2.

– Mais uma fileira de ganchos e já está – diz a Mãe, referindo-se aos ganchos em forma de borboleta que vai espetando cuidadosamente na minha cabeça. Detesto este penteado, são carreiras de mechas enroladas, muito apertadas, que ficam no sítio graças a uns ganchinhos dolorosos e que arrancam o escalpe. Eu preferia usar um boné de basebol, mas a Mãe adora este penteado e diz-me que fico bonita, portanto, venham daí os ganchos-borboleta.

– Está bem, Mamã – digo eu, a abanar as pernas para trás e para a frente, sentada no tampo fechado da retrete. O abanar das pernas é um toque simpático. Estou a convencê-la.

O telefone lá de casa começa a tocar.

– Bolas!

A Mãe abre a porta da casa de banho e inclina-se lá para fora, esticando-se o mais possível para agarrar o telefone pendurado na parede da cozinha. Faz isso tudo sem largar a mecha do meu cabelo que estava a enrolar, pelo que todo o meu corpo vai atrás, na mesma direção da minha mãe.

– Estou? – diz ela para o telefone, ao atender. – Hã-hã. Hã-hã. O QUÊ? Nove da noite? É o mais cedo? Tanto pior, os miúdos lá terão de aguentar OUTRA NOITE sem o PAI. A culpa é tua, Mark. A culpa é tua.

A Mãe desliga o telefone com violência.

– Era o teu pai.

– Eu percebi.

– Aquele homem, Net. Nem te digo. Às vezes, só queria...

Ela respira fundo, ansiosa.

– Às vezes, só querias o quê?

– Bem, eu podia ter-me casado com um médico, com um advogado, ou com um...

– Chefe índio – acabo a frase, já que conheço muito bem esta tirada habitual dela. Perguntei-lhe uma vez que chefe índio namorara ela, mas ela respondeu que não falava literalmente, que era uma figura de retórica, uma forma de dizer que podia ter tido o homem que quisesse, em tempos, antes de ter tido filhos, facto que a deixou menos atraente. Eu disse-lhe que lamentava e ela disse que não fazia mal, que preferia ter-me a mim do que a um homem. Então, disse-me que eu era a melhor amiga dela e beijou-me na testa. Mas depois, pensou melhor e acrescentou que até tinha chegado a sair umas vezes com um médico “alto, ruivo e muito estável do ponto de vista financeiro”.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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A Mãe continua a prender-me o cabelo.

– E com produtores também. Produtores de cinema, produtores de música. O Quincy Jones, uma vez, olhou duas vezes quando passou por mim numa esquina. Sinceramente, Net, não só me podia ter casado com qualquer um desses homens, como devia tê-lo feito. Eu estava destinada a ter uma boa vida. A ter fama e fortuna. Sabes bem como queria ter sido atriz.

– Mas a Avó e o Avô não te deixaram – digo eu.

– Mas a Avó e o Avô não me deixaram, isso mesmo.

Fico a matutar sobre porque é que a Avó e o Avô não a deixaram, mas não lhe pergunto. Sei que é melhor não fazer um certo tipo de perguntas, aquelas que entram em demasiados pormenores. Em vez disso, deixo a Mãe fornecer a informação que ela decidir fornecer, enquanto a ouço com atenção e tento absorver o que diz, exatamente na medida em que ela quer que o faça.

– Ui!

– Desculpa. Apertei-te a orelha?

– Sim. Mas não faz mal.

– É difícil ver deste ângulo.

A Mãe começa a esfregar-me a orelha. Fico logo melhor.

– Eu sei.

– Quero dar-te a vida que nunca tive, Net. Quero dar-te a vida que eu merecia. A vida que os meus pais não me deixaram ter.

– Está bem.

Estou nervosa e temo o que aí vem.

– Acho que devias representar. Acho que darias uma bela atriz.

Loira. Olhos azuis. É o que eles adoram naquela terra. – Qual terra?

– Em Hollywood.

– Hollywood não é longe?

– Fica a uma hora e meia daqui. Com autoestradas à mistura, é certo. Teria de aprender a guiar nas autoestradas. Mas é um sacrifício que estou disposta a fazer por ti, Net. Porque eu não sou como os meus pais. Eu quero o melhor para ti. Sempre. Sabes isso, não sabes?

– Sim.

A Mãe faz uma pausa, como faz sempre antes de dizer qualquer coisa que pensa ser parte de um grande momento. Curva-se para a frente para me olhar nos olhos, sem largar a madeixa por enrolar.

– Então, o que dizes? Queres representar? Queres ser a pequena atriz da Mamã?

Só há uma resposta certa.

3.

Não me sinto preparada. Sei que não estou preparada. O miúdo à minha frente desce os degraus do palco aos saltos, de uma forma que me deixa baralhada. Ele não parece nada nervoso. Isto é só mais um dia para ele. Senta-se ao lado da dúzia, ou coisa assim, de outras crianças que já estão sentadas porque já apresentaram os seus monólogos.

Eu olho em volta daquela sala aborrecida, de paredes brancas e nuas, e para a fileira de miúdos em cadeiras empilháveis de metal. Brinco nervosamente com o polegar no canto do papel que tenho na mão. Sou a seguir. Pus-me no fim da fila para ter mais tempo para treinar, uma decisão que agora lamento, porque os meus nervos tiveram mais tempo para se pôr em franja. Nunca me senti assim. Enjoada de nervos.

– Podes avançar, Jennette – diz-me o homem de rabo de cavalo preto e barbicha que vai decidir o meu destino.

Eu aceno que sim com a cabeça e subo para o palco. Pouso a folha de papel no chão, para ter mais liberdade para usar as mãos nos gestos largos que a Mãe me mandou fazer, e começo o meu monólogo sobre as gomas Jell-O Jigglers.

Começo com a voz trémula. Consigo ouvi-la muito alta na minha cabeça. Tento abafá-la, mas soa cada vez mais alta. Faço um grande sorriso e espero que o Barbichas não tenha reparado. Finalmente, chego ao remate.

– ... porque com as gomas de pacote, é um fartote!

Faço um risinho a seguir a esta frase, tal como a mãe me mandara: “agudo e fofinho, com uma ruguinha no nariz lá para o fim”. Espero que o risinho não revele nem metade do desconforto que sinto ao ouvi-lo sair de dentro de mim.

O Barbichas pigarreia – nunca é bom sinal. Diz-me para tentar fazer o monólogo outra vez, mas “solta-te um pouco, fá-lo com mais simplicidade, como se falasses com uma amiga... Oh, e não faças aqueles gestos com a mão”.

Fico dividida. Os gestos com a mão são exatamente o que a Mãe me mandou fazer. Se chegar à sala de espera e lhe disser que não os fiz, ela vai ficar desiludida. Mas se chegar à sala de espera e lhe disser que não tenho um agente, ela vai ficar ainda mais desiludida.

Repito o monólogo, desta feita sem gestos com a mão, e parece-me ligeiramente melhor, mas vejo que o Barbichas não obteve exatamente o que queria. Desiludi-o. Sinto-me péssima.

Depois de eu acabar, o Barbichas chama nove nomes, incluindo o meu, e diz que os outros cinco miúdos se podem ir embora. Reparo que só uma das raparigas percebe que acaba de ser rejeitada. Os outros quatro saem da sala nas calmas, como se fossem comer um gelado. Sinto-me mal por ela, mas bem por mim. Sou uma das Escolhidas.

O Barbichas diz-nos que a Academy Kids gostaria de nos representar para trabalhos de figurante, o que quer dizer que aparecemos em segundo plano em cenas de séries e filmes. Pelas caras demasiado animadas que faz, percebo logo que o Barbichas está a tentar fazer com que más notícias passem por boas.

Depois de nos mandar ir contar às nossas mães na sala de espera, o Barbichas chama pelo nome de outros três miúdos e pede-lhes que fiquem. Eu arrasto-me, a tentar ser a última a sair da sala, para poder ouvir o que se passa com aquelas três crianças especiais, aquelas três Ainda Mais Escolhidas. O Barbichas diz-lhes que foram selecionadas para serem representadas como “atores de pequenos papéis”, o que quer dizer figurantes especiais, com falas. Saíram-se tão bem nos monólogos que vão ser representadas por esta agência não para servirem de adereços humanos, mas sim para serem ATORES genuínos, certificados e merecedores de falas.

Sinto algo desagradável a borbulhar dentro de mim. Inveja misturada com rejeição e autocomiseração. Porque é que não me acharam boa que chegue para falar?

Vou para a sala de espera e corro até à Mãe, que confere o seu livro de cheques pela quarta vez esta semana. Digo-lhe que fui escolhida como figurante, e ela parece genuinamente feliz. Sei que isto é só porque ela não sabe que há uma categoria superior, para a qual eu podia ter sido escolhida. Preocupa-me que ela venha a descobrir.

A Mãe começa a preencher a papelada da agência. Aponta a caneta à linha tracejada onde é suposto que eu assine o meu nome. Vem a seguir à linha tracejada onde ela já assinou – ela tem de assinar também porque é minha encarregada de educação.

– Para que são as assinaturas?

– O contrato só diz que o agente recebe vinte por cento e que nós recebemos oitenta por cento. Quinze por cento desses oitenta por cento vão para uma conta chamada “conta Coogan”*, a que terás acesso quando fizeres dezoito anos. Essa é a soma que a maioria dos pais deixa que caiba aos filhos. Mas tens sorte. A Mamã não te vai tirar dinheiro nenhum, a não ser para o salário dela e para as coisas essenciais.

– O que são as coisas essenciais?

– Para quê este interrogatório, assim de repente? Não confias em mim?

Assino logo.

O Barbichas vem cá fora para fazer os seus comentários a cada um dos pais. Vem ter com a Mãe primeiro e diz-lhe que eu tenho o potencial para trabalhar como atriz de pequenos papéis.

– Potencial? – pergunta a mãe, criticamente.

– Sim, sobretudo porque ainda só tem seis anos, portanto, está a começar cedo.

– Mas porquê só potencial? Porque não pode fazer já esses pequenos papéis?

– Bem, pude ver, durante o monólogo dela, que estava muito nervosa. Ela parece muito tímida.

– Ela é tímida, mas está a ultrapassar isso. Ela vai ultrapassar isso.

O Barbichas coça o braço onde tem uma tatuagem de uma árvore. Respira fundo, como se estivesse a preparar-se para dizer qualquer coisa que o deixa nervoso.

– É importante que a Jennette queira representar, para se sair bem – diz ele.

– Oh, é o que ela mais quer na vida – diz a Mãe, enquanto assina sobre a linha tracejada da página seguinte.

É a Mãe quem mais quer isto na vida, não eu. Este dia foi extenuante e nada divertido e, se eu pudesse escolher, escolheria nunca mais fazer tal coisa. Por outro lado, é verdade que eu quero o que a Mãe quer, portanto, ela até tem razão.

O Barbichas sorri-me de uma forma que eu gostaria de poder perceber. Não gosto quando os crescidos fazem caras ou sons que eu não percebo. É frustrante. Faz-me sentir que me está a escapar alguma coisa.

– Boa sorte – diz-me ele com uma certa solenidade. E depois, vai-se embora.

4.

São três da manhã da sexta-feira seguinte ao contrato com a Academy Kids, quando a Mãe me acorda para o meu primeiro dia como figurante numa série chamada Os Ficheiros Secretos. Só tenho de estar no estúdio às cinco da manhã, mas, como a Mãe tem medo de conduzir na autoestrada pela primeira vez, quer começar com avanço e sair muito mais cedo.

– Ó para mim! Estou a ultrapassar o meu medo por ti – diz a Mãe ao entrarmos para a carrinha Ford Windstar de 1999.

Chegamos aos estúdios da 20th Century Fox com uma hora de antecedência, pelo que vamos dar um pequeno passeio no escuro. Quando passo pelo mural gigante com o Luke Skywalker contra o Darth Vader, numa das paredes exteriores de um dos estúdios, a Mãe solta um guinchinho, encantada, saca da máquina fotográfica descartável e tira uma fotografia de mim diante daquilo. Sinto-me envergonhada, como se não pertencêssemos ali.

Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu
créditos: Lua de Papel

Livro: "Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu"

Autor: Jennette McCurdy

Editora: Lua de Papel

Publicação: 28 de fevereiro

Preço: € 14,85

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Pelas 4h45, a Mãe decide que já estamos perto o suficiente da hora para que fui chamada e que podemos aparecer; então, vamos dar o nome, mesmo à entrada do estúdio, a um assistente de produção baixo e careca. Ele diz-nos que viemos cedo, mas que podemos passar pelo espaço do catering dos figurantes antes de ser hora de seguir para o plateau.

O espaço do catering dos figurantes é um sítio porreiro. É uma tenda à beira do estúdio com comida por toda a parte. Cereais, doces, jarros de café e de sumo de laranja, e bandejas prateadas com comida de pequeno-almoço: panquecas, waffles, ovos mexidos e bacon.

– E é à borla – diz a Mãe, toda contente, enquanto embrulha queques e croissants variados em guardanapos de papel, que enfia na sua bolsa Payless grandalhona para oferecer, mais tarde, aos meus irmãos. Há uma série de ovos inteiros num tabuleiro. A mãe diz que estão cozidos. Eu agarro num para provar. A Mãe ensina-me a rolar o ovo numa superfície dura para quebrar a casca e a descascá-lo depois para revelar a clara. Salpico o ovo com sal e pimenta e dou uma grande dentada. Adoro. Pego também num pacote de minissanduíches de queijo e bolacha da Ritz Bits. Podia habituar-me a isto.

Quando como a última dentada do ovo, chegaram já todos os outros miúdos figurantes (somos trinta), e somos chamados para o plateau de imediato.

Vamos atrás do assistente de produção careca, que nos guia para o estúdio onde vamos filmar. Assim que atravessamos para o estúdio, eu fico deslumbrada. O teto é tão alto e está coberto de centenas de luzes e varas. Há um cheiro a madeira fresca e um som de martelos e berbequins. Muita gente passa por nós, vestida com as calças cheias de bolsos, alguns com pranchetas na mão, outros a sussurrar insistentemente para os walkie-talkies. Há qualquer coisa de mágico aqui. Dá a sensação de que há muita coisa a acontecer.

Chegamos ao plateau e o realizador – um homenzinho de cabelo castanho-claro, suficientemente longo para o prender atrás da orelha – leva-nos para dentro, falando rápida e freneticamente. Ele olha para mim e para as outras vinte e nove crianças e diz-nos, entusiasmado, que vamos todos fazer de crianças presas numa câmara de gás, a sufocar até à morte. Eu vou acenando com a cabeça, enquanto tento decorar cada palavra, para que as possa depois repetir à Mãe, no caminho para casa, quando ela perguntar. Sufocar até à morte. Entendido.

O realizador diz-nos onde nos devemos pôr. Eu estou quase no fundo daquela massa de crianças, até que ele pede aos miúdos mais pequenos para virem para a frente, e é o que faço. Ele aponta então para cada um de nós, rapidamente, uns atrás dos outros, e pede para lhe darmos a nossa melhor cara de “mortos de susto”. Sou a nona ou a décima criança a ser indicada e, depois de lhe fazer a minha careta, ele diz ao cameraman que está ao meu lado para fazer um grande plano sobre mim. Não faço ideia do que isto significa, mas presumo que seja bom, porque o realizador me pisca o olho quando acaba de falar.

– Mais uma, ainda mais assustada! – grita-me o realizador.

Esbugalho um pouco mais os olhos, esperando que funcione. E funciona, acho eu, já que ele diz “Apanhei! Siga!” e dá-me uma palmadinha nas costas.

O resto do dia consiste em segmentos de trabalho de estúdio e trabalho de escola, que temos de fazer no estúdio, para podermos alternar entre uma coisa e outra. Como é a minha mãe quem me educa em casa, ela pegou no meu programa escolar para hoje e fez um pequeno pacote com todas as fichas de trabalho presas por um clipe. A rapariga de doze anos sentada ao meu lado na sala de aulas não para de me dar cotoveladas para dizer que, se não quisermos, não temos de fazer trabalho escolar algum, porque somos figurantes, e os professores do estúdio atribuídos aos figurantes querem lá saber o que fazemos, porque só querem ensinar os atores com pequenos papéis. Faço o possível por ignorá-la e preencher a minha folha sobre as capitais de Estado. Passada cerca de meia hora deste segmento de trabalho escolar, somos levados da sala pelo assistente de produção para repetir a cena. A mesma cena. Todo o dia, a mesma cena.

Não faço ideia de porque é que temos de continuar a fazer a mesma cena tantas vezes e percebo que é melhor não fazer perguntas, mas reparo que, cada vez que volto ao plateau, a câmara está numa posição diferente, pelo que fico com a sensação de que terá alguma coisa que ver com isso. Bom... pelo menos, cada vez que me trazem para o plateau, posso ver a Mãe.

Cada vez que o assistente de produção nos leva outra vez para o plateau, passamos pela “sala de detenção dos pais dos figurantes”, um pequeno bungalow onde os pais estão todos apinhados. Aceno à Mãe, que repara sempre em mim. Pouco importa o quão mergulhada esteja na sua revista Woman’s World, dobra o canto da página, ergue os olhos para mim e mostra-me o polegar num gesto de aprovação. Estamos tão ligadas.

Ao fim do dia, estou exausta. Foram oito horas e meia entre o plateau e os deveres escolares, a transitar do palco para a sala de aula, a receber indicações, a ouvir berbequins e a cheirar o fumo (havia uma máquina de nevoeiro na câmara de gás para criar atmosfera). Foi um longo dia e não me diverti particularmente, mas gostei do ovo cozido.

– Sufocar até à morte – diz a Mãe com fervor, no caminho para casa, enquanto repete tudo o que eu lhe contei sobre o dia. – E num GRANDE PLANO. Isso vai mesmo mostrar que és boa. Aposto que, logo que isto vá para o ar, a Academy Kids vai suplicar para seres figurante especial. SUPLICAR!

A Mãe abana a cabeça incrédula enquanto dá pancadinhas de contentamento no volante. Ela parece tão livre e despreocupada neste momento. Tento absorver a expressão dela tão profundamente quanto possível. Quem me dera que ela estivesse assim mais vezes.

– Vais ser uma estrela, Nettie. Tenho a certeza. Vais ser uma estrela.

Notas

*Conta prevista pela lei californiana para proteção dos atores infantis, para salvaguardar que o dinheiro que ganham não possa ser gasto na totalidade pelos pais. (N. da T.)