Samson, Ilhas Scilly

Dezembro de 1798

Ele não havia tido em conta o peso. Previra o frio e considerara também a suave oscilação da água. A escuridão? A lanterna dá luz suficiente, e a sua memória compensa as insuficiências do que vê. Contudo, o peso... isso é outra questão.

A lanterna é fácil de manejar. Leva-a atada ao pulso com um fio resistente, que lhe permite mover as duas mãos, mas lhe puxa desconfortavelmente o braço, e a pele que o fio roçou arde com a água salgada. As cordas enroladas sob cada axila — uma para o resgate, outra para voltar a subir — são pesadas, mas ajudam-no a equilibrar o corpo à medida que desce. Embora volumosos, os pesos para mergulho também são suportáveis.

O problema é o arnês, feito de placas de estanho de alta resistência. Embora arredondado e espaçoso à volta da cabeça, mais abaixo aperta o torso como um espartilho implacável. No convés, não parecia tão pesado. Abaixo da superfície, no entanto, o traje de couro restritivo, o aro de ferro que aperta maldosamente, juntamente com a pressão da água e as correntes de inverno... Pedirá mais dinheiro quando o trabalho estiver concluído.

Até ao momento, a sorte acompanhou-o esta noite. A negra cúpula do céu mostra-se estrelada, e é lua cheia. Durante a tempestade, observou com cuidado o que o rodeava: o navio finalmente encalhado nos bancos de areia de duas pequenas ilhas separadas por um istmo e com o interior semeado de ruínas de pedras. As ruínas brilham ao luar como um farol para o seu pequeno veleiro, e, apesar das rajadas de dezembro, a ponta do mastro que sobressai a estibordo do navio ainda é visível acima das ondas. Não, o naufrágio não foi difícil de encontrar.

Então, porque tem a sensação de que foi conduzido até aqui?

Por sorte, o navio assenta nos baixios. Ele não utilizara este equipamento, e não se arriscará a descer a maior profundidade do que a devida. Seis metros abaixo da superfície. «Ali não há perigo», pensa, e sabe exatamente para onde olhar. Segundo instruções meticulosas, o objeto que procura estava escondido em segurança, na zona da amura de estibordo, longe dos outros carregamentos apertados firmemente no porão, mas o navio destroçara-se devido à tormenta; ele espera que a sua sorte se mantenha, que o caixote não se tenha afastado demasiado, no fundo do mar, e que ninguém mais o tenha conseguido recuperar.

A água gelada espicaça-lhe as pernas e os braços. Envolto no pesado fato de mergulho, desce um pouco mais, respirando com esforço e consciente do sabor ácido do metal. Os tubos de ar que saem do arnês até à superfície são longos, e imagina-os esticados atrás de si como a corda de um carrasco. Segura a lanterna na frente do corpo e olha pelo vidro da câmara de imersão, aliviado ao ver a sombra das vigas do navio. Em seguida, desce mais, procura, examina a obscuridade, estreitando os olhos. Parece-lhe ouvir um ruído abaixo dele, sussurrado e queixoso. Inclina a cabeça, sente os ouvi- dos estalarem e continua.

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Toca no fundo, com os pés. Por baixo deles, areia movediça. Inclina a cabeça e tenta olhar para baixo, mas com cuidado. Foi avi- sado de que qualquer movimento brusco faria a água entrar no arnês. Devagar, sim, devagar. Ali está. A ponta de algo. Usando a ponta do pé, iça-se de volta à corrente. Depois, desce outra vez, até pisar o fundo do mar, e ergue a lanterna ao nível dos olhos. A cerca de dois metros dos escombros do navio, já consegue visualizar os cantos escuros de um caixote. O sangue lateja ruidoso nos seus ouvidos. É isto, tem a certeza. Avança devagar, coloca uma perna à frente, depois a outra, arrastando os pés pela água. Dá um salto quando algo lhe roça as canelas e, ao baixar a lanterna, avista algas que dançam em torno das suas pernas.

O caixote balança precariamente sobre uma pedra grande. Ele aproxima-se pouco a pouco, e volta a erguer a lanterna. O x que pintou em um dos lados do caixote quando o navio saiu de Palermo vê-se com clareza, mesmo naquela intensa escuridão aquática. Por um momento, admira-se de como tudo foi fácil, mas, em seguida, a lanterna tremula, apaga-se um instante antes de voltar a brilhar, e ele sabe que não pode perder tempo.

Soltando o fio do pulso, encaixa a lanterna entre dois pedaços grandes de destroços, para que a corrente não a leve. Depois, desenrola uma das cordas do braço e começa a árdua tarefa de prender o caixote. Tem de ser cuidadoso — não pode permitir-se errar —, e a pedra parece ser uma bênção, pois, sem ela, teria lutado para levantar o caixote do fundo do mar. Enquanto trabalha, pequenos peixes circulam como flechas ao seu redor. A dado momento detém-se, e esforça-se para ouvir o interior das placas do arnês. É uma música? Não, é o enjoo da água, só pode ser. Não o tinham avisado que ficar submerso por muito tempo pode ser mortal?

Mas tão depressa? 

Agora, trabalha mais rapidamente, o mais rápido que consegue com o peso do arnês a empurrá-lo para baixo. Passa a corda em volta do caixote quatro vezes e, embora tenha os dedos entorpecidos pelo frio, faz nós tão apertados que será necessário cortar a corda. Quando fica satisfeito, puxa a corda com força — uma vez, duas vezes — de modo a enviar sinal para a superfície. A corda balança, estica-se, contrai-se. Então, triunfante, observa o caixote a subir numa nuvem de areia em movimento. Ouve o rangido surdo da madeira, o ruído da água agitada, e, tão baixo que acredita tê-lo imaginado, também o suspiro débil e inquietante de uma mulher.

LONDRES JANEIRO DE 1799

PARTE I

A mente é em si mesma a sua própria morada, e por si só pode fazer um céu do inferno, um inferno do céu.

John Milton Paraíso Perdido (1667)

CAPÍTULO UM

Dora Blake está debruçada sobre a sua secretária desde o amanhecer. O banco em que se senta é demasiado alto, mas já se acostumou à altura desconfortável. Ocasionalmente, pousa o alicate, tira os óculos e belisca a cana do nariz. Massaja frequentemente os nós de crispação no pescoço e alonga as costas até sentir o estalido agradável das vértebras.

O sótão está virado para norte e é pouco iluminado. Frustrada, Dora colocou a secretária e o banco por baixo da pequena janela, pois este é um trabalho complexo e a única vela de que dispõe não é adequada. Procura uma posição mais confortável no assento duro, volta a colocar os óculos e concentra-se mais uma vez no trabalho, esforçando-se por ignorar o frio. A janela está aberta de par em par, apesar das temperaturas geladas do Ano Novo. Espera que Hermes regresse a qualquer momento com um novo tesouro, algo para rematar a sua última criação e, por esse motivo, já deixou aberta a porta da gaiola. Os restos do seu pequeno-almoço roubado estão espalhados sob o poleiro para recompensar o pássaro do que espera que seja uma frutífera caçada matinal.

Mordisca o lábio inferior entre os dentes e inclina o alicate contra o polegar.

Reproduzir as filigranas dos canutilhos era ambicioso da sua parte, mas Dora é, mais do que tudo, uma otimista. Alguns poderiam qualificar este otimismo como mera tenacidade, mas ela sente que a sua ambição é justificada. Dora sabe — sabe — que tem um talento. Está intimamente convencida de que algum dia será reconhecido e de que as suas peças serão usadas por toda a cidade. «Talvez por toda a Europa», pensa Dora, cuja comissura dos lábios estremece ao ajustar um fio extremamente diminuto no sítio. Em seguida, abana a cabeça, tenta afastar os seus sonhos gloriosos e concentra-se. Não servirá de nada distrair-se e arruinar horas de trabalho, ante o último obstáculo.

Dora corta outro pedaço de fio do rolo pendurado num prego na parede.

A beleza do canutilho consiste em imitar uma renda fina. Ela viu alguns conjuntos de joias exibidos na Rundell & Bridge e maravilhou-se com os motivos elaborados: um colar, brincos, uma pulseira, um alfinete e uma tiara teriam representado meses de trabalho. Dora considerara brevemente a possibilidade de criar um par de brincos a partir do seu bloco de esboços, mas admitira a contragosto que era preferível utilizar o seu tempo com outra coisa. Afinal, este colar é apenas um exemplo, uma maneira de demonstrar a sua habilidade.

— Já está! — exclama, cortando o excesso de fio com umas tesouras de corte fino.

Passara toda a manhã às voltas com o fecho, o que se provou terrivelmente trabalhoso, mas agora está pronto; valera a pena começar de madrugada, as dores de costas e a dormência nas nádegas. Pousa os utensílios, sopra as mãos e esfrega-as com força, no mesmo momento em que um floquinho preto e branco desce do telhado com um grasnido furtivo.

Dora recosta-se e sorri.

— Bom dia, meu amor.

Livro: "Pandora"

Autor: Susan Stokes-Chapman

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 17 de outubro de 2024

Preço: € 23,90

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A pega entra a voar pela janela e pousa suavemente na cama. A bolsinha de couro que Dora costurou para Hermes balança no pescoço da ave, que está inclinada — há ali alguma coisa.

Hermes encontrou algo.

— Vem cá — diz Dora, fechando a janela com força por causa do frio do inverno. — Mostra-me o que trouxeste.

Hermes chilreia e baixa a cabeça. A alça da bolsa descai e o pássaro recua a saltitar, libertando o bico. A bolsinha cai, e Dora estende a mão para a apanhar e despeja, excitada, o conteúdo sobre a manta desgastada.

Um pedaço quebrado de cerâmica, uma conta de metal e um alfinete de aço. Estes objetos podem servir-lhe para algo: Hermes nunca a dececiona. Porém, a sua atenção centra-se num outro objeto pousado na cama. Pega-lhe e examina-o à luz.

Ach nai — sussurra Dora. — Sim, Hermes. É perfeito.

Entre os dedos, ela segura um seixo oval e achatado, feito de vidro, do tamanho de um ovo pequeno. Tendo como fundo o céu cinzento da cidade, desprende um brilho pálido, de um azul quase esbranquiçado. Nos desenhos dos canutilhos, as ametistas são a pedra preferida: o tom roxo vivo destaca-se cintilante entre o ouro, aumentando a intensidade do amarelo. Todavia, a pedra preferida de Dora é a água-marinha. Remete-a aos céus mediterrâneos e ao calor da infância. Este pedaço de vidro liso servirá muito bem. Fecha a mão ao redor dele, e sente na palma a superfície fria e suave. Faz um sinal à pega. Com um piscar do olho preto, o pássaro salta para o seu pulso.

— Acho que isto merece um belo pequeno-almoço, certo?

Dora conduz Hermes até ao interior da gaiola. O bico do pássaro arranha a base de madeira, em busca das migalhas de pão que ela lhe deixou antes. Entretanto, Dora acaricia-lhe suavemente as penas sedosas e admira o seu brilho colorido.

— Pronto, meu tesouro — trauteia. — Deves estar cansado. É melhor assim, não?

Absorto na sua refeição, Hermes ignora-a, e Dora volta para a sua secretária. Baixa os olhos para o colar e contempla a sua obra.

Deve confessar que não está totalmente satisfeita. O desenho, que tão magnificamente havia imaginado em papel, emana mediocridade, na prática. O que deviam ser gavinhas de ouro em espiral são, na realidade, simples fios cinzentos, retorcidos em anéis miniatura. O que deviam ser pérolas brilhantes, são toscos pedaços de porcelana quebrada.

Dora nunca esperara, porém, que correspondesse exatamente ao seu desenho. Faltam-lhe as ferramentas e os materiais apropriados, a técnica correta. É, no entanto, um começo; a prova de que existe beleza no seu trabalho, pois, apesar destas matérias-primas rudimentares, as formas que idealizou são elegantes. Não, Dora não está satisfeita, mas está contente. Espera que funcione. Certamente, tendo aquele seixo como peça central...

Ouve-se um estrondo, o tilintar longínquo de uma campainha. — Dora!

A voz que a chama três andares abaixo é imperiosa, severa e impaciente. Hermes gorjeia com irritação na sua gaiola.

— Dora — grita novamente a voz. — Desce e vem ocupar-te da loja. Tenho coisas urgentes a resolver na doca.

A esta declaração segue-se o baque surdo de uma porta a fechar-se e outro, mais longe. Depois, silêncio.

Dora suspira, tapa o colar com um pedaço de linho e coloca os óculos de lado. Terá de adicionar o seixo de vidro mais tarde, quando o tio se tiver retirado para dormir. Pesarosa, apoia-o contra o castiçal, onde ele oscila brevemente antes de parar.

*

O Empório de Antiguidades Exóticas de Hezekiah Blake destaca-se entre o café e a mercearia que o ladeiam. Dispõe de uma grande montra saliente, incomodativa para os transeuntes, que muitas vezes se sentem obrigados a parar devido ao tamanho avantajado. Contudo, a maioria das pessoas detém-se na rua, já que nos últimos tempos são poucos os que entram ao perceberem que a montra com a moldura decrépita não tem nada de mais exótico além de um armário do século passado e do quadro de uma paisagem que faz recordar Gainsborough. Outrora um estabelecimento próspero, agora só vende falsificações e curiosidades cobertas de pó que não têm nenhum atrativo para o público, e muito menos para um colecionador entendido. Dora não compreende porque é que o tio sentiu a necessidade de chamá-la para baixo; pode perfeitamente acontecer que ela passe toda a manhã sem ver um único cliente.

Nos tempos do seu pai, o negócio corria bem. Embora fosse apenas uma criança naqueles anos dourados, lembra-se do tipo de clientela que a loja dos Blake atraía. Viscondes acorriam à Ludgate Street para solicitar que as suas casas na Berkeley Square fossem decoradas com um estilo que recordasse as belezas do Grand Tour. Comerciantes bem-sucedidos encomendavam qualquer peça chamativa para decorar as suas lojas. Colecionadores particulares pagavam generosamente ao pai de Dora, Elijah, e à sua esposa para irem escavar ruínas no estrangeiro. No entanto, agora?

Dora fecha atrás de si a porta que separa as divisões da casa do andar da loja. A campainha tilinta alegremente quando a porta gira nas dobradiças, mas Dora permanece em silêncio. Quando Lottie Norris não a vigia de perto com os seus olhos de fuinha, a maldita campainha que Hezekiah instalou basta para controlar as suas idas e vindas.

Com o xaile apertado à volta dos ombros, Dora dirige-se ao andar da loja. O local está a abarrotar de móveis, objetos horríveis colocados ao acaso uns contra os outros e estantes de livros repletas de volumes que não parecem ter mais de dez anos. Aparadores maciços estão colocados lado a lado com bugigangas medíocres espalha- das sobre as superfícies poeirentas. No entanto, apesar da desordem, há sempre uma ampla passagem entre as mercadorias, pois ao fundo da loja estão as portas que levam à cave.

O santuário privado de Hezekiah.

A cave havia sido noutros tempos o domínio dos pais dela — era o escritório, o lugar onde eles traçavam mapas das escavações e restauravam peças quebradas. Contudo, quando Hezekiah se mudou da sua exígua habitação no Soho para tomar posse da loja, reformulou-a por completo: apagou todos os vestígios dos pais de Dora até que deles só restaram memórias fugazes. Nada no Empório de Blake é como foi outrora; o negócio definhou, juntamente com sua reputação.

Dora vira uma nova página do livro da contabilidade (somente duas transações na véspera) e rabisca a data na margem.

Contudo, ocasionalmente fazem algumas vendas. Ao longo do mês o dinheiro pinga lento mas continuamente, como a água do telhado com goteiras. No entanto, cada venda baseia-se em mentiras, em encenação. Hezekiah associa todo o género de histórias fantásticas aos seus objetos. Um baú de madeira foi o meio pelo qual um traficante de escravos trouxe duas crianças da América em 1504 (na verdade, fabricado uma semana antes por um carpinteiro de Deptford); um par de castiçais ornamentados que haviam pertencido a Thomas Culpeper (na realidade fornecidos por um ferreiro em Cheapside). Uma vez, Hezekiah vendeu ao proprietário de um bordel um sofá de veludo verde, alegando que tinha pertencido a um conde francês durante a Guerra dos Trinta Anos e sido resgatado quando o seu «magnífico» château foi devastado num incêndio (o conde era, na verdade, uma viúva desesperada que vendera o sofá a Hezekiah por três guinéus para poder pagar as dívidas do marido). Ele mobilou inclusivamente os quartos superiores de um lugar de encontro para homossexuais com seis biombos japoneses, suposta- mente do período Heian (pintados por ele mesmo na cave). Se os seus clientes pusessem em causa a autenticidade de todos esses objetos, há muito tempo que Hezekiah teria sentido o duro chão frio do Tribunal Criminal de Old Bailey sob os joelhos. Mas os clientes não questionam. É óbvio que lhes falta ética e os seus conhecimentos sobre arte e antiguidades deixam muito a desejar.

As falsificações, segundo descobriu Dora com o passar dos anos, não são desconhecidas nos círculos dos antiquários. Na ver- dade, muitos deles têm dinheiro de sobra para encomendar cópias de objetos que viram no Museu Britânico ou admiraram no estrangeiro. Mas Hezekiah... Hezekiah não admite as suas imposturas, e é aí que reside o perigo. Dora sabe qual é a punição reservada a esse tipo de delito — uma multa pesada, uma exibição no pelourinho ou meses de prisão. Sente o estômago às voltas ante o pensamento. Poderia, obviamente, ter denunciado Hezekiah, mas depende dele — o tio e a loja são tudo o que ela tem — e, até poder traçar o seu próprio caminho no mundo, Dora tem de ficar, assistir a como o negócio se afunda ano após ano e como o apelido Blake vai perdendo valor até desaparecer.

Nem todo o stock é falsificado, admite. As quinquilharias que Hezekiah acumulou ao longo dos anos (e que ela utiliza sorrateiramente, por vezes, como matéria-prima) garantem um pequeno rendimento estável — botões de vidro, cachimbos de argila, pequenas mariposas suspensas em vidro soprado, soldadinhos de chumbo, chávenas de porcelana, miniaturas pintadas... Dora dá mais uma vista de olhos ao livro de contabilidade. Sim, há vendas. Mas o dinheiro que entra mal chega para pagar o salário de Lottie e para comer, embora Dora não saiba, nem deseje saber, de onde Hezekiah tira dinheiro para financiar os seus pequenos caprichos. Já chega que tenha manchado o ganha-pão que o seu pai lhes legou. Já chega que o prédio esteja em ruínas, que haja muito pouco para pagar as reparações. Se o negócio lhe pertencesse... Dora afasta o pensamento melancólico da mente, passa a ponta do dedo pelo balcão e franze os lábios ao ver o dedo sujo. Lottie nunca limpa?

Como se a tivesse ouvido, a campainha tilinta novamente. Dora vira-se e avista a mulher de certa idade que enfia o rosto pela fresta da porta.

— Já se levantou, menina. Vai tomar o pequeno-almoço? Ou já o preparou?

Dora fita desdenhosamente a governanta de Hezekiah — uma mulher atarracada, de lábios macios, olhos pequenos e cabelos cor de palha. À primeira vista, parece enquadrar-se perfeitamente no papel, mas Lottie Norris está tão longe de se esmerar nas tarefas domésticas como o tio de Dora de ser um atleta. Não, na verdade, Lottie é, na opinião de Dora, demasiado preguiçosa, demasiado teimosa e, tal como alcatrão na asa de uma gaivota, nociva, difícil de remover e ardilosa.

— Não tenho fome.

Porém, a verdade é que Dora tem fome. Comeu pão há mais de três horas, mas sabe que, se pedir mais, Lottie fará questão de mencionar a Hezekiah que ela anda a roubar da despensa, e Dora não tem paciência para os sermões hipócritas do tio.

A governanta entra na loja e olha-a com o sobrolho erguido. — Não tem fome? Quase não comeu no jantar de ontem. Dora ignora-a e levanta o dedo para lhe mostrar que está sujo. — Não devia estar a limpar?

Lottie franze a testa.

— Aqui?

— Onde mais, na sua opinião?

A governanta adota um tom trocista e agita o braço robusto no ar como se fosse um leque.

— É uma loja de antiguidades, não é? — replica. — Faz sentido que tenham pó. É o que lhes dá encanto.

Dora vira o rosto e pressiona os lábios ao ouvir o tom de Lottie. A governanta sempre tratou Dora assim, como se ela fosse uma criada e não, de facto, a filha de dois respeitáveis antiquários, e sobrinha do atual proprietário. Atrás do balcão, Dora endireita o livro de contabilidade e começa a afiar o lápis até obter uma ponta fina, mordendo as palavras amargas que queria pronunciar; Lottie Norris não merece o alento que gastaria a repreendê-la, nem adiantaria se o fizesse.

— Tem a certeza de que não quer nada?

— Tenho — responde Dora num tom cortante.

— Como preferir.

A porta começa a fechar-se. Dora deixa o lápis.

— Lottie? — A porta imobiliza-se. — O que era tão importante na doca para que o meu tio me tivesse deixado à frente da loja?

A governanta hesita e coça o nariz.

— Como hei de saber? — responde, mas, enquanto a porta se fecha atrás dela, e a campainha infernal tilinta, Dora acha que Lottie sabe e muito bem.