Moscovo

O apartamento ficava numa rua tranquila no distrito de Tverskoy, em Moscovo, a cerca de dois quilómetros do Kremlin e cinco minutos a pé da praça Lubyanka. Do terceiro andar, Curtis conseguia ouvir o rumor de pneus de neve sobre as ruas molhadas do inverno. Curtis disse a Simakov que durante os primeiros dias na cidade tinha pensado que todos os carros tinham furos nos pneus.

– Parece que estão a andar sobre plástico com bolhas – comentou ele. – Estou sempre com vontade de lhes dizer para encherem os pneus.

– Mas tu não falas russo – respondeu Simakov.

– Não – disse Curtis. – Não falo.

Ele tinha vinte e nove anos, nascido e criado em San Diego, filho único de um vendedor de software que morrera quando Curtis tinha catorze anos. A mãe trabalhava como enfermeira no Scripps Mercy há quinze anos. Ele formara-se na Cal Tech, arranjara um emprego na Google, demitira-se aos vinte e sete com mais de quatrocentos mil dólares no banco graças a um investimento inteligente numa startup. Simakov usara Curtis no rapto de Euclidis. Moscovo seria o seu segundo trabalho.

Na sua opinião sincera, o plano parecia vago. Com Euclidis, todos os detalhes tinham sido calculados antecipadamente. Onde é que o alvo estava hospedado, a que horas é que o táxi dele estava marcado para o levar a Berkeley, como desligar a videovigilância no exterior do hotel, onde trocar de carro. O trabalho de Moscovo era diferente. Talvez fosse porque Curtis não conhecia a cidade; talvez porque não falava russo. Sentia-se excluído. Ivan estava sempre a sair do apartamento para se encontrar com pessoas; dizia que havia outros ativistas da Ressurreição que estavam a tratar dos pormenores. Curtis só fora informado de que o embaixador Jeffers se sentava sempre no mesmo lugar no Café Pushkin, à mesma hora, na mesma noite da semana. Curtis teria de se posicionar a algumas mesas de distância, com a mulher de São Petersburgo a fazer de sua namorada, ficar de olho em Jeffers e fazer uma avaliação da segurança em seu redor. Simakov estaria na carrinha cá fora, a vigiar os telefones, à espera de que Curtis desse sinal de que Jeffers estava de partida. Outros dois voluntários da Ressurreição estariam a vigiar o passeio, caso alguém tentasse intervir para ajudar. Um deles teria a Glock; o outro, uma Ruger.

– E se houver mais segurança do que estamos a contar? – perguntou. – E se eles tiverem homens à paisana no restaurante sem eu saber?

Curtis não queria parecer desconfiado nem inseguro, mas conhecia Ivan suficientemente bem para falar quando tinha dúvidas.

– Porque é que estás tão preocupado? – respondeu Simakov. Ele era magro e atlético, com cabelo preto pelos ombros preso num rabo de cavalo. – As coisas correm mal, tu vais-te embora. Só tens de comer o teu borche, falar com a rapariga e informar-me quando o Embaixador Idiota pagar a conta dele.

– Eu sei. Só não gosto de toda a incerteza.

– Que incerteza? – Simakov tirou uma das Ruger de cima da mesa e guardou-a no saco. Curtis não conseguiu perceber se ele estava zangado ou só estava a tentar concentrar-se nos mil planos e ideias que lhe giravam na cabeça. Era sempre difícil avaliar o humor de Simakov. Ele era tão controlado, tão lúcido, sem qualquer tipo de hesitação ou insegurança. – Já te disse, Zack. Isto é a minha cidade. A minha gente. Além disso, sou eu que me lixo se as coisas correrem mal. Aconteça o que acontecer, vocês, os dois pombinhos, podem ficar lá dentro, beber vodca, experimentar o strogonoff. É a especialidade do Pushkin.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Curtis percebeu que não havia mais nada a dizer sobre Jeffers. Tentou mudar de assunto falando sobre o tempo em Moscovo, que como californiano não se conseguia habituar a estar sempre a passar de quente para frio e quente outra vez quando andava pela cidade. Não queria que Ivan pensasse que não tinha estômago para a luta.

– Como?

– Eu disse que é esquisito que muitos dos prédios antigos tenham três conjuntos de portas. – Curtis continuou a falar enquanto seguia Simakov até à cozinha. – Para que servem? Para o frio não entrar?

– Conservar o calor – respondeu Simakov. Tinha a Glock na mão.

Curtis não sabia que mais dizer. Sentia um respeito profundo por Simakov. Não sabia como o desafiar ou lhe dizer que estava muito orgulhoso por servir a seu lado na linha da frente da Ressurreição. Ivan emitia uma aura de calma e mestria sobrenaturais que era quase impossível de penetrar. Curtis sabia que assumira o papel de um mero soldado de infantaria, uma entre dezenas de milhares de pessoas por todo o mundo que queriam enfrentar a intolerância e a injustiça. Mas para Curtis, Simakov era o Líder. Não havia nada de convencional nem rotineiro nele. Simakov era extraordinário.

– Só quero dizer que estou contente por me teres trazido até aqui – disse.

– Tudo bem, Zack. Eras a pessoa certa para o trabalho.

Simakov abriu um dos armários da cozinha. Estava à procura de alguma coisa.

– Preciso de óleo, para limpar isto – disse, apontando para a arma.

– Posso ir comprar – sugeriu Curtis.

– Não te preocupes. – Simakov deu-lhe uma palmada nas costas, puxando-o para a frente, como um abraço apertado de um irmão mais velho. – Seja como for, já te esqueceste? Tu não falas russo.

*

A bomba detonou seis minutos mais tarde, às quatro e vinte e três da tarde. A explosão, que também ceifou a vida de uma jovem mãe e da sua filha bebé num apartamento de esquina no quarto andar do prédio, foi inicialmente atribuída a uma garrafa de gás defeituosa. Quando se descobriu que Zack Curtis e Ivan Simakov tinham morrido na explosão, uma divisão do Grupo Alfa, a força operacional de contraterrorismo da Rússia, foi enviada para o local. A televisão russa noticiou que Simakov fora morto por um engenho explosivo improvisado que detonou acidentalmente apenas horas antes de um ataque planeado pela Ressurreição contra o embaixador americano na Federação Russa, Walter P. Jeffers, ex-presidente da Jeffers Company e um importante doador do Partido Republicano.

A notícia da morte de Simakov espalhou-se rapidamente. Alguns acreditavam que o fundador da Ressurreição morrera enquanto construía uma bomba caseira; outros estavam convencidos de que os serviços de informações russos estavam a vigiar Simakov e que ele fora assassinado a mando do Kremlin. Para dissuadir tanto adversários como simpatizantes da Ressurreição, os restos mortais de Simakov foram sepultados numa campa sem identificação no cemitério de Kuntsevo nos arredores de Moscovo. Curtis foi enterrado duas semanas mais tarde em San Diego. Mais de três mil apoiantes da Ressurreição acompanharam o percurso seguido pelo cortejo fúnebre.

LONDRES

DEZOITO MESES MAIS TARDE

Como muitas coisas que mais tarde se tornam muito complicadas, a situação começou de forma bem simples.

A poucos dias de fazer trinta e seis anos, Christopher «Kit» Carradine – conhecido profissionalmente como C.K. Carradine – estava a caminhar ao longo de Bayswater Road em direção a um cinema em Notting Hill, a fumar um cigarro e a pensar em nada de especial, quando foi abordado por um homem alto, de barba, com um fato azul-escuro e uma pasta de couro gasta.

– Desculpe? – disse. – O senhor é o C.K. Carradine?

Carradine escrevia thrillers profissionalmente há quase cinco anos. Nesse período, publicara três romances e fora reconhecido por cidadão comuns precisamente duas vezes: a primeira vez quando estava a comprar um frasco de Marmite numa loja da Tesco Metro em Marylebone; a segunda quando estava na fila para pedir uma bebida depois de um concerto na Brixton Academy.

– Sou – respondeu ele.

– Desculpe incomodá-lo – disse o homem. Era pelo menos quinze anos mais velho do que Carradine, com cabelo ralo e olhos pequenos e brilhantes que tinham o efeito de o fazer parecer nervoso e confuso. – Sou um grande fã. Adoro verdadeiramente os seus livros.

– É muito bom saber. – Carradine tornara-se escritor quase por acaso. Ser reconhecido na rua era seguramente uma das regalias do trabalho, mas estava tão surpreendido com o elogio que não sabia o que dizer.

– A sua pesquisa, as suas personagens, as suas descrições. Tudo de primeira categoria.

– Obrigado.

– Os métodos de espionagem. A tecnologia. Parece absolutamente genuíno.

– Fico muito grato pelas suas palavras.

– Sei do que falo. Eu trabalho nesse mundo. – De súbito, Carradine estava numa conversa completamente diferente. O pai dele trabalhara para os serviços de informações britânicos nos anos sessenta. Embora tivesse contado muito pouco a Carradine sobre a sua vida de espião, a carreira dele despertara o interesse do filho no mundo secreto. – O senhor também deve ter trabalhado, pelo conhecimento que demonstra. Parece compreender muito bem a espionagem.

O oportunista que havia em Carradine, o escritor faminto de contactos e inspiração, deu meio passo em frente.

– Não. Eu andei de um lado para o outro depois de me formar. Conheci alguns espiões pelo caminho, mas nunca me tentaram recrutar.

O homem de barba fixou-o com os seus olhinhos brilhantes.

– Estou a perceber. Bem, isso surpreende-me. – Ele tinha um sotaque inglês refinado, assumidamente de classe alta. – Então não foi sempre escritor?

– Não.

Sendo ele um grande admirador, Carradine estranhou que o homem não soubesse isto. A biografia dele estava bem patente nos livros: Nascido em Bristol, C.K. Carradine formou-se na Universidade de Manchester. Depois de trabalhar como professor em Istambul, entrou para a BBC como estagiário. O seu primeiro romance, Equal and Opposite, tornou-se um bestseller internacional. C.K. Carradine vive em Londres. Talvez as pessoas não se dessem ao trabalho de ler a informação da contracapa.

– E vive por aqui?

– Vivo. – Quatro anos antes, vendera os direitos cinematográficos do seu primeiro romance a um estúdio de Hollywood. O filme fora feito e fracassara, mas o dinheiro que ele ganhara permitira-lhe obter um empréstimo para comprar um pequeno apartamento em Lancaster Gate. Carradine só contava acabar de pagar o empréstimo por volta dos oitenta e cinco anos, mas pelo menos era a sua casa. – E o senhor? – perguntou ele. – É do setor privado? Governo?

O homem de barba desviou-se para deixar passar um peão. Uma breve troca de olhares sugeriu que ele não podia responder à pergunta de Carradine com franqueza. Em vez disso, disse:

– Neste momento estou a trabalhar em Londres. – E permitiu que o barulho de um autocarro que passava levasse a pergunta pela rua abaixo.

– Robert – disse ele, levantando um pouco a voz quando um segundo autocarro usou os travões pneumáticos do outro lado da rua. – É conhecido como «Kit» no mundo real, não é?

– Sim – respondeu Carradine, apertando-lhe a mão.

– Olhe, vou dar-lhe o meu cartão.

De modo algo inesperado, o homem levantou a pasta, equilibrou-a precariamente num joelho levantado, rolou o polegar sobre a fechadura de segredo de três dígitos e abriu-a. Enquanto ele enfiava o braço lá dentro, baixando a cabeça e procurando um cartão, Carradine vislumbrou um par de óculos de natação. Por força de hábito, tomava notas com os olhos: manchas grisalhas na barba; unhas roídas; o blazer um pouco coçado no pescoço. Era difícil perceber a personalidade de Robert; ele era como a ideia de um estrangeiro de um inglês excêntrico.

– Aqui tem – disse, retirando a mão com o floreado de um mágico amador. O cartão, como o homem, estava um pouco vincado e gasto, mas a autenticidade do logótipo do governo, em relevo, era inconfundível:

ministério dos negócios estrangeiros e da commonwealth
robert mantis
técnico especialista, centro de controlo de operações

Um número de telemóvel e um endereço de e-mail estavam impressos no canto inferior esquerdo. Carradine sabia que não devia perguntar como é que um «técnico especialista» no «centro de controlo de operações» passava o tempo; era obviamente uma fachada. Como, seguramente, era o apelido: «Mantis» parecia um pseudónimo.

– Obrigado – disse ele. – Oferecia-lhe um dos meus, mas infelizmente os escritores não andam com cartões de visita.

– Deviam – retorquiu Mantis rapidamente, fechando a pasta. Carradine notou um súbito clarão de impaciência no seu carácter.

– Tem razão – disse ele. Fez um voto privado de ir à Ryman’s e mandar imprimir quinhentos cartões. – Então como é que descobriu os meus livros?

A pergunta pareceu apanhar Mantis desprevenido.

– Ah, os livros. – Pousou a pasta no passeio. – Não me lembro. A minha mulher, talvez? Talvez o tenha recomendado. É casado?

– Não. – Carradine vivera com duas mulheres na sua vida, uma um pouco mais velha, outra um pouco mais nova, mas as relações não tinham resultado. Não sabia porque é que Mantis estava a fazer perguntas sobre a sua vida pessoal, mas acrescentou: – Ainda não encontrei a pessoa certa. – Porque parecia necessário aprofundar a resposta.

– Ah, vai encontrar – disse Mantis em tom melancólico. – Vai encontrar.

A Mulher de Marrocos
créditos: Editora ASA

Livro: "A Mulher de Marrocos"

Autor: Charles Cumming

Editora: Asa

Publicação: 15 de novembro

Preço: €16,11

Tinham chegado a uma quebra natural na conversa. Carradine olhou ao longo da rua na direção de Notting Hill Gate, tentando sugerir com a sua linguagem corporal que estava atrasado para uma reunião importante. Mantis, pressentindo-o, pegou na pasta.

– Bem, foi muito agradável conhecer o famoso escritor – declarou, efusivo. – Sou mesmo um grande admirador. – Algo na forma como disse aquilo fez com que, de súbito, Carradine duvidasse que Mantis estava a dizer a verdade. – Dê novidades – acrescentou. – Tem os meus contactos.

Carradine tocou o bolso onde guardara o cartão de visita.

– Porque é que eu não lhe telefono? – sugeriu. – Assim fica com o meu número.

Mantis pôs fim à ideia com a mesma rapidez e eficiência com que fechara a sua pasta.

– Talvez não – disse ele. – Usa WhatsApp?

– Uso.

Claro. Encriptação ponto a ponto. Sem olhares curiosos do Serviço a determinar uma ligação entre um oficial de informações no ativo e um autor de espionagem faminto de ideias.

– Então falamos por aí. – Uma família de turistas espanhóis em animada conversa passou apressada a arrastar um número enorme de malas com rodinhas. – Adorava continuar a nossa conversa. Talvez possamos beber uma pint um destes dias?

– Parece-me boa ideia – respondeu Carradine.

Mantis já estava a alguma distância quando se virou.

– Tem de me dizer como é que faz – gritou.

– Faço o quê?

– Inventar tudo. Do nada. Tem de me contar o segredo.

*

Os escritores têm muito tempo nas mãos. Tempo para ruminar. Tempo para ponderar. Tempo para desperdiçar. Nos anos desde que deixara o seu emprego na BBC, Carradine tornara-se um mestre da procrastinação. Defrontado com uma página em branco às nove da manhã, conseguia encontrar meia dúzia de maneiras de adiar o momento em que tinha de começar a trabalhar.

Um jogo rápido de FIFA na Xbox; uma corrida no parque; um par de sets de dardos na Sky Sports 3. Estas eram as táticas normais – e, para Carradine, completamente legítimas – que ele usava para evitar a sua secretária. Não havia série premiada com Emmys ou filme clássico na Netflix que ele não tivesse visto quando devia estar a tentar alcançar o seu objetivo de mil palavras por dia.

– É um milagre que consigas trabalhar de todo – dissera o pai quando Carradine, de modo insensato, confessou as técnicas que aperfeiçoara para contornar os prazos. – Estás aborrecido ou algo do género? Parece que estás a perder o juízo.

Ele não estava aborrecido, propriamente. Tentara explicar ao pai que a sensação era mais parecida com inquietude, curiosidade, uma impressão de que tinha assuntos pendentes com o mundo.

– Estou atolado – disse. – Tive muita sorte com os livros até agora, mas, na verdade, ser escritor é uma profissão estranha. Somos marginais. A solidão é-nos imposta. Se eu fosse um livro, estaria preso no meio da narrativa.

– É perfeitamente normal – respondera o pai. – Ainda és novo. Há partes de ti que ainda não foram escritas. O que precisas é de uma aventura, qualquer coisa que te tire do escritório.

O pai tinha razão. Embora Carradine conseguisse trabalhar com rapidez e eficiência quando se empenhava, chegara à conclusão de que cada dia da sua vida profissional era quase exatamente igual ao anterior. Tinha muitas vezes saudades de Istambul e da vida ligeiramente caótica que levara entre os vinte e os trinta anos, da possibilidade de que algo surpreendente acontecesse a qualquer momento. Sentia falta dos seus ex-colegas da BBC: a camaradagem, as rivalidades, a bisbilhotice. Embora a escrita tivesse sido frutífera para si, não esperara que se tornasse a sua carreira a tempo inteiro numa fase relativamente tão precoce da sua vida. Nessa altura, Carradine trabalhara numa empresa enorme, monolítica, com milhares de funcionários, viajando com frequência para o estrangeiro para fazer programas e documentários. Depois dos trinta, vivera e trabalhara quase sempre sozinho, existindo na maior parte do tempo num raio de quinhentos metros do seu apartamento em Lancaster Gate. Ainda não se adaptara completamente à mudança, tal como ainda não aceitara que o resto da sua vida profissional fosse provavelmente passada na companhia de um teclado, um rato e um Dell Inspiron 3000. Para o mundo exterior, a vida de um escritor era romântica e libertadora; para Carradine, por vezes parecia uma gaiola dourada.

Tudo isto tornava o encontro com Mantis muito mais intrigante. A conversa deles fora uma distração agradável dos ritmos e responsabilidades estabelecidos da sua vida quotidiana. Em momentos frequentes ao longo das vinte e quatro horas seguintes, Carradine deu por si a pensar na conversa deles em Bayswater Road. Teria sido planeada? Será que o «Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth» – certamente um eufemismo para o Serviço – sabia que Carradine vivia e trabalhava naquela zona? Teria Mantis sido enviado para o sondar em relação a alguma coisa? Teria o enredo de um dos seus livros chegado demasiado perto de uma operação do mundo real? Ou estava a agir a título particular, em busca de um escritor que pudesse contar uma história confidencial usando a capa da ficção? Aficionado de thrillers de conspiração, Carradine não queria acreditar que o encontro deles fosse um mero acaso. Porque é que Mantis se declarara um ávido admirador dos seus livros sem ser capaz de dizer onde nem como os descobrira? E certamente que estava a par da carreira do pai dele no Serviço.

Carradine queria saber a verdade sobre o homem do MNEC. Com esse fim em mente, pegou no cartão de visita de Mantis, gravou o número no seu telefone e enviou uma mensagem pelo WhatsApp.

Foi um prazer conhecê-lo. Fico contente por ter gostado dos livros. Este é o meu número. Vamos beber a tal pint.

Carradine viu que Mantis estava online. A mensagem que enviara ficou rapidamente com dois vistos azuis. Mantis estava a «escrever».

Igualmente. Foi um prazer encontrá-lo. Almoço quarta-feira?

Carradine respondeu imediatamente.

Parece-me bem. Na minha zona ou na sua?

Dois vistos azuis.

Na minha.