai pensar que é bom, se não custar o suficiente».)
– Não é de bom-tom falar de dinheiro – disse ela.
Esta frase foi proferida de modo mais cortante do que o resto do seu discurso provocatório. Conor sempre pensara que a transparência era do interesse do cliente, mas agora era-lhe evidente que tinha cruzado uma das linhas tácitas de conduta desta comunidade e acabara de se denunciar como o impostor que ela o acusara de ser.
– Peço descul... pa – disse ele.
Poucas semanas depois do início do oitavo ano, Conor desenvolvera uma gaguez, aparentemente de um dia para o outro. Tinha começado de forma discreta, uma pausa breve no meio das palavras, aqui e ali. Mas em poucos meses começou a aparecer com frequência quando ele proferia mais do que umas poucas frases, o atraso a aumentar tortuosamente: a mente sabia qual era o próximo som e queria prosseguir, mas os pulmões e a língua recusavam-se a cooperar.
A mãe assegurou-lhe que aquilo acabaria por passar de moto próprio, mas Conor temia que não fosse assim. Ouvira dizer que Joe Biden, que em breve se tornaria vice-presidente, tinha superado uma gaguez de infância declamando poesia irlandesa horas a fio, diante de um espelho. Conor decidiu imitar o político, mas com as revistas médicas que a mãe trazia do consultório de gastroenterologia onde trabalhava: achava que se, a sua língua conseguisse dominar o hermético jargão da especialidade, lidaria facilmente com o discurso do dia a dia.
Pensando agora nisso, era quase cómico, um rapaz de treze anos a enunciar diligentemente até à hora de dormir endoscopia superior e tratamento de fissuras anais de números antigos de Diseases of the Colon & Rectum, mas a verdade é que tinha funcionado. O segredo estava em deixar de pensar no assunto mal aquilo acontecia, pois se não o fizesse, se continuasse a preocupar-se, havia a possibilidade de se enraizar.
Os óculos escuros da mulher escrutinaram-no mais uma vez, como que documentando secretamente a existência de um defeito, a marca de uma qualquer inferioridade nata. O termóstato corporal de Conor registou um pico e ele sentiu um prurido de transpiração na linha de implantação do cabelo.
– Tenho disponibilidade na terça-feira, às cinco. – O tom dela era de quem marcava uma hora, não de quem perguntava se ele estava livre.
– Certo – disse ele, mantendo as suas sílabas no mínimo.
– Vemo-nos então nessa altura, Conor O’Toole – disse ela, e afastou-se.
Só mais tarde, quando escovava os dentes em casa, é que ele se apercebeu de que não anotara o nome dela.
– Vigarista com um intuito nefando – disse ele para si mesmo, em frente ao espelho.
Preparava-se para arrecadar seiscentos dólares àquelas pessoas, na sua primeira semana. Se era um vigarista, seria um vigarista com escassos resultados.
(1) As vidas dos negros são importantes. (N. da T.)
(2) WASP: acrónimo de White Anglo-Saxon Protestant (Protestante Anglo-Saxão Branco). Além disso, a palavra wasp significa «vespa». (N. da T.)
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