Prólogo

O Owen gostava de se meter comigo por eu perder tudo, por eu, à minha maneira, ter elevado a perda de coisas a uma forma de arte. Óculos de sol, chaves, luvas, bonés de beisebol, selos, máquinas fotográficas, telemóveis, garrafas de Coca-Cola, canetas, atacadores. Meias. Lâmpadas. Cuvetes de gelo. Ele não está propriamente errado. Eu tinha de facto tendência para não saber onde punha as coisas. Para me distrair. Para esquecer.

No nosso segundo encontro, perdi o talão do parque de estacionamento onde tínhamos deixado os carros durante o jantar. Cada um levara o seu. Mais tarde, o Owen gozou com isso – adorava gozar com o facto de eu ter insistido em levar o meu carro para aquele segundo encontro. Até na noite de núpcias ele gozou com isso. E eu gozei com o interrogatório a que ele me submetera naquela noite, fazendo-me um sem-fim de perguntas sobre o meu passado – sobre os homens que eu deixara para trás, os homens que me tinham deixado.

Chamara-lhes «rapazes que poderiam ter sido o tal». Brindou à saúde deles e disse que, onde quer que estivessem, lhes estava grato por não serem aquilo de que eu precisava, permitindo assim que pudesse estar ele ali sentado à minha frente.

No mês dedicado às mulheres, o É Desta Que Leio Isto celebra a escrita no feminino com a leitura de "Uma Paixão Simples" de Annie Ernaux. A convidada para a sessão — marcada para 23 de março, pelas 21h — é Cátia Vieira, escritora, influencer literária e assumidamente fã da escrita da Nobel francesa.

Romancista a dar os primeiros passos na carreira, Cátia Vieira publicou "Lola" em 2021, estando a trabalhar no segundo. A sua paixão pela literatura e o ritmo com que acumula leituras estão bem documentados na sua conta de Instagram, onde tem mais de 50 mil seguidores, sendo assumidamente uma fã de Annie Ernaux.

Além de ter um percurso académico ligado às letras — com licenciatura e mestrado em Estudos Portugueses e doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho —, Cátia Vieira fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores, e faz trabalho freelance nas áreas da comunicação e do marketing.

Quanto a "Uma Paixão Simples", é um dos romances com que Annie Ernaux construiu a sua reputação literária, tendo a francesa sido a vencedora do Prémio Nobel da Literatura de 2022.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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«Mal me conheces», dissera-lhe eu.

Ele sorriu. «Não é essa a sensação que dá, ou é?»

Ele não estava enganado. Foi impressionante, o que parecia existir entre nós, logo desde o início. Gosto de pensar que foi por isso que me distraí. Que foi por isso que perdi o talão do estacionamento.

Estacionámos no parque do Ritz-Carlton, na baixa de São Francisco. E o funcionário do parque gritou que não interessava que eu alegasse ter estado lá só a jantar.

A multa por se perder o talão de estacionamento era de cem dólares.

– A senhora pode ter tido aqui o carro durante semanas – disse o funcionário do parque. – Como é que sei que não está a tentar enganar-me? Cem dólares mais o imposto por cada talão perdido. Leia o aviso.

Cem dólares mais o imposto para voltar para casa.

– Tens a certeza de que o perdeste? – perguntou-me o Owen. Mas estava a sorrir quando o disse, como se esta fosse a melhor notícia sobre mim que recebera a noite toda.

Eu tinha a certeza. Ainda assim, verifiquei cada centímetro do meu Volvo alugado, do luxuoso automóvel desportivo do Owen (embora eu nunca tivesse entrado nele) e daquele pavimento cinzento e insuportável do parque de estacionamento. Nada de talão. Em lado nenhum.

Na semana a seguir ao desaparecimento do Owen, sonhei que ele estava nesse parque de estacionamento. Vestia o mesmo fato, tinha o mesmo sorriso enfeitiçado. No sonho, ele estava a tirar a aliança.

Olha, Hannah, disse ele. Agora também me perdeste a mim.

Se abrires a porta a estranhos...

Vemo-lo na televisão a toda a hora. Ouve-se bater à porta da frente. E, no lado de fora, alguém está à espera de nos dar a notícia que muda tudo. Na televisão, é normalmente um capelão da polícia ou um bombeiro, talvez um oficial das Forças Armadas fardado. Mas quando abro a porta – quando fico a saber que tudo está prestes a mudar para mim –, o mensageiro não é um polícia nem um investigador federal com calças engomadas. É uma menina de doze anos, com equipamento de futebol. Caneleiras e tudo.

– Senhora Michaels? – pergunta ela.

Hesito antes de responder – como faço frequentemente quando alguém me pergunta se sou essa pessoa. Sou e não sou. Não mudei de nome. Fui Hannah Hall nos trinta e oito anos antes de ter conhecido o Owen, e não vi nenhum motivo para me tornar outra pessoa depois disso. Mas eu e o Owen somos casados há pouco mais de um ano. E, durante esse tempo, aprendi a não corrigir as pessoas em nenhum dos sentidos. Porque o que elas realmente querem saber é se eu sou a mulher do Owen.

É decerto o que a menina de doze anos quer saber, o que me leva a explicar como é que estou tão certa de que ela tenha doze anos, tendo passado a maior parte da minha vida a considerar que as pessoas se dividem em duas categorias gerais: crianças e adultos. Esta mudança é um resultado do último ano e meio, um resultado do facto de a filha do meu marido, a Bailey, ter a espantosamente pouco atraente idade de dezasseis anos. É um resultado de eu, no meu primeiro encontro com a reservada Bailey, ter cometido o erro de lhe dizer que ela parecia mais nova do que era. Foi a pior coisa que podia ter feito.

Talvez tenha sido a segunda pior. A pior foi provavelmente a minha tentativa de remediar a situação dizendo em jeito de brincadeira que gostaria que alguém achasse que eu parecia mais nova. Desde então, a Bailey mal me tolera, apesar de eu já saber que é melhor não tentar fazer qualquer tipo de piada com alguém de dezasseis anos. Ou, na verdade, nem sequer tentar falar demasiado.

Mas voltando à minha amiga de doze anos que está à porta, apoiando-se ora numa chuteira suja ora na outra.

– O senhor Michaels queria que eu lhe desse isto – diz ela.

A seguir, estende a mão, em cuja palma se encontra uma folha dobrada de papel pautado amarelo. Tem HANNAH escrito na parte da frente com a caligrafia do Owen.

Pego no bilhete dobrado, olho a rapariga nos olhos.

– Desculpa – digo –, alguma coisa me está a escapar. És amiga da Bailey?

– Quem é a Bailey?

Eu não esperava que a resposta fosse sim. Há um oceano entre os doze e os dezasseis. Mas não estou a perceber. Porque é que o Owen não me telefonou, simplesmente? Porque é que está a envolver esta rapariga? A primeira hipótese que me vem à cabeça é que tenha acontecido alguma coisa à Bailey e o Owen não tenha podido sair de junto dela. Porém, a Bailey está em casa, a evitar-me, como de costume, com a sua música em altos berros (a seleção de hoje: Beautiful: The Carole King Musical) a pulsar escadas abaixo, por si só uma lembrança repetitiva de que eu não sou bem-vinda no quarto dela.

A Última Coisa Que Ele me Disse
créditos: Porto Editora

Livro: "A Última Coisa Que Ele me Disse"

Autor: Laura Dave

Editora: Porto Editora

Publicação: 9 de março

Preço: € 15,98

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– Desculpa. Estou um pouco confusa... Onde é que o viste?

– Ele passou a correr por mim na entrada – responde ela.

Por momentos, julgo que se refere à nossa entrada, o espaço mesmo atrás de nós. Mas isso não faz sentido. Moramos numa casa flutuante na baía, uma casa-barco, como são comummente chamadas, exceto aqui em Sausalito, onde há toda uma comunidade delas. Quatrocentas, no total. Aqui são casas flutuantes – só vidros e vistas. O nosso passeio é um cais, a nossa entrada, uma sala de estar.

– Então viste o senhor Michaels na escola?

– Foi o que acabei de dizer. – Lança-me um olhar como se dissesse: «Onde é que havia de ter sido?» – Eu e a minha amiga Claire estávamos a caminho do treino. E ele pediu-nos para virmos cá deixar isto. Eu disse que só podia vir depois do treino e ele disse que não fazia mal. Deu-nos a sua morada.

Mostra-me um segundo pedaço de papel como prova.

– Também nos deu vinte dólares – acrescenta.

O dinheiro ela não mo mostra. Talvez pense que lho vá tirar.

– O telemóvel dele estava avariado, ou assim, por isso não conseguia falar consigo. Não sei. Ele mal abrandou.

– Então... ele disse que tinha o telemóvel avariado?

– Como é que eu havia de saber isso se ele não mo tivesse dito? – responde.

Então, o telemóvel dela toca – ou eu penso que é um telemóvel até ela o tirar da cintura e me parecer mais um beeper de alta tecnologia. Os beepers voltaram?

Canções do espetáculo da Carole King. Beepers de alta tecnologia. Mais uma razão para a Bailey provavelmente não ter paciência para mim. Há um mundo de coisas adolescentes sobre o qual eu não sei nada.

A rapariga põe-se a teclar no seu aparelho, esquecendo já o Owen e a sua missão de vinte dólares. Sinto-me relutante em deixá-la ir-se embora, ainda sem saber bem o que se está a passar. Talvez seja uma espécie de brincadeira estranha. Talvez o Owen ache que isto tem piada. Eu não acho que tenha piada. Pelo menos por enquanto.

– Chau – diz ela.

Começa a afastar-se ao longo das docas. Vejo-a ficar cada vez mais pequena, o sol põe-se sobre a baía, umas quantas estrelas vespertinas precoces iluminam-lhe o caminho.

Depois eu própria saio de casa. Em parte, estou à espera de ver o Owen (o meu querido e tonto Owen) saltar do lado do cais, com o resto da equipa de futebol aos risinhos atrás dele, todos eles a revelarem-me a partida que eu aparentemente não estou a entender. Mas ele não está lá. Não está lá ninguém.

Então, fecho a porta da frente. E olho para o pedaço de papel amarelo que continua dobrado na mão. Ainda não o abri.

Ocorre-me, no silêncio, quão pouca vontade tenho de o abrir. Não quero saber o que diz o bilhete. Parte de mim ainda quer agarrar-se a este derradeiro momento – o momento em que ainda podemos acreditar que isto é uma brincadeira, um erro, um grande nada; o momento antes de termos a certeza de que começou algo que já não podemos parar.

Desdobro o papel.

A mensagem do Owen é curta. Uma linha, ela própria um enigma.

«Protege-a.»