Foi a escassos minutos do início do concerto que se obteve a prova de Harry Styles ser um fenómeno pop. Ou Fenómeno, com maiúscula, para que não fique no ar a ideia de que estamos a falar de algo passageiro. A loucura generalizada que se abateu sobre a Altice Arena, com mundo e meio a entoar 'Best Song Ever', dos One Direction, explicou-o (também se cantou 'Bohemian Rhapsody' como que para mostrar aos boomers que os putos gostam de rock, sim, mas isso não importa para este raciocínio). 

Não que seja, de todo, necessário ter-se sido fã dos One Direction – provavelmente a última grande boy band europeia, numa altura em que é a K-Pop a ditar as regras desses jogos muito próprios – para se ser fã de Harry Styles, assim como não era necessário ter-se gostado dos *NSYNC para gostar de Justin Timberlake. Ajuda, claro. Mas não é obrigatório. As canções de Styles valem por si só. O seu estilo, idem aspas: a Arena encheu-se de plumas porque Styles usa plumas, tal como nos anos 90 os miúdos usavam camisas de flanela porque Kurt Cobain usava camisas de flanela. A história repete-se, nem como tragédia, nem como farsa.

Fenómeno – com maiúscula – ou sério candidato ao trono da pop. O tempo encarregar-se-á de o colocar no lugar devido. Mas o seu tempo é também o agora, é a histeria em forma de grito que acumula decibéis assim que ele entra em palco, já depois de os membros da banda que o acompanha terem tomado os seus lugares, um a um. Um grito beatlemaníacoharrymaníaco? – que lhe afoga a voz e a música, trocando a sua pelas gargantas de milhares e milhares de adolescentes (sobretudo) e jovens adultos (em menor número). 'Music For a Sushi Restaurant' foi o primeiro tema do alinhamento, mas mal se ouviu Styles a cantá-la; o público fê-lo por si.

De certa forma, ele nem precisa de cantar. Basta estar presente, maníaco, correndo de um lado ao outro do palco, socando o ar, saltitando de ar empinado, fazendo vénias, distribuindo beijocas, posando e convidando às fotografias (as mesmas que a imprensa não pôde tirar). As três primeiras canções deste concerto foram sobretudo isto: um grupo de músicos em palco, e o verdadeiro espetáculo vinha da audiência e da estrela, fazendo com que as colunas ali montadas adquirissem um certo grau de irrelevância. Sendo que uma delas, a terceira, foi 'Adore You', para nos lembrar que, apesar de mal a ouvirmos esta noite, é Harry Styles quem faz as melhores cançonetas pop de entre todos os ex-One Direction.

Como não? Basta ver os nomes que cita como influência: Pink Floyd, Beatles, Fleetwood Mac, Rolling Stones e o grande, magistral Harry Nilsson. O seu álbum preferido é “Astral Weeks”, de Van Morrison. “Blue”, de Joni Mitchell, levou-o a contactar pessoalmente a fabricante do dulcimer que se escuta nesse álbum. Paul Simon ou Etta James fazem parte da sua dieta. Porque é que se menciona tudo isto? Para reforçar a ideia de que Harry Styles é um indivíduo com um excelso bom gosto, o que é meio caminho andado para ser muito bom naquilo que faz: canções pop. E para acabar com a ideia de que os membros ou ex-membros de boy bands têm contraplacado no lugar do cérebro.

Naquele que foi o último concerto desta sua nova digressão europeia, o britânico desdobrou-se em dezenas de agradecimentos aos fãs, a quem solicitou apenas uma coisa: que se divertissem. «Desafio-vos a divertirem-se mais do que eu», acrescentou. O público, que ignorou por completo o facto de a esmagadora maioria dos lugares disponíveis serem sentados, respondeu ao repto. E Styles foi-se batendo como pôde com esta legião de felizes insurrectos: roubou um par de óculos felpudos a alguém da plateia (em 'Cinema'), entreteve-se com uma espécie de dueto com a audiência ('Keep Driving'), chegou-se à língua de palco com a sua guitarra acústica (a bonita 'Matilda'), dedicou 'Boyfriends' «a todos os namorados» e ainda deixou que um deles se tornasse noivo. 

Resumindo esta história muito particular: ele chama-se João, ela Mariana. Eles empunharam um cartaz a pedir a Harry Styles que os ajudasse a fazer o pedido. Este aceitou (com reservas, estranhando o facto de o casal estar junto «há pouco mais de um ano»). Ele cantou 'Can't Help Falling In Love', de Elvis Presley. Ela disse “sim”. Os outros todos aplaudiram, choraram, gritaram “viva os noivos!”, e um dia, na velhice, este agora ainda mais feliz casal poderá contar aos netos aquilo que se passou a 31 de julho de 2022 na Altice Arena. O melhor dia para casar, já dizia alguém.

Muitas (e alguns) dos presentes prefeririam, quiçá, casar com o próprio músico, mas isso, pelo menos hoje, não foi possível. Possível é declarar empate naquele desafio de Harry Styles. Se ele elogiou o pastel de nata, o público presente na zona destinada à plateia em pé respondeu com um comboinho em 'Treat People With Kindness', ao passo que quem (não) estava sentado correu energicamente para junto das grades a separar uma e outra secção (levando com um «malandros» do próprio Styles). Apresentou a banda, e os milhares ali presentes regozijaram com 'Late Night Talking', disco-funk tão gostoso quanto a borbulha da Coca-Cola a rebentar na língua. Cantou 'Love of My Life', e depressa se erguem centenas e centenas de corações de papel, religiosamente guardados para surgirem apenas neste momento. Cantou 'Fine Line' – canção que não estava “programada”, e que foi um dos destaques deste espetáculo em Lisboa – e esses mesmos corações se encheram de amor.

O encore esperado arrancou com a melancólica 'Sign of the Times', com Harry Styles enrolado numa bandeira da Ucrânia que lhe foi atirada – gesto que nada tem de inocente se se atentar à letra da canção: why are we always stuck and running from the bullets?. 'Watermelon Sugar' alimentou ainda mais a dança numa «noite especial», tornada ainda mais especial pela reentrada em palco de Ellie Rowsell, dos Wolf Alice (banda que acompanhou Harry Styles ao longo desta digressão, e que regressa a Portugal em outubro), para que juntos cantassem 'No Hard Feelings'. No auge da apoteose, a introspeção: «não é suposto que isto tudo aconteça a pessoas como eu», sendo que «isto tudo» é uma Arena cheia a cantar o seu nome, são os milhões de discos vendidos, os prémios conquistados e o dinheiro amealhado. Harry só não explicou o que quis dizer com «pessoas como ele», mas isso pouco importou. 'As It Was', uma bomba pop arraçada de Metronomy, fez explodir de alegria o recinto, e 'Kiwi' fechou um concerto que muitos descreverão como memorável. Já não há One Direction, mas há uma única direção a seguir: a de Harry Styles, para onde quer que ele vá.