Com um cariz cómico, a opereta baseia-se no facto histórico que foi a revolta popular das mulheres minhotas de Fonte Arcada, na Póvoa de Lanhoso, em 1846, contra as decisões legislativas do Governo constitucionalista liderado por António Bernardo Costa Cabral que instituíam normas de recrutamento militar dos jovens e a proibição dos enterramentos nas igrejas, mas em cemitérios afastados das povoações, por razões sanitárias.

A opereta, com libreto original escrito por Batalha Reis, Gervásio Lobato e João Francisco de Eça Leal, estreou-se em 1879 no Teatro da Trindade, em Lisboa. As partes não cantadas da versão original estão dadas como perdidas e foi necessário um trabalho de reconstrução desse texto dramático, que ficou a cargo de Neves-Neves, que teve em conta as características deste tipo de opereta, nomeadamente as piadas às situações coevas.

“As operetas viviam muito do contexto [da época] e havia piadas só entendidas [nesse] quadro sociocultural”, explicou Ricardo Neves-Neves, que acrescentou: “É como ver ‘O Tal Canal’, do Herman José, 30 anos depois. Perdem-se muitas das piadas”.

No novo texto surgem referências à ação da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), às paradas ‘gay’, a Karl Marx (1818-1883), a bebidas contemporâneas e até às celebrações do centenário do Parque Mayer, em Lisboa.

João Paulo Santos elogiou o trabalho de Neves-Neves e afirmou: “Se não fosse com o Ricardo Neves-Neves eu teria dito que não”.

Referindo-se à opereta, João Paulo Santos disse: “Só há as partituras que põem alguns problemas de recuperação, mas isso é o natural, e as partitura têm o texto cantado, não têm nada do que se passa entre cenas, a não ser uns apontamentos escritos à mão pelo Augusto Machado, que os utilizou com certeza para a estreia, e que são ‘deixas’ para fazer sinal à orquestra que se ia tocar. De resto tinha de se inventar uma história a partir do que se podia perceber do texto cantado e arranjar um texto para a união de tudo”.

O maestro reconheceu que organizar as partituras foi “um puzzle”.

As partituras foram encontradas na casa da bisneta do compositor, disse o maestro, acrescentando que havia uma partitura para canto e piano, que foi por onde Augusto Machado começou, uma outra que terá utilizado para as récitas, “que, como de costume, a partir do meio está escrita à pressa e é de difícil leitura”, e há uma cópia a limpo “que devia ser boa, mas está incompleta”.

Todas as partituras do compositor Augusto Machado (1845-1924) foram doadas pela bisneta à Biblioteca Nacional, onde se encontram, atualmente, disse João Paulo Santos.

A opereta que é apresentada no próximo domingo, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, recupera o “ambiente minhoto” com telões que remetem para os tradicionais “lenços de namorados” e inclui um Galo de Barcelos em cena.

A personagem Maria da Fonte, sobre cuja existência histórica persistem algumas dúvidas, é apresentada como uma mulher de caráter forte e intenso, com consciência social.

A opereta “Maria da Fonte”, uma comédia em três atos, escrita em português, é interpretada por oito solistas, coro e orquestra.

A trama da opereta envolve Maria da Fonte, o seu amante Ludovino, um agricultor rico, e a sua irmã, Joana, com fortes suspeitas de traições amorosas, e uma conspiração entre o administrador local, Vilar, e o abade Cortições, que se subentende ser pai de Maria da Fonte e de Joana, a quem Neves-Neves acrescentou um namorado. O administrador e o abade procuram congeminar uma forma de enviar os rapazes para o exército e combater o povo.

No palco do CCB vão estar o Coro do Teatro Nacional de São Carlos, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, e os solistas Cátia Moreso, Luís Rodrigues, Marco Alves dos Santos, Inês Simões, Eduarda Melo, André Henriques, João Merino e Tiago Matos.

A opereta “Maria da Fonte” vai ao encontro do que se começava a fazer em França, em que “tinha um contexto histórico, um episódio que as pessoas conheciam, deturpado, mas com as coisas históricas, e uma história de amor pelo meio”, disse o maestro referindo que o teatro de revista surge das operetas.

A opereta “era um género da época” e “não era feita para durar, como acontece com a ópera”, realçou o maestro.

João Paulo Santos reconhece que a “Maria da Fonte” quando foi apresentada pela primeira vez “não teve assim um grande êxito”, até porque Augusto Machado “era acusado de escrever difícil”, disse o maestro pois “o público estaria à espera de uma coisa mais inocente e não tão marcadamente política, quase pré-republicano”.

João Paulo Santos esclareceu que “a opereta portuguesa era um assunto de teatro, não era um assunto de canto, por isso é que desapareceu”. O maestro referiu que o escritor José Maria Eça de Queirós “promovia imenso” a opereta portuguesa que “pensava como uma arma de crítica social poderosíssima”, e terá projetado escrever uma opereta, “A Morte do Diabo”, para a qual contou com a colaboração de Batalha Reis e Eça Leal, e com o compositor seria Augusto Machado.

O compositor “era muito bem relacionado”, tendo trabalhado em França, com “libretistas importantes como Ruggero Leoncavallo ou Antonio Ghislanzoni, que fez o livreto de ‘Aïda’, de Verdi”. Augisto Machado foi visto na época, em Portugal, “como alguém que ia revolucionar o género”, disse João Paulo Santos.

Machado colaborou com personalidades como Antero de Quental, que fez uma versão em português de uma opereta francesa, “O Degelo”, e relacionava-se com o denominado grupo “Geração de 70”, que incluiu ainda João Lobo de Ávila, Anselmo de Andrasde, Fialho de Almeida, Carlos Lima Mayer e Joaquim Pedro de Oliveira Martins, entre outros.

Ricardo Neves-Neves fez uma investigação sobre a época, tendo consultado vários documentos coevos, nomeadamente “Lisboa em Camisa”, de Gervásio Lobato e várias publicações sobre a revolta minhota, para escrever o texto, mas esclareceu que o fez “sem complexo com ligação à comédia, como género inferior que existe na cabeça de muita gente”.

O encenador e autor referiu a importância que a mulher assume na opereta, indo ao encontro do que Eça de Queiroz afirmou, que “a relação de hierarquia familiar que há em Lisboa, está invertida no Minho, em que a cabeça de casal não é o homem, mas sim a mulher”.

Para a escrita do texto, Neves-Neves realçou a influência da equipa com quem trabalha, “percebendo a elasticidade do elenco, a doideira dos ensaios e o humor de João Paulo Santos”.

“Maria da Fonte”, é o segundo título recuperado pelo Laboratório de Ópera Portuguesa, criado em 2022.

O primeiro foi “Cortes de Júpiter”, uma adaptação da tragicomédia de Gil Vicente, também por Ricardo Neves-Neves, com música de Filipe Raposo, apresentada em fevereiro do ano passado também no CCB.