São tantas plumas, tantas, mais que num Carnaval no Rio, e vão-se desfazendo e espalhando pequenos tufos pelo chão, dando a ilusão de que há dezenas de flores a desabrochar pelo Passeio Marítimo de Algés. Aos ombros, verdes, rosa, azuis, todas as cores do arco-íris. Os fãs vestiram-se a rigor para, pela segunda vez no espaço de um ano, receber Harry Styles em Portugal. As iniciais, H e S, nos rostos, nas calças, nas camisolas. Alguns tiveram a sorte de, na véspera, poder cumprimentar o artista britânico, que andou a passear-se por Lisboa. Outros, contrariando as indicações da promotora Everything Is New e das autoridades, acamparam nos arredores do recinto de forma a que, assim que soasse a abertura de portas, pudessem correr como jamais correram na vida, na direção do palco, a resistência conquistada nas aulas de Educação Física a dar fruto.
Esperaram horas e horas para entrar e mais horas esperariam, caso fosse preciso. Falamos de Harry Styles e não de uma pessoa qualquer. Falamos de alguém capaz de levar 60 mil pessoas até o Passeio Marítimo de Algés, a uma terça-feira. Sim, é época de verão, muitos estão de férias. O sol de verão incomodou, a sede ia sendo morta com recurso a garrafas de água, as necessidades fisiológicas como que relegadas para segundo plano – a adrenalida faz milagres pelo corpo humano. Mais espaço houvesse em Algés e Harry Styles teria levado 70, 80, 100 mil pessoas, mais espaço houvesse em Lisboa e, quem sabe, o número de pessoas nas Jornadas Mundiais da Juventude poderia ser ínfimo quando comparado com o número de fãs de Harry Styles por todo o mundo. Não, não queremos dizer que Harry Styles é maior que Jesus Cristo – isso só os Beatles.
Ouvimos os Beatles, no PA, 'All You Need Is Love' a soar poucos minutos antes do início do espetáculo. E depois veio 'Bohemian Rhapsody', dos Queen, porque qualquer concerto pop de massas precisa de ter 'Bohemian Rhapsody', para que aqueles milhares de gargantas entoem uma canção que já no berço se aprende a cantar, para que outros tantos milhares o filmem e coloquem nas redes sociais e tornem esse momento viral. Antes de tudo isso ouvimos as Wet Leg, uma das bandas mais badaladas do rock n' roll que hoje, que Styles descreveu mais tarde como uma das suas bandas preferidas (bem, se as odiasse não as teria convidado para fazer as suas primeiras partes).
Abriram com Bach e depressa puseram aqueles 60 mil fiéis a levar com pós-punk do século XXI, que curiosamente soa muito semelhante ao pós-punk dos anos 80, misto de Raincoats com energia zoomer (e também têm uma canção sobre supermercados). 'Oh No', mais roqueira, serviu para distrair do facto de, mais atrás, ali perto da entrada principal onde já estavam aglomeradas centenas de pessoas, pouco ou nada se ver do palco (e ouvir a voz da vocalista e guitarrista Rhian Teasdale também não foi fácil). Chegaram tarde? Azar, trouxessem binóculos. “Temos tanta sorte”, afirmou a vocalista, que mal conseguiu disfarçar a timidez. 'Ur Mum' trouxe consigo um grito quase ensurdecedor, no final, a pedido de Rhian, e 'Chaise Longue' deu por terminado um concerto que será esquecido mais depressa que as aulas de Métodos Quantitativos sobre números imaginários.
Não por culpa das Wet Leg – há ali canções giras que teriam resultado em salas mais pequenas ou noutros contextos que não o de estarem a abrir para um dos maiores artistas pop da atualidade. O que se queria ver, dentro do recinto ou fora dele (vimos dezenas de pessoas sentadas num morro com vista para o palco, certamente a rirem-se de quem pagou bilhete para ver o concerto exatamente à mesma distância), era Harry Styles, saído da maior boysband da última década, os One Direction, para passar a ser um gigante da última década, ao nível de Beyoncé ou Taylor Swift. E sem precisar de dar espetáculo no sentido visual da palavra. Sim, há bonequinhos, há pássaros e baleias, há moinhos a beijar a Torre Eiffel, mas o que Styles dá é um concerto: menos extravagância, mais música.
O que Harry Styles apresentou no Passeio Marítimo de Algés, que já tinha apresentado na Altice Arena, foi a arte de saber compor uma boa canção pop. Orelhudas, dançáveis, mais introspetivas, com referências que se entendem, com letras facilmente apreendidas pela memória, e com o bónus de, ao contrário de alguns, não soarem todas ao mesmo. 'Daydreaming', com a qual deu início a quase duas horas de música, foi uma delas, saindo das colunas e sobrevoando os gritos de entusiasmo que deram sinal assim que se percebeu que ele estava em palco, todo lantejoulas e estilo.
Guitarra a tiracolo, “quero ver todos a saltar!”, o britânico lançou-se rapidamente a 'Golden' e a uma cantadíssima 'Adore You', provavelmente um dos seus melhores temas. O refrão ali como questão, “deixas-me adorar-te?”, e ele faz uma pose e responde com um “ok!” malicioso, levando muitas fãs à loucura e muitas outras ao primeiro orgasmo. Não se choquem as mães: Styles serve para isso como a Beatlemania serviu para as vossas mães. Serve para isso e para, como o próprio pretende, sermos nós próprios e encontrarmos a felicidade num evento de música ao vivo – tudo vale a pena, as filas, o sol, desde que se ouça aquela melodia.
Uma versão de 'Wet Dream', das Wet Leg, contou com a presença das próprias em palco – mais aplaudidas ao lado de Harry Styles do que o foram a solo –, que por ali ficariam também em 'Daylight'. Em 'She', ouviu-se mais o público que ele próprio, balada oitentista à qual não faltou um xaroposo solo de guitarra. 'Matilda' vem com agradecimentos pelo apoio (ai dele que não agradecesse, não é?) e com o soltar de alguns balões em forma de coração, para dar alguma cor ao recinto. Lê-se num cartaz, segurado por uma fã, filmada pelas câmaras: “tu és a nossa casa”. Vir a um concerto deste tipo é pertencer a uma casa, a uma comunidade; agora que as subculturas morreram, o sentimento de pertença vem com o gostar-se de um artista específico, com o inventar de expressões próprias para designar os fãs do artista em específico (consta que no caso de Styles são “Harrietes”, e se isto não for verdade, devia).
Mas mesmo a pertença não deve vir em troca da saúde; em 'Satellite', circulamos por breves instantes pelas filas mais atrás e deparamo-nos com uma jovem a ser assistida pelos bombeiros, com aparentes problemas respiratórios. 'Late Night Talking' fez mover as ancas, e antes de 'Cinema' houve direito ao habitual em concertos de Harry Styles: o próprio a ler os cartazes que os fãs lhe dedicam. Joana teve direito aos parabéns, Júlia recebeu ajuda do músico para se assumir homossexual. “Parabéns, Júlia, és gay como o caraças!”, chutou, bandeira arco-íris triunfalmente erguida.
Referências ao passado só em 'What Makes You Beautiful', dos One Direction, ali pouco antes de 'Watermelon Sugar'. Styles já não quer – e bem – olhar para o projeto que lhe deu nome. Como Júlia, como qualquer pessoa, quer a liberdade de ser e fazer o que lhe apetece, longe do que ditam as regras de uma indústria musical a definhar. Daí que 'Fine Line' soe a folk alternativa, pontuada por um final pós-rock, sabendo bem antes do encore. 'Sign Of The Times', que também mereceu cantoria por parte do público, o riff roqueiro de 'Medicine', onde agradeceu uma vez mais aos fãs, e a inevitável 'As It Was' deram por terminado um concerto que, não sendo radicalmente diferente do oferecido na Altice Arena, soou pelo menos mais fresco – talvez por ser o penúltimo da digressão, e Styles já estar tão entrosado e a pensar em férias que aquilo lhe sai rápida e naturalmente. Terminado, não: ainda havia 'Kiwi', com dois momentos noise, um gole numa cerveja e uma mini-volta olímpica a indicar que por onde quer que passe o britânico sairá sempre vencedor. Saimos de Algés e nem os vários minutos que aguardamos no trânsito nos incomodam. Vimos Harry Styles ao vivo. Como poderíamos ser infelizes?
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