Capítulo 5 — DESCENDÊNCIA DA RAINHA ISABEL II

CARLOS, PRÍNCIPE DE GALES

I learned the way a monkey learns: by watching its parents.* — Príncipe Carlos

Quando a mãe se tornou rainha, em 6 de Fevereiro de 1952, o príncipe Carlos, com 3 anos de idade, converteu-se automaticamente em herdeiro do trono. Hoje, 70 anos mais tarde, ainda está à espera que tal se transforme em realidade, numa idade em que as normais profissões apontam para a reforma, mas não na sucessão dinástica das Casas Reais. Já ultrapassou o tempo de espera que o seu bisavô, Eduardo VII, aguardou pela morte e sucessão da sua mãe, a rainha Vitória, imperatriz das Índias. Num tão longo período de vida e de história da Grã-Bretanha, a sua popularidade sofreu altos e baixos, provocados pelos avatares da sua vida sentimental, que agora parece estar numa fase de serena acalmia, ainda agitada, de vez em quando, pelos fantasmas do passado, ou pelas decisões do seu filho menor de abandonar a categoria de membro sénior da família real e fixar residência com a sua mulher americana e dois filhos, do outro lado do Atlântico.

"É Desta Que Leio Isto"

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

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Nasceu no Palácio de Buckingham, a 14 de Novembro de 1948, e foi o primeiro herdeiro ao trono a não contar com a presença do ministro do Interior, prática suprimida pelo seu avô Jorge VI. Educado por uma mãe “distante” e um pai severo e, para muitos, “implacável”, Carlos Filipe Artur Jorge aprende os rudimentos de leitura e escrita nas aulas do palácio, com uma educadora, antes de ser inscrito no externato londrino de Hill House School, onde ingressou a 7 de Novembro de 1956, em plena crise do canal de Suez. Posteriormente, em 1957, transitou para a Cheam School em Knightsbridge, que frequentou durante cinco anos, em regime de pensionato. Prosseguiu a sua escolarização no severo Colégio de Gordonstoun, que o seu pai frequentou trinta anos antes, e que considerou muito formativo para a personalidade do jovem príncipe. Este, como os seus camaradas, deviam fazer a sua cama, engraxar os seus sapatos e tomar duche de água fria, depois de longas corridas pelo campo, o que afligia o próprio agente de segurança que o acompanhava à distância. Não beneficiou de nenhum regime de favor por ser quem era, e mais tarde recordará “como se sentia profundamente só e infeliz”. O seu escape às frustrações era o teatro escolar, chegando a interpretar o papel principal em Macbeth.

Fez um ano na Austrália, no colégio de Timbertop e, em 1967, foi admitido no Trinity College de Cambridge, onde estudou História, Arqueologia e Antropologia. Em 1970 recebeu o seu diploma de Bachelor of Arts em História pelo que, se vier a ser rei, se transformará no primeiro soberano inglês a ter um grau universitário. Tanto a rainha como o príncipe Filipe estavam convencidos de que deviam manter os procedimentos de comportamento estabelecidos na corte pela rainha consorte, Maria de Teck. A Carlos foi ensinado que devia fazer uma vénia à avó e manter-se em pé na presença do avô, até que lhe fosse dada autorização para sentar-se, pelo que a sua infância esteve repleta destes rituais. Uma tal etiqueta acabou por torná-lo pouco espontâneo, o que dificultou, no seu crescimento, encontrar novas amizades na escola ou mais tarde.

Carlos foi o primeiro herdeiro do trono a frequentar uma escola, o que, de certo modo constituiu um primeiro trauma. Se Gordonstoun foi formativo para um príncipe pobre e afastado dos pais, como Filipe da Grécia e Dinamarca, que soube traçar o seu caminho com uma resiliência e uma determinação que o levaram a casar com a futura rainha, foi um grande erro seu forçar a mesma receita para um jovem príncipe como Carlos1, gentil e inseguro, que precisava de um ambiente familiar sereno e não o inóspito dormitório escocês, a centenas de quilómetros de casa. E, para mais, a sua natureza sensível temia o tom brusco do pai e o seu julgamento, que pretendia “torná-lo um homem”. A mãe, cujo papel era muito importante e absorvente, não tomou pé no assunto, até porque o príncipe Filipe em casa era o páter-famílias e se ocupava da educação dos filhos, embora oficialmente caminhasse dois passos atrás da soberana. Achava a rainha que o filho devia ter “uma educação o mais normal possível”, como se a opção daquele colégio fosse a correcta. Primeiro estava o seu dever como rainha, a família vinha depois. Não fora isso que jurara no dia da sua coroação?

Como aconteceu com outras pessoas reais da sua geração, Carlos tinha medo do pai e recentemente, pouco antes da sua morte, corrigiu algumas afirmações que fizera ao seu biógrafo Jonathan Dimbleby, sobre os aspectos da sua infelicidade juvenil, causada pelo príncipe Filipe. Este era um homem de acção, orgulhoso e com autoconfiança, qualidades que queria, a todo o custo, incutir no filho primogénito, porque seriam úteis quando fosse rei. Estes traços de carácter transmitiu-os, naturalmente, à sua filha Ana, que em muito se assemelha ao duque de Edimburgo.

Não era fácil conter os jovens adolescentes na “disciplina formativa” concebida, anos antes, pelo judeu alemão Kurt Hahn, que o príncipe Filipe achava a receita espartana tão útil para a formação do carácter do seu filho Carlos. Ele era alvo de muitas chacotas e partidas e mesmo no jogo de râguebi era agredido deliberadamente: “a diversão de bater no futuro rei de Inglaterra”. As suas cartas para casa não escondiam o desagrado de ali estar, naquilo que muitas vezes chamava “o inferno”, onde ridicularizavam as suas “orelhas de abano” e tinha medo de ir dormir e ser agredido durante a noite pelos colegas do internato. Talvez a melhor lição que o príncipe Carlos retirou desses dias foi a cínica aprendizagem de “não confies em ninguém”, o que era suficientemente negativo para um jovem introvertido e com pouca autoconfiança como ele. O autor Geoffrey Regan2 refere, para este período da sua vida, que “o resultado foi que o príncipe Carlos continuou a ser um solitário. A sua predilecção pelos quadros de paisagens e não pelos retratos é um sinal revelador da sua personalidade. Mas o seu grande interesse pelos edifícios e arquitectura foi interpretado por alguns como um cri de coeur da parte de uma pessoa a quem foi aplicada uma educação fria e sem afectos”. Desde muito jovem, Carlos sofreu daquilo que se chama “amor à distância”, com uma mãe empenhada nos seus deveres de rainha com o seu povo, deixando para segundo plano as obrigações da maternidade e acompanhamento da prole, que delegava no príncipe consorte.

Investido príncipe de Gales em 1969, data em que tomou lugar, igualmente, na Câmara dos Lordes, começou os primeiros passos de um papel oficial junto de sua mãe. Tímido, complexado pelas suas grandes orelhas – que os progenitores se recusaram sempre a mandar corrigir cirurgicamente3 – aprendeu as suas funções conscienciosamente, “como os macacos, olhando para os meus pais”. Realizou a sua primeira viagem oficial às Ilhas Fidji e à Nova Zelândia em 1970, com 21 anos. No ano seguinte, iniciou uma cuidada formação militar, que iria durar cinco anos, intercalada com diversas visitas de estudo. Na Escola da Armada do Ar (Royal Air Force) de Cranwell, seguiu um curso de piloto de alto nível, passando depois para a Royal Navy, onde serviu na fragata Júpiter como oficial de transmissões, e na Escola Aéreo-Naval de Yeovilton, de onde saiu em Novembro de 1974 com o brevet de piloto de helicóptero. Em 1975 regressou à marinha para cursar a Escola Naval de Greenwich e assumiu o comando de um draga-minas, o Bronington. Dois anos mais tarde, em Janeiro de 1977, o herdeiro aparente do trono inglês concluiu a sua carreira militar com o grau de capitão-de-fragata na Marinha e tenente-coronel na RAF.

Com 29 anos, em 1977, Carlos foi nomeado conselheiro privado da rainha e, a esse título, tem acesso às famosas “caixas vermelhas” que diariamente transportam a telegrafia diplomática e os documentos oficiais. A sua formação estava praticamente concluída, faltando uma última prova, do foro mais íntimo, mas de enorme significado para a instituição monárquica, que era a de casar e ter, pelo menos, um herdeiro e um sobresselente, que assegurassem a continuidade da Dinastia de Windsor. Uma vez que se produz um casamento no seio de uma família real, em especial o do herdeiro aparente, o fim é claro: produzir um herdeiro legítimo, de preferência um varão, cujo nascimento é rodeado de uma série de regras e procedimentos.

Foram várias as candidatas e, em 17 de Junho de 1977, o jornal de maior tiragem em Inglaterra publicava na primeira página: “Carlos casa-se com Astrid. Oficial. Na próxima semana o pedido. Os filhos serão protestantes e as filhas católicas”4 . Este casamento contava com a total aprovação da rainha Isabel II, que reconhecia muitas qualidades na princesa de 22 anos, com um passado impoluto, filha do grão-duque João de Bourbon-Parma e da irmã do rei Balduíno, Josefina Carlota de Saxe-Coburgo, que a encantou durante uma visita oficial ao Luxemburgo, em Novembro de 1976. Durante a recepção oficial conversou com ela bastante tempo e ficou maravilhada, segundo comentou, mais tarde com colaboradores próximos. Pesava também a inclinação de Carlos, que ficou fascinado com a loira e bela princesa, e considerava que a sua educação como pessoa real e um elevado sentido da responsabilidade garantiam um comportamento ideal para uma futura rainha da Grã-Bretanha. Carlos foi a Bruxelas, território neutro, no dia 8 de Dezembro de 1977, e a rainha Fabíola, tia da pretendente, organizou muito bem um almoço em Laeken, em que estavam presentes igualmente o cardeal Suenens, primaz da Bélgica e assessor papal, bem como monsenhor Jean Hengen, bispo do Luxemburgo. O único “defeito” da princesa era ser católica, devota e praticante. Esta condição, só por si, era já um grave problema, se levarmos em conta a lei dinástica em vigor desde o século xvii, pela qual, os príncipes britânicos com direito à sucessão não podem contrair matrimónio com católicos. Assim aconteceu no ano seguinte, quando o primo direito da rainha, príncipe Miguel de Kent, se casou com a baronesa austríaca católica Maria Cristina von Reibnitz e teve de renunciar aos seus direitos sucessórios à Coroa, perdendo os rendimentos da lista civil. As conversações entre os prelados de ambas as confissões religiosas cristãs, depois de muitas idas e vindas entre Roma e Londres, resultaram infrutíferas. Quando o ministro conservador Enoch Powell afirmou numa conferência de imprensa que o projectado matrimónio do herdeiro da Coroa com a princesa Maria Astrid significaria “o final da monarquia britânica, porque o país cairia baixo a alçada do Papa”, ficou claro que este projecto acalentado pela rainha e pelo seu filho resultava inviável. E como me recordava o meu saudoso amigo Juan Balansó, “Inglaterra tinha perdido, seguramente, uma boa rainha e Carlos uma esposa apropriada”5. Na única vez que comentou publicamente o caso de Maria Astrid do Luxemburgo, Carlos disse “uma das vantagens de casar com uma princesa é que, pelo menos, ela já sabe com o que pode contar.”

A Viúva de Windsor
créditos: Oficina do Livro

Livro: A Viúva de Windsor - Histórias da História do Longo Reinado de Isabel II

Autor: José de Bouza Serrano

Editora: Oficina do Livro

Publicação: 13 de setembro

Preço: 17,91€

Entretanto, o herdeiro do trono, seguindo o conselho do seu tio e mentor, lorde Mountbatten, que lhe emprestou a bela propriedade de Broadlands para os seus encontros amorosos, dizia-lhe para “tentar ter o maior número de aventuras antes de se casar”. E fazendo jus à lista de namoradas e amantes com que o creditam, veremos passar, entre outras, Jane Wellesley, descendente directa do duque de Wellington, que comentou já ter títulos necessários e não necessitar de acrescentar princesa de Gales; Lucia Santa Cruz, filha do embaixador do Chile; uma neta do próprio Mountbatten, que teria realizado as suas mais profundas ambições, Amanda Knatchtbull (1957-), filha de lady Patrícia e do 7.º barão Brabourne, mas que não se sentiu interessada pela “pesada carga” que representava; e uma tal Camila Shand que é, nem mais nem menos, que a bisneta de Alice Keppel, amante oficial do rei Eduardo VII. No início dos anos 1970, o príncipe teve uma ligação séria com essa jovem, mas partiu em serviço da marinha durante meses. Estando embarcado, chegou-lhe a notícia que Camila se casara, em 1973, com o oficial de cavalaria católico Andrew Parker Bowles (que tinha tido um namoro com a princesa Ana, irmã do príncipe de Gales). Ficaram amigos até que se tornam amantes, em 1986, como iremos ver. Mais velha do que ele um ano e consideravelmente mais experiente sexualmente, Camila era – sabemos agora – o amor da vida de Carlos.

Há uma tradição na aristocracia e classes superiores britânicas, dos maridos das senhoras que são cortejadas pelas pessoas reais, chamados em francês, maris complaisants, como era Ernest Simpson quando o rei Eduardo VIII seduzia abertamente a sua mulher Wallis6 , ou o visconde Furness, com a anterior ligação do príncipe de Gales com a sua mulher, Telma. Simplesmente, pede-se-lhes que olhem para o outro lado das aventuras extramaritais dos seus cônjuges. Pode, inclusivamente, existir uma compensação, prémio ou prebenda ou o facto de ser, como se diz em português calão corrente, “corno real”. Deste modo, existe uma espécie de prestígio ou tolerância entre aristocratas cuja mulher vai para a cama com o rei. Há uma nítida preferência em manter ligações com mulheres casadas que, no fim e ao cabo, voltam todos os dias para os seus maridos. Mais simples seria admitir que, na maior parte dos casos, estão tão preocupados com os seus assuntos ou com as próprias amantes, que não se preocupam com o que as suas legítimas fazem. Muitos casais, após um casamento de amor ou conveniência e de terem descendência, seguem vidas civilizadamente separadas, mantendo, dentro do possível, as aparências de um casal formal, para lá das infidelidades. Não há melhor exemplo desta “modernice” do que o triângulo amoroso que o príncipe Carlos mantinha com Camila Parker Bowles enquanto estava casado com Diana, princesa de Gales, e ela com o marido, Andrew Parker Bowles: “Diana preocupava-se consideravelmente, mas Parker Bowles, mantendo as suas relações com outras mulheres, aparentemente não.”7 Só iria reagir mais tarde, pedindo o divórcio, quando a princesa de Gales deu a entrevista à BBC e pôs tudo a nu.

Notas:

*Aprendi da forma como um macaco aprende: ao observar os seus pais — Príncipe Carlos

  1. Bem como para os seus irmãos André e Eduardo, lá por o príncipe Filipe se ter dado bem em Gordonstoun, não era uma razão absoluta para aplicar a mesma receita e para aí enviar os seus três filhos, sem ter em conta as suas personalidades, inclinações ou desejos.
  2. REGAN, Geoffrey, op. cit., p. 248.
  3. BRICARD, Isabelle, op. cit., p. 180, refere que Norman Parkinson, devendo um dia realizar uma fotografia oficial do príncipe, ficou tão embaraçado com as suas orelhas, que as colou com fita adesiva!
  4. BALANSÓ, Juan, Los Reales Primos de Europa, Barcelona, Editorial Planeta S.A., 1992, p. 85.
  5. Astrid continuou ao serviço do seu povo e, em 1981, foi anunciado oficialmente o seu compromisso com o arquiduque Carlos Cristiano, neto dos últimos imperadores de Áustria. Otto de Habsburgo concedeu ao seu sobrinho predilecto o título de príncipe de Bar (um vínculo familiar antigo na Lorena), cujo uso está reconhecido pelo Estado belga, onde reside com a sua família e trabalha como assessor financeiro. O grão-duque João reservou para a sua primogénita e eventuais descendentes os direitos sucessórios ao trono do Luxemburgo, hoje ocupado pelo grão-duque Henrique, casado com a grã-duquesa Maria Teresa com ampla descendência.
  6. Conta Charles Higham (op. cit., pp. 146-147), que em Fevereiro, Ernest Simpson queria ser membro da loja maçónica à qual pertenciam o rei e o irmão, duque de Kent, que era grão-mestre, presidida por sir Morris Jenks, que chumbou Ernest. O rei pergunta a razão e Jenks explicou que era contra a lei maçónica aceitar maridos “cornudos” como membros. Mais uma vez o rei insistiu que a sua relação com Wallis era meramente platónica. Era, simplesmente, uma questão técnica e, como resultado da diligência real, Ernest foi admitido.
  7. 301 CONRADI, Peter, The Great Survivers, op. cit.