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Sexta-feira, 13 de janeiro de 2017
Londres, 12h30

Deve estar enganada, mas parece-lhe ver alguém a mudar-se para a sua casa.

A carrinha encontra-se estacionada a meio da Trinity Avenue, com a boca quadrada escancarada, um grande móvel desliza pela língua de metal estriada. Fi observa, semicerrando os olhos diante dos raios amarelados do sol, raro nesta altura do ano, uma dádiva, enquanto o objeto é carregado à altura dos ombros por dois homens que passam o portão e avançam pela entrada.

O meu portão. A minha entrada.

Não, é ilógico: não pode ser a sua casa. Talvez seja a dos Reece, duas vivendas abaixo; puseram-na à venda no outono e ninguém tem a certeza se já alguém a comprou. As moradias deste lado da Trinity Avenue são todas construídas segundo o mesmo projeto, geminadas, de tijolos vermelhos e estilo eduardiano com frente dupla, os proprietários, unidos na sua preferência por portas pintadas de preto, e todos concordam que é fácil confundi-las.

Certa vez, quando Bram voltou a cambalear depois de umas bebidas «rápidas» no Two Brewers, escolheu a porta errada e ela ouviu, através da janela aberta do quarto, a barulheira e o bufar irritado do marido embriagado a forçar a fechadura do número 87, a casa de Merle e Adrian. A persistência dele era assombrosa, convencidíssimo de que se insistisse a chave iria funcionar.

— Mas parecem todas iguais — protestara na manhã seguinte.

As casas, sim, mas até um bêbedo daria pela magnólia — retorquira Fi, rindo-se. (Isto na altura em que ainda se divertia com a embriaguez dele e não se sentia cheia de tristeza, ou desdém, dependendo do estado de espírito.)

Vacila: a magnólia. É um marco, a árvore deles, um espetáculo muito celebrado quando está em flor e bonita mesmo despida, como agora, os ramos exteriores a erguer-se para o céu de forma artística. E sem dúvida que está no jardim da casa com a carrinha estacionada em frente.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Pensa. Deve ser uma entrega, qualquer coisa para Bram que ele não mencionou. Nem todos os pormenores são comunicados; ambos aceitam que o novo sistema não é infalível. Volta a apressar o passo, a usar os dedos como pala para o sol, está já bastante perto para ler a inscrição de lado no veículo: MUDANÇAS PRESTIGE. Então é uma mudança de casa. Devem ser amigos de Bram a deixar alguma coisa a caminho de outro lugar. Se pudesse escolher, seria um piano velho para os miúdos (Senhor, não uma bateria, por favor).

Mas espera, os homens das entregas reapareceram e transportam agora mais objetos da carrinha para a casa: uma cadeira de sala de jantar; uma grande bandeja metálica redonda; uma caixa rotulada FRÁGIL; um guarda-fatos pequeno e estreito do tamanho de um caixão. De quem são estas coisas? Uma onda de raiva ferve-lhe o sangue quando chega à única conclusão possível: Bram convidou alguém para ficar lá em casa. Sem dúvida algum companheiro de bebedeiras desalojado. («Fica o tempo que quiseres, meu, temos imenso espaço.») Que raio! Quando pretendia contar-lhe? Bem, não há hipótese de um desconhecido ir partilhar a casa deles, por mais temporário que seja, por mais caridosas que sejam as intenções de Bram. Em primeiro lugar estão os miúdos: não é isso que importa?

Nos últimos tempos, preocupa-se que estejam a esquecer o que é importante.

Está quase lá. Ao passar pelo número 87, apercebe-se de Merle na janela do primeiro andar, o rosto franzido, o braço levantado para chamar a atenção de Fi. Fi faz apenas um brevíssimo gesto de reconhecimento, atravessa o seu portão e avança pela entrada de tijoleira.

— Desculpe? O que se passa aqui?

Mas na confusão ninguém parece ouvi-la. Mais alto agora, cortante:

— O que estão a fazer com todas essas coisas? Onde está o Bram? Uma mulher desconhecida, mas sorridente, aparece na soleira.

— Olá, posso ajudar?

Fi solta uma exclamação abafada como se tivesse visto uma aparição. Esta é a amiga necessitada de Bram? É de um tipo familiar, não propriamente nas feições; é como ela, embora mais nova, na casa dos trinta, loira, ativa e alegre, capaz de arregaçar as mangas e assumir o comando. Do género, como atesta a história, de constranger um espírito livre como Bram.

— Sim, espero que sim. Sou a Fi, mulher do Bram. O que se passa aqui? É… é amiga dele?

A mulher aproxima-se, decidida, educada.

— Desculpe, mulher de quem?

— Do Bram. Quero dizer, ex-mulher. — A correção merece um olhar curioso, seguido pela sugestão de que as duas se afastem da entrada e do caminho dos «homens». Quando uma tela enorme embrulhada em plástico com bolhas desliza por elas, Fi permite que a conduza para debaixo da magnólia. — O que diabo combinou ele fazer aqui? — inquire. — Seja lá o que for, não fui informada.

— Não tenho bem a certeza do que quer dizer. — A mulher estuda Fi com um leve franzido na testa. Os seus olhos são de um castanho-dourado e honestos. — É vizinha?

— Não, claro que não. Fi está a ficar impaciente. Vivo aqui.

O franzir de testa acentua-se.

— Creio que não. Estamos a mudar-nos. O meu marido vai chegar com a segunda carrinha. Somos os Vaughan? — Di-lo como se Fi tivesse ouvido falar deles, até estende a mão para um aperto formal. — Chamo-me Lucy.

Boquiaberta, Fi esforça-se por confiar nos seus ouvidos, nas mensagens falsas que estão a transmitir ao cérebro.

— Sou proprietária desta casa e penso que saberia se tivéssemos decidido alugá-la.

O tom rosado da perplexidade insinua-se no rosto de Lucy Vaughan. Baixa a mão.

— Não alugámos a casa. Comprámos.

— Não diga disparates!

— Não estou a dizê-los! — A outra mulher lança uma olhadela ao relógio. — Oficialmente, convertemo-nos nos novos proprietários ao meio-dia, mas o agente entregou-nos as chaves algum tempo antes.

— O que está a dizer? Que agente? Nenhum agente tem as chaves da minha casa! — O rosto de Fi contorce-se com emoções contraditórias: medo, frustração, fúria, até um divertimento sombrio e reticente, porque deve ser uma brincadeira, embora numa escala desproporcionada. Que outra coisa poderia ser? — Isto é alguma partida? — Olha por cima do ombro da mulher à procura de câmaras, um telemóvel a gravar o seu desnorteamento em nome da diversão, mas não encontra nada, apenas uma série de caixas grandes a passar. — Porque não estou a achar graça nenhuma. Tem de dizer a essas pessoas que parem.

— Nem pensar! — retorque Lucy Vaughan, ríspida e decidida, conforme Fi em geral é, se não for atacada de surpresa por uma coisa como esta. A sua boca torce-se de irritação antes de se abrir com repentino espanto. — Espere lá um minuto, Fi, disse? Fi de Fiona?

— Sim. Fiona Lawson.

— Então deve ser… Lucy interrompe-se, repara nos olhares inquiridores dos homens das mudanças, baixa a voz. — Acho que é melhor entrar.

E Fi percebe que está a ser convidada a entrar na sua própria casa, como se fosse uma visita. Avança para o átrio largo de teto alto e estaca de repente, estupefacta. Não é o seu átrio. As dimensões estão corretas, sim, o esquema de cores azul e prateado continua o mesmo e a escada não se moveu, mas o espaço foi espoliado de todos os objetos que lhe pertencem: a consola e o banco rústico antigo, a pilha de sapatos e malas, os quadros nas paredes. E o seu adorado espelho de pau-rosa, herdado da avó, desapareceu! Estende a mão para tocar na parede onde deveria estar pendurado, como se esperasse encontrá-lo afundado no estuque.

— O que fez com todas as nossas coisas? — pergunta a Lucy. O pânico torna-a estridente e um homem das mudanças lança-lhe um olhar repreendedor, como se ela fosse a origem da ameaça.

— Eu não fiz nada — responde Lucy. — Você tirou as suas coisas. Ontem, presumo.

— É mentira. Preciso de ir ver lá em cima — retruca Fi, passando por ela com um golpe de ombro.

— Bem… — começa Lucy, mas não é um pedido. Fi não está a pedir permissão para inspecionar a sua própria casa.

Sobe os degraus dois a dois, para no patamar, a mão ainda a agarrar a curva de mogno do corrimão como se esperasse que o edifício fosse dobrar-se e desaparecer debaixo dos seus pés. Precisa de provar a si mesma que está na casa certa, que não perdeu o juízo. Bom, todas as portas parecem levar aonde deveriam: duas casas de banho no meio, dois quartos à esquerda e dois à direita. Mesmo quando larga o corrimão e entra nas diferentes divisões, ainda tem esperança de ver os pertences da família onde deveriam estar, onde sempre estiveram.

A Nossa Casa
A Nossa Casa créditos: Clube do Autor

Livro: "A Nossa Casa"

Autor: Louise Candlish

Editora: Clube do Autor

Publicação: 1 de março

Preço: € 17,10

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Mas não há nada. Não sobrou nenhum móvel, apenas marcas no tapete onde, vinte e quatro horas antes, se achavam as pernas de camas, estantes e guarda-roupas. Uma mancha verde-vivo no tapete de um dos quartos dos rapazes de uma bola de slime que se rompeu durante uma briga num aniversário. No canto do chuveiro dos miúdos está uma embalagem de gel, com óleo de melaleuca, recorda-se de a ter comprado no Sainsbury’s. Atrás das torneiras da banheira, os seus dedos encontram o azulejo recentemente lascado (o motivo da rachadura nunca esclarecido) e pressiona até lhe doer, a fim de verificar se ainda é de carne e osso e se as suas terminações nervosas continuam intactas.

O ambiente está impregnado de um cheiro forte a limão dos produtos de limpeza.

Volta ao andar de baixo e não sabe se a dor que sente vem de dentro dela ou das paredes da sua casa despojada.

Lucy, quando a vê aproximar-se, suspende a conversa com dois dos homens das mudanças e Fi pressente que rejeitou a oferta para com ela, a intrusa.

— Senhora Lawson? Fiona?

— Isto é inacreditável — diz Fi, repetindo a palavra, a única que serve. A incredulidade é o que a impede de sofrer de hiperventilação, de entrar em histeria. — Não entendo isto. Pode, por favor, explicar o que raio está a acontecer?

— É o que tenho tentado fazer. Talvez se vir as provas — sugere Lucy. — Venha para a cozinha, estamos a bloquear a passagem.

A cozinha também se encontra vazia, à exceção de uma mesa e cadeiras que Fi nunca viu e de uma caixa aberta com utensílios para o chá em cima da bancada. Lucy tem a amabilidade de empurrar a porta para não chocar os olhos da convidada com a visão da invasão contínua que se processa do outro lado.

Convidada.

— Veja estes e-mails — pede Lucy, passando a Fi o seu telemóvel. — São da nossa advogada, Emma Gilchrist, da Bennett, Stafford and Co.

Fi pega no telemóvel e ordena aos seus olhos que se concentrem. O primeiro e-mail é de há sete dias e parece confirmar a troca de contratos relacionados com o n.º 91 da Trinity Avenue, em Alder Rise, entre David e Lucy Vaughan e Abraham e Fiona Lawson. O segundo é dessa manhã e anuncia a conclusão da venda.

— Chamou-lhe Bram, certo? — pergunta Lucy. — Foi por isso que demorei uns minutos a perceber. Bram é o diminutivo de Abraham, claro. — Tem também uma carta na mão, a abertura da conta do gás, em nome dos Vaughan da Trinity Avenue. Fizemos todos os contratos de serviços em suporte eletrónico, mas por alguma razão enviaram este pelo correio.

Fi devolve-lhe o telemóvel.

— Tudo isto não significa nada. Podem ser falsificações. Phishing ou algo assim.

— Phishing?

— Sim, tivemos uma grande conversa sobre crimes de bairro há alguns meses na casa da Merle e a agente da polícia explicou-nos tudo. Faturas e e-mails falsos parecem convincentes agora. Enganam até os especialistas.

Lucy esboça um meio sorriso exasperado.

— São genuínos, juro. É tudo real. A quantia já terá sido transferida para a sua conta.

— Que quantia?

— O dinheiro que pagámos por esta casa! Sinto muito, mas não posso continuar a repetir isto, Senhora Lawson.

— Não estou a pedir-lhe que o faça — respinga Fi. — Estou a dizer-lhe que deve ter cometido um erro, que não é possível ter comprado uma casa que nunca esteve à venda.

— Mas claro que esteve. Caso contrário, não poderíamos tê-la comprado.

Fi fita Lucy, desorientada. O que ela está a dizer, o que está a fazer, é uma loucura completa. No entanto, não parece uma mulher louca. Não, Lucy parece convencida de que a pessoa com quem fala é que está transtornada do espírito.

— Talvez devesse telefonar ao seu marido — diz, por fim, Lucy.

Genebra, 13h30

Está deitado na cama, no seu quarto de hotel, com os braços e as pernas a estremecer. O colchão é bom, concebido para absorver insónias, paixão, os pesadelos mais profundos, mas não consegue aliviar uma agitação como a dele. Nem sequer os dois antidepressivos que tomou surtiram efeito. Talvez os aviões estejam a deixá-lo louco, a forma implacável como rangem a descolar e a aterrar, um atrás do outro, a gemer sob o seu próprio peso. Mas é mais provável que seja o terror do que fez, a perceção progressiva de tudo o que sacrificou.

Porque agora é real. O relógio suíço bateu. Uma e meia aqui, doze e trinta em Londres. Materializou-se no seu corpo o que existiu apenas na mente durante semanas: é um fugitivo, um homem à deriva devido aos próprios atos. Dá-se conta de que tinha esperado que houvesse, por desolador que pareça, um certo alívio, mas dado que chegou o momento, há uma coisa ainda mais desoladora: o nada. Apenas a constante mistura revoltante de emoções que sente desde que saiu de casa esta manhã, com uma sensação lugubremente fatalista e, ao mesmo tempo, preparado para a sobrevivência.

Oh, Deus. Oh, Fi. Já saberá? Com certeza alguém deve ter visto? Alguém deve ter telefonado a dar-lhe a notícia. Pode já ir a caminho da casa.

Endireita-se, com as costas apoiadas à cabeceira, e tenta encontrar distração no quarto. A poltrona é de imitação de pele vermelha, a secretária, de folheado preto. Um regresso à estética dos anos oitenta, mais perturbador do que tem qualquer direito de ser. Roda as pernas para fora da cama. O chão é quente sob os pés descalços; vinil ou outra coisa artificial. Fi identificaria o material, tem paixão pela decoração de interiores.

O pensamento provoca-lhe um espasmo, nova falta de ar. Levanta-se, à procura de ar fresco, o quarto, no quinto andar, arde com o aquecimento central, mas, por trás do sistema complicado de cortinas, as janelas estão seladas. Carros, brancos, pretos e prateados, percorrem as faixas de rodagem entre o hotel e o edifício do aeroporto e, mais além, as montanhas isolam e resguardam, os cumes brancos tingidos de azul-menta. Encurralado, vira-se outra vez para o quarto, a pensar, de forma inesperada, no pai. Os dedos estendem-se para a poltrona, agarram as costas do assento. Não se recorda do nome do hotel, que escolheu por causa da proximidade do aeroporto, mas sabe que é um lugar tão sem alma como merece. Porque vendeu a sua alma, foi o que fez. Vendeu a sua alma.

Porém, não há tanto tempo que tenha esquecido o que é ter uma.