Existem apenas duas coisas certas neste mundo: a morte, e a imagem de Morrissey enquanto supra-sumo do miserabilismo e da dor da existência. Ou existiam, até à semana passada, quando o músico britânico lançou aquele que é o primeiro single do seu próximo álbum, “Low In High School”, intitulado “Spent the Day in Bed” e anunciado através de uma publicação no Twitter, o primeiro de uma conta que posteriormente veio a revelar-se não-oficial. Em três minutos e meio, o sarcasmo e a perspicácia que o caracterizavam são substituídos por uma espécie de anti-apelo às armas: Stop watching the news / Because the news contrives to frighten you / To make you feel small and alone / To make you feel that your mind isn't your own, brada, no refrão. Em suma, Morrissey não quer que leiamos jornais, notícias ou artigos de qualquer espécie – incluindo este.
Já desde o seu tempo nos Smiths, banda que liderou desde o início até a um fim demasiado abrupto, que tem sido difícil à imprensa musical, e não só, lidar com Morrissey. Da mesma forma que tem sido difícil a Morrissey lidar com a imprensa, ele que pareceu talhado para ser uma grande estrela da pop mas que teve de se resignar a servir de ícone a milhares de jovens solitários e desajeitados por esse mundo fora, com ênfase na palavra “alternativo”. A culpa? De muita gente, segundo o próprio e segundo a sua autobiografia, publicada em 2013. Nunca dele, apesar das muitas e variadas polémicas que despoletou, das quais desejar a morte à família real britânica (e por diversas ocasiões) são só a ponta do icebergue.
Assim como não é possível lidar com Morrissey, não é possível caracterizá-lo. Anarquista? Republicano? Ecoterrorista? Queer? Há quem opte por “génio” e nem estaria muito longe da verdade, considerando a obra vasta que o homem nascido em Davyhulme, Lancashire, Inglaterra, deixou já neste planeta. Morrissey, ele próprio, esquiva-se aos rótulos que, na verdade, só servem para encaixotar aquilo que não tem por que ser guardado. Mas vimo-lo, tal como muitos, como símbolo máximo de uma certa urbano-depressão juvenil, androginia escondida em versos tristes.
A tristeza não faz, no entanto, parte de “Spent the Day in Bed” - e por isso nos soa tão estranha. Não existem na canção as guitarras melódicas e desempoeiradas de boa parte da sua discografia, fruto da sua antiga relação com Johnny Marr, e tampouco os arranjos clássicos e desavergonhadamente burgueses com os quais polvilhava as suas palavras. Há um sintetizador barroco e um ritmo que vai saltitando, chamando à dança. Mas, melhor (ou pior, dirão alguns) há toda uma aura de positivismo que não lhe reconheceríamos: There's nothing wrong with / Being good to yourself / Be good to yourself for once. Ter-se-á Morrissey fartado do seu próprio mito?
Não o sabemos. Mas sabemos que não dá para culpar Morrissey pela visão que este possa ter da imprensa, ou pela crítica implícita aos “truques” dessa mesma imprensa. Primeiro, porque qualquer leitura matinal de um jornal ou de qualquer outro órgão de informação pode levar a uma depressão que não esfuma depressa. Por outro, porque se baseará inevitavelmente na sua própria experiência pessoal com a imprensa, que raras vezes foi simpática. Em 1983, ainda os Smiths estavam a dar os primeiros passos, o tablóide britânico The Sun viu em “Handsome Devil”, lado B de “Hand In Glove”, uma «ode à pedofilia» (esquecendo que é, provavelmente, a melhor canção da história da pop a utilizar a expressão “glândulas mamárias”). Já a solo, em 1992, certos temas de “Your Arsenal” - nomeadamente, “The National Front Disco” - levaram a acusações de racismo por parte do NME. Já esta década, novas polémicas, desde dizer que o massacre em Utøya, Noruega, «não foi nada comparado com o que acontece no McDonald's e no KFC todos os dias» até à sua defesa do Brexit. Pelo meio, o The Independent criticou o «narcisismo ensurdecedor» da sua autobiografia ... E várias outras acusações o levaram a tribunal, para combater o que entendeu como difamação e calúnias.
Ainda que “Spent the Day in Bed”, o primeiro registo de Morrissey desde 2014, possa não entrar imediatamente no cânone, já que lhe falta uma dose considerável daquela auto-depreciação deliciosa que só ele tem (o que não faz dela uma má canção, revelando ainda um lado mais maturo, mesmo que ingénuo), há que louvá-la por ter conseguido captar o zeitgeist de uma era em que a informação, que vem de todos os lados e que poucas vezes é filtrada, tende a abater-nos e a fazer-nos desejar chegar rapidamente ao fim do dia, do ano, do mundo. Não é um tema sobre fake news; é-o sobre todas as news, principalmente as que teimam em estragar-nos dias bonitos. É menos ode ao ócio que o é ao pacifismo puro do casal Lennon/Ono, que em 1969 passou duas semanas na cama em nome da paz. E é, também, uma chamada de atenção: às vezes, é mesmo necessário desligar a ficha da corrente.
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