Prólogo - A Torre Maldita
Na primavera de 1291, o maior exército que o Islão já reunira contra os cruzados na Terra Santa avançava na direção da cidade de Acre. Segundo rezam as crónicas, foi um espetáculo extraordinário: uma imensa massa de homens e animais, tendas, bagagens e mantimentos convergindo em frente do último bastião da cristandade. O objetivo era desferir um golpe esmagador que pusesse fim ao domínio cristão.
Tinham sido recrutadas tropas de todo o Médio Oriente: do Egito, a oitocentos quilómetros a sul; do Líbano e da Síria; das margens setentrionais do Eufrates e das grandes cidades do Cairo, Damasco e Alepo — numa convergência de todos os recursos militares dessas regiões. As tropas de elite compunham-se de guerreiros de língua turca escravizados, oriundos do outro lado do Mar Negro, e o exército incluía não só cavalaria, infantaria e brigadas especiais de provisões, mas também voluntários entusiastas, mulás e dervixes. A campanha desencadeara um fervor popular pela guerra santa — e uma ganância menos piedosa pela promessa do saque.
Neste cenário destacava-se uma vasta gama de uniformes, engenhos e armaduras: os turbantes brancos de nobres emires; os elmos cónicos de metal dos soldados rasos; cotas de malha e armaduras de escamas de couro; cavaleiros armados com arcos curtos e respetivos ginetes arreados com panos coloridos e bordados com insígnias heráldicas; músicos montados em camelos a tocar timbales, cornetas e címbalos; pendões amarelos agitados pelo vento e todo o tipo de armas: clavas, azagaias, lanças, espadas, balistas de cerco, bolas de pedra talhada, nafta para fazer fogo-greguês e granadas de argila. Bois jungidos puxavam carros carregados de madeira de árvores abatidas nas montanhas do Líbano e trabalhada nas oficinas de Damasco — eram os componentes pré-fabricados das catapultas de arremesso de pedras, conhecidas no mundo islâmico como manjanig (manganelas) e pelos europeus como trabucos. Ruidosos carros de bois transportavam um número sem precedentes de catapultas, algumas de tamanho prodigioso, para derrubar as muralhas de Acre. Representavam a arma de artilharia mais poderosa antes da era da pólvora.
A cidade que este exército estava prestes a atacar era muito antiga e sempre tivera um papel de destaque nas lutas de poder na região. Teve vários nomes: Akko em hebraico, Akka em árabe; Ptolemais para gregos e romanos; Acre em latim dos cruzados; Saint Jean d’Acre para os franceses. Foi registada em hieróglifos egípcios, nas crónicas dos reis assírios e na Bíblia. Comunidades da Idade do Bronze ocuparam uma colina próxima que, mais tarde, serviria de base para os sitiantes de Acre. A cidade foi conquistada por faraós e usada pelos persas para planear investidas contra a Grécia. Alexandre Magno subjugou-a sem chegar a combatê-la, Júlio César fez dela um porto de desembarque para as legiões romanas; esteve sob o domínio de Cleópatra. Foi ocupada pelos muçulmanos no ano de 636, apenas quatro anos após a morte do profeta Maomé.
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O valor de Acre e a sua colonização desde tempos imemoriais devem-se à sua localização e importância estratégica. A cidade faz fronteira com o Mediterrâneo, elevando-se sobre um promontório rochoso em forma de gancho que cria um porto pequeno, mas razoavelmente abrigado. A sul estende-se uma planície costeira e uma ampla baía de areia finíssima, valorizada desde os tempos dos fenícios para o fabrico de vidro. Por aqui corre o rio Na’aman, que irriga o interior da cidade. No promontório seguinte, a dezasseis quilómetros de distância, pode ver-se a igualmente antiga cidade de Haifa. Devido à sua localização a meio da costa do Levante, Acre converteu-se num ponto de escala natural: um centro para as rotas comerciais marítimas de norte para sul, desde o Egito até ao Mar Negro, e de leste para oeste através do Mediterrâneo. Acre foi um entreposto para a troca e transbordo de mercadorias, ligada tanto por terra como por mar a rotas ao longo da costa e até ao coração do Médio Oriente. Durante todo esse processo, sob a superfície da guerra latente, mostrou-se uma porta através da qual passavam espécies agrícolas, mercadorias, conhecimentos industriais, línguas, religiões e povos, enriquecendo o ciclo do comércio e o desenvolvimento da civilização.
Para os cruzados, Acre sempre foi importante. Em novembro de 1095, o sermão incendiário que o papa Urbano II pregou num campo próximo de Clermont, em França, apelando à salvação de Jerusalém, a cidade onde Cristo tinha vivido e morrido, inflamou a imaginação da cristandade ocidental — com resultados assombrosos. Na Primeira Cruzada, um enorme grupo de pessoas comuns partiu espontaneamente para o Oriente — e pereceu miseravelmente —, sendo depois recrutado um exército expedicionário mais organizado, sob o comando dos grandes barões da Europa. Com esforço, milhares de soldados percorreram os mais de três mil quilómetros desde a Europa até ao Médio Oriente. Contra todas as expectativas, conquistaram Jerusalém em julho de 1099, passando por cima dos cadáveres de muçulmanos e judeus mortos em batalha na sua marcha até ao Monte do Templo. No entanto, apesar desta façanha, a primeira longa marcha até à Terra Santa causara um desgaste tremendo. Dos trinta e cinco mil homens que haviam partido da Europa, provavelmente apenas doze mil chegaram a Jerusalém. Os estrategas militares rapidamente concluíram que os exércitos teriam de ser transportados por mar e que cidades portuárias como Acre eram urgentemente necessárias para os receber. Acre foi tomada inicialmente em 1104 por Balduíno de Bolonha, o primeiro rei cruzado de Jerusalém, e converteu-se depois no principal ponto de desembarque dos peregrinos e das tropas necessárias para os proteger. A cidade era tão valiosa que, quatro anos mais tarde, quando um dos mais importantes senhores cruzados, Gervásio de Bazoches, príncipe da Galileia, foi capturado numa incursão militar, o governante de Damasco tentou negociar a troca do seu prisioneiro pela cidade, juntamente com Haifa e Tiberíades, mais abaixo na costa. Balduíno preferiu sacrificar o homem. O escalpe de Gervásio, atado a um poste, foi convertido num estandarte muçulmano e o seu crânio serviu de taça pela qual o emir bebia.
Preservar Acre revelou-se decisivo para a continuidade do Outremer (Ultramar), como os franceses chamavam aos principados que haviam estabelecido nas costas da Palestina, do Líbano e da Síria durante a Primeira Cruzada. No entanto, menos de um século depois, os muçulmanos reconquistaram a cidade; no rescaldo da destruição do exército de cruzados na batalha dos Cornos de Hattin, em julho de 1187, Acre rapidamente capitulou, mas os seus habitantes cristãos puderam partir em segurança.
Este foi o prelúdio de um dos conflitos militares mais extenuantes das Cruzadas na Terra Santa. Durante 683 dias, de 1189 a 1191, uma força cristã debateu-se para recuperar Acre. Na luta pela cidade estiveram envolvidos os maiores generais da época: Saladino, o príncipe da dinastia aiúbida, combateu as cabeças coroadas da Europa — Filipe Augusto, de França, Ricardo I, de Inglaterra, Guido de Lusinhão, rei de Jerusalém, e as tropas da Terceira Cruzada. Foi um choque de titãs, no qual os cruzados sitiadores foram, por vezes, sitiados. Envolveu batalhas navais e batalhas em campo aberto, bem como surtidas militares e escaramuças. As muralhas foram derrubadas por catapultas e aríetes, atacadas com torres de cerco, minadas com túneis, defendidas com contrabombardeamentos de pedras, flechas e engenhos incendiários. Os homens eram chacinados com espadas, clavas e lanças, e queimados vivos pelo fogo-greguês. À vez, cada um dos lados viu-se forçado a admitir a derrota em consequência da fome, da doença e do desespero.
No final, a batalha centrou-se num único ponto. Os visitantes medievais de Acre evocaram vívidas analogias para descrever o traçado da cidade. Alternadamente, retrataram-na como tendo a forma de um machado ou de um escudo cruzado; ou, mais cruamente, como um triângulo assente no mar. Os dois outros lados eram formados pelas vertentes norte e leste da única muralha da cidade, intercalada com portas e torres, e à sua frente estendiam-se a falsa-braga e o fosso. Ambos os lados convergiam no ápice do triângulo. Este era o setor mais vulnerável e mais fortificado, e foi aí que se travou a batalha mais feroz por Acre. O vértice estava protegido por uma torre imponente, a pedra angular da defesa, à qual os cruzados chamavam a Turris maledicta, a Torre Maldita.
A origem deste nome não é clara. Existiam várias lendas a respeito desta torre de mau agoiro: que Cristo a amaldiçoara quando viajou pela Terra Santa e, portanto, nunca chegou a entrar na cidade. Ou que a cidade havia sido cúmplice na traição a Cristo: as trinta moedas de prata pelas quais Judas Iscariotes vendeu Cristo tinham sido ali cunhadas. Talvez o nome seja mais antigo do que o próprio cerco, mas o clérigo Wilbrand van Oldenburg, que visitou a cidade pouco depois, expressou um ceticismo saudável relativamente a essas explicações apócrifas. Acreditava simplesmente no seguinte: «Quando os nossos homens sitiaram a cidade, esta torre foi a mais defendida de todas, e é por isso que lhe chamaram a Torre Maldita.»
A batalha por este baluarte foi combatida com ferocidade. Durante a primavera e o verão de 1191, as muralhas da torre viram-se sujeitas a terríveis bombardeamentos de poderosas catapultas. Os defensores retaliaram em conformidade. A torre foi minada e contraminada; os homens lutaram nas profundezas de túneis escuros como breu e depois acordaram uma trégua subterrânea. Quando uma secção da muralha adjacente à torre desabou, os franceses tentaram um ataque frontal sobre os escombros dispersos, mas acabaram massacrados; um dos membros da alta nobreza, Albéric Clément, senhor de Le Mez e primeiro marechal de França, foi morto nessa investida. E nesse mesmo local, quando os sapadores finalmente derrubaram a torre a 11 de julho de 1191, os defensores muçulmanos da cidade curvaram-se perante o inevitável e capitularam.
Os cruzados retomaram a cidade, embora a um custo gigantesco. Talvez a torre personificasse toda aquela provação e o seu nome expressasse simplesmente toda a frustração, dor e sofrimento que os exércitos haviam vivenciado ante as muralhas de Acre. A captura da cidade assegurou a continuidade das guerras por mais um século entre os francos e os sarracenos, como cada um dos lados chamava ao outro.
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O rescaldo do cerco deixou um legado amargo. A 20 de agosto de 1191, pouco depois da rendição, Ricardo I de Inglaterra — apodado Coração de Leão — ordenou que os defensores muçulmanos de Acre fossem amarrados com cordas e levados para a planície no exterior da cidade, onde foram decapitados. Eram provavelmente cerca de três mil homens e, segundo um acordo prévio firmado com Saladino, destinavam-se a ser trocados por outros prisioneiros. Nos avanços e contra-avanços da batalha por Acre, ambos os lados cometeram erros, mas Saladino perdera uma oportunidade única para escorraçar os infiéis mar adentro de uma vez por todas. No final, viu-se forçado a negociar um acordo e a entregar a cidade. Ao considerar que Saladino não estava a cumprir os termos acordados, Ricardo I denunciou a situação ao seu conselho e agiu impiedosamente.
A Terceira Cruzada, da qual este cerco a Acre foi o prólogo, não atingiu o seu objetivo final de retomar Jerusalém. Ricardo I decidiu voltar para trás quando se encontrava a uns meros vinte e cinco quilómetros do prémio final, porque pensava que os riscos eram demasiado elevados — no preciso momento em que Saladino se preparava para evacuar a cidade. O confronto entre estes dois grandes adversários terminou num impasse, com a Cidade de Deus ainda em posse do inimigo e os cruzados tenazmente agarrados à costa da Palestina. No rescaldo, Acre tornou-se o centro e o coração de sucessivas cruzadas posteriores. Após 1191, a sobrevivência do Outremer estava muito dependente de Acre e a cidade foi rapidamente repovoada pelos cruzados; e, em virtude de um artifício linguístico, foi-lhe atribuído o título de capital do Segundo Reino de Jerusalém, embora a própria Jerusalém permanecesse nas mãos dos muçulmanos, exceto durante um curto período. Os monarcas cristãos de Acre ufanavam-se deste importantíssimo título de rei de Jerusalém que era disputado amiúde; a mais alta autoridade religiosa, que respondia apenas perante o Papa, também dava pelo epíteto de patriarca de Jerusalém.
O selo de Ricardo Coração de Leão
A execução da guarnição muçulmana que já tinha capitulado perante Ricardo Coração de Leão é ainda hoje um episódio controverso da história das Cruzadas e para o qual ainda não foi encontrada uma explicação conclusiva. «Só Deus sabe», deve ter pensado Baha al-Din, o conselheiro de Saladino naquela época. Exatamente cem anos mais tarde, seria recordado o destino dos muçulmanos executados. Em 1291, um exército muçulmano assediaria Acre e os cristãos defenderiam a Torre Maldita então reconstruída. Este livro é um relato dos acontecimentos que conduziram os muçulmanos às portas da cidade nessa primavera — o ato final de uma luta de duzentos anos conhecida pelos historiadores árabes como as guerras contra os francos e pelos europeus como as Cruzadas na Terra Santa.
1 - O Segundo Reino de Jerusalém: 1200-1249
Quando o clérigo francês Jacques de Vitry desembarcou em Acre, em novembro de 1216, para assumir o cargo de bispo, ficou horrorizado. Viera para revitalizar o fervor espiritual daquela povoação cristã em vésperas de uma nova cruzada, mas, em vez da cidade piedosa imaginada pelos clérigos ocidentais — a porta de entrada para a terra onde Jesus tinha caminhado e morrido —, pareceu-lhe antes um «monstro ou uma balista de nove cabeças, em guerra umas contra as outras». Havia seitas cristãs de todas as denominações: jacobitas de língua árabe (sírios ocidentais) que praticavam a circuncisão dos seus filhos «à maneira dos judeus» e se benziam apenas com um dedo; os sírios orientais, que ele considerava «traidores e muito corruptos», alguns dos quais, quando subornados, «revelavam os segredos da cristandade aos sarracenos» e cujos padres casados «penteavam os cabelos à maneira dos leigos». Por sua parte, as comunidades de comerciantes italianos — genoveses, pisanos e venezianos — ignoravam por completo as suas tentativas de os excomungar, raramente ou nunca escutavam a palavra de Deus e «recusavam-se até a assistir ao meu sermão». Havia também os nestorianos, os georgianos, os arménios e os pullani (europeus orientalizados, nascidos na Síria), que «se entregavam por completo aos prazeres da carne». Sem dúvida que a aparência invulgar dos cristãos orientais — os homens usando amiúde uma barba farta e trajando como muçulmanos, e as mulheres velando o rosto — desconcertou ainda mais Jacques de Vitry; quando tentou corrigir-lhes os erros na doutrina da fé, teve de recorrer à ajuda de um intérprete árabe. Vitry estava a vivenciar em primeira mão a desorientação típica de um visitante recém-chegado a uma cidade do Médio Oriente cujas igrejas, casas, torres e palácios eram desconcertantemente europeus na sua aparência.
Não foram apenas os costumes cristãos divergentes que causaram um choque cultural a Vitry. Foi o próprio lugar em si: «Quando entrei nesta cidade horrível e a encontrei cheia de inúmeros atos vergonhosos e feitos perversos, senti uma grande confusão na mente.» Descreveu um terrível antro de iniquidade, repleto de «estrangeiros que tinham fugido do seu próprio país como proscritos pelos vários crimes horríveis cometidos»; onde a magia negra era praticada e o homicídio grassava desenfreadamente; onde os maridos estrangulavam as suas esposas e as esposas envenenavam os seus maridos, onde «não só os leigos, mas também os eclesiásticos e alguns membros do clero regular alugavam os seus alojamentos a prostitutas por toda a cidade. Quem seria capaz de enumerar todos os crimes desta segunda Babilónia?»
Vitry pode ter exagerado a reputação de Acre como um antro de iniquidade, mas a cidade certamente não correspondeu às suas expectativas. Este sentimento de desconcerto entre os recém-chegados cristãos impelidos pelo zelo cruzado era um tema recorrente — um tema, aliás, com consequências trágicas na batalha final por Acre, setenta anos mais tarde.
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Após a queda de Jerusalém às mãos de Saladino e a tentativa fracassada de Ricardo Coração de Leão para a reconquistar, os estados cruzados ficaram reduzidos a três pequenos bastiões interligados e confinados à orla do Mediterrâneo: o Principado de Antioquia, a norte, o Condado de Trípoli e o chamado Segundo Reino de Jerusalém, uma comprida e estreita faixa costeira que se estendia ao longo de quase trezentos quilómetros desde Beirute até Ascalão e Jafa, no sul. Acre tornou-se então, verdadeiramente, a capital e o centro político deste afastado Reino Sagrado. Toda a administração secular e eclesiástica foi transferida para a cidade: Acre era a sede da corte real, albergava o castelo dos reis de Jerusalém e seria, mais tarde, a sede do patriarca do reino, o representante nomeado pelo Papa. As poderosas ordens militares dos Templários e dos Hospitalários também transferiram as suas sedes para Acre, onde construíram impressionantes e formidáveis palácios e fortalezas. Estas ordens, imensamente ricas, formavam agora a mais eficaz defesa do Oriente latino. No início do século XIII, as ordens redobraram esforços para construir castelos e desenvolver posições avançadas a fim de garantir a segurança das vias e a proteção dos restantes territórios. Em Acre, juntaram-se-lhes toda uma série de ordens menores — entre as quais a dos cavaleiros da Ordem de São Lázaro, originalmente fundada para cuidar dos leprosos — e imitações recentes das antigas ordens militares, algumas surgidas na sequência da Terceira Cruzada, entre as quais a Ordem dos Cavaleiros Teutónicos alemães e a Ordem dos Cavaleiros de São Tomás da Cantuária, de inspiração inglesa. Ao mesmo tempo, muitas das ordens religiosas, expulsas por Saladino ou receosas pela sua própria segurança, trasladaram as suas igrejas, mosteiros e conventos para o interior de Acre.
Jacques de Vitry não só tinha acabado de chegar ao substituto fictício da cidade santa de Jerusalém, como também, ao pôr tropegamente o pé em terra, se sentiu desorientado e horrorizado com o ambiente colorido e etnicamente diversificado daquele agitado e efervescente porto mediterrâneo, com todas as variadas atividades e atrações que lhe estavam associadas. Acre era um empório para a troca de mercadorias ao longo de uma vasta área e, sem dúvida, a cidade mais cosmopolita do mundo medieval. Era um caldeamento multilingue de pessoas e culturas, cada uma com os seus próprios bairros e instituições religiosas. Entre as suas oitenta e uma igrejas, havia uma dedicada a Santa Brígida de Kildare, da Irlanda; outra a São Martinho dos Bretões; e também outra a Santiago, da Península Ibérica. As comunidades de mercadores das repúblicas marítimas italianas — Génova, Veneza e Pisa — assumiram uma posição de destaque e competiam ferozmente com comerciantes de Marselha e da Catalunha pelos mercados mediterrâneos. A muitos destes grupos de mercadores fora concedida independência jurídica e comercial pelas autoridades régias. Havia uma pequena comunidade de judeus, de coptas do Egito e de mercadores muçulmanos que vinham regularmente de Damasco, Antioquia e Alexandria para negociar. A principal língua de comunicação era o francês, mas nas ruas também se podia ouvir alemão, catalão, occitano, italiano e inglês, à mistura com as línguas do Levante. Na primavera e no outono, com a chegada dos navios mercantes do Ocidente, o porto ficava lotado de embarcações e a população da cidade aumentava com a presença de cerca de dez mil peregrinos desejosos de visitar os lugares santos. Candongueiros, guias turísticos e pousadas lucravam com este fluxo de visitantes. Quando a insegurança do interior palestiniano impossibilitava a prossecução da viagem até Jerusalém, Acre convertia-se num lugar de peregrinação por direito próprio, embora não tivesse nenhuma ligação com a vida de Jesus. Sob a orientação de clérigos locais, Acre oferecia um circuito de quarenta igrejas locais, cada uma com as suas próprias relíquias e lembranças sagradas, e onde os peregrinos podiam obter o perdão dos seus pecados por outorga do papado.
Graças à vaga de refugiados oriunda de toda a Palestina e à atração que exercia sobre mercadores e peregrinos europeus, Acre viveu um período de grande prosperidade no início do século XIII. Sendo um importante porto do Levante latino, não só negociava com o Mediterrâneo Ocidental como foi também um eixo de intercâmbio comercial para todo o Mediterrâneo Oriental, desde o Mar Negro e Constantinopla, até ao Egito, a sul. Esta situação implicava uma certa adaptação ao mundo islâmico e uma desconsideração pelas barreiras da fé, para grande desagrado do papado. Acre utilizava o sistema monetário dos seus vizinhos muçulmanos, cunhando imitações em ouro e prata das moedas fatímidas e aiúbidas, com inscrições em árabe. Quando, em 1250, o Papa baniu o uso de inscrições e estilos de datação islâmicos, a casa da moeda de Acre limitou-se a substituir na cunhagem as palavras árabes por cristãs — mas ainda em caracteres árabes e acrescentando cruzes. Devido à interdependência entre cristãos e muçulmanos, nenhum dos lados tinha muito interesse em perturbar o statu quo.
No decurso do século XIII, Acre chegou a rivalizar, e mesmo a superar, a grande cidade portuária de Alexandria em termos de volume e variedade de mercadorias que passavam pelo seu porto. O Conde da Cornualha, chegado à cidade no início da década de 1240, estimou que Acre movimentava um volume comercial no valor de cinquenta mil libras anuais, um montante similar ao rendimento dos monarcas da Europa Ocidental. Têxteis como seda, linho e algodão transitavam do mundo islâmico para a Europa, quer como matérias-primas quer como peças acabadas, juntamente com objetos de vidro, açúcar e pedras preciosas. Da direção contrária provinha lã, que os mercadores latinos traziam da Damasco muçulmana, bem como ferragens e alimentos (especiarias, sal, peixe), cavalos de guerra e vários outros artigos necessários para o apoio ao esforço cruzado. A cerâmica chegava a Acre como lastro nos porões dos navios europeus, desde pontos longínquos como a China, e todos os dias passavam pelas portas da cidade camelos e burros carregados de mantimentos frescos necessários para alimentar a grande população: vinho de Nazaré, tâmaras do Vale do Jordão, trigo, frutas e legumes cultivados localmente por cristãos orientais e muçulmanos. A cidade era também um centro industrial: os Templários e os Hospitalários produziam objetos de vidro e açúcar refinado nos seus próprios moinhos e fornos no exterior da cidade, enquanto nos movimentados mercados cobertos havia oficinas especializadas no fabrico de artigos de vidro, de metal, de cerâmica e lembranças para peregrinos, bem como oficinas de curtumes e fabricantes de sabão.
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Se sucessivos papas ficaram chocados com o estilo islâmico de cunhagem de moedas em Acre, um outro comércio altamente lucrativo causou-lhes ainda maiores dores de cabeça: grande parte dos materiais de guerra vendidos aos sultões aiúbidas no Cairo — madeira e ferro para a construção naval, armas e máquinas de guerra, bem como nafta para os engenhos incendiários — passava através de Acre pelas mãos de mercadores italianos. Contudo, ainda mais importante para a Santa Sé era o tráfico de seres humanos. Escravos militares turcos das estepes a norte do Mar Negro chegavam em navios bizantinos ou italianos através de Constantinopla, e Acre era tanto um ponto de escala como um mercado de escravos. Repetidas proibições pontifícias foram regularmente ignoradas. Em 1246, o papa Inocêncio IV condenou as três comunidades mercantis italianas da cidade por transportarem escravos de Constantinopla, que eram depois levados até ao Egito para engrossar os exércitos do sultão. A aceleração deste comércio a partir da década de 1260 viria a ter consequências inesperadas para os estados cruzados remanescentes: Acre estava condenada a ser sitiada por exércitos recrutados através do seu próprio porto.
Jacques de Vitry pode ter exagerado a iniquidade de Acre, mas a cidade serviu, de facto, como uma espécie de colónia penal: por vezes, as cortes europeias comutavam as penas criminais pela deportação dos sentenciados para a Terra Santa. E a sua descrição do lugar foi fidedigna ao retratar as disputas e discórdias daquele monstro de nove cabeças. Sob a autoridade meramente nominal do quase sempre ausente rei de Jerusalém — um título que, durante o século xiii, conduziria a uma contínua fragmentação e a lutas internas —, Acre era constituída por grupos de interesses diversos e, em grande medida, independentes uns dos outros, que rivalizavam por direitos de propriedade e acesso ao porto. As comunidades dentro da cidade tinham os seus privilégios históricos e dispunham frequentemente dos seus sistemas jurídicos, o que dificultava uma administração efetiva da justiça, além de que desfrutavam de um considerável grau de autonomia. Rivalizando entre si e respondendo apenas perante o Papa, as ordens militares incluíam o setor mais rico e, militarmente falando, mais eficaz da comunidade: os Templários e os Hospitalários, que ocuparam extensas partes de Acre com os seus enormes palácios e complexos fortificados, eram a presença mais dominante na cidade.
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