Carnes gordas

Desmembrei, desmanchei e desossei. Guardei as carnes magras na arca frigorífica, separadas em doses individuais. Salguei as carnes gordas. Ao longo de um ano preparei refeições variadas. Feijoadas, croquetes, suflês, cozidos simples, mas também pratos étnicos de difícil confecção. Com as miudezas fiz canjas perfumadas. Cozinhei os miolos à moda alentejana – primeiro fritos em banha, depois misturados com pão e sumo de laranja. Uma autêntica iguaria. Num domingo de muito sol, resolvi cozinhar para as mulheres do apartamento, sete ao todo, duas marroquinas, uma brasileira, três dominicanas e eu. Servi um guisado apurado com nabos, cenouras e batatas novas. A brasileira encheu o prato três vezes. Alegres do vinho, animadas, cantámos canções da Beyoncé, da Rihanna e da Dua Lipa. Foi um domingo bem animado. Tive especial atenção à preparação do coração. Depois de muito ponderar, decidi laminá-lo em fatias muito finas com uma faca santoku. Temperei-as com limão, mostarda, molho inglês e, em carpaccio, servi-as com cuscuz. Quando já só sobravam cartilagens, carnes excessivamente gordas e nervos, moí tudo e misturei com a comida dos animais. Passado um ano já nada sobrava do João Pedro, o grande amor da minha vida. Poupei bastante dinheiro nesse período. Farta de cozinhar, mais ainda do sabor levemente adocicado, levemente enjoativo, levemente acidulado do João Pedro, com o dinheiro que poupei, durante um mês comi e bebi no melhor restaurante de peixe de Lisboa.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Aninhas, o marido e a amante

Sempre fora assim. Apaixonava-se por homens, gostava de ir para a cama com mulheres. Esse facto causava-lhe desconforto por se sentir incapaz de se definir intimamente. Sabia que era de direita, ateia, feminista, não sabia se era homossexual, heterossexual ou bissexual. Quando Olympia apareceu na sua vida, sem pedir nada em troca, Aninhas levou-a ao apartamento da Paiva Couceiro. Nua, corpo oferecido, Olympia fez-lhe lembrar a Maja desnuda de Goya. Tinha mamas pequenas, bicos rijos, anca definida, pernas torneadas, o triângulo púbico aparado sem exagero. Usava frequentemente flores no cabelo. O corpo de Olympia, tão real quanto transcendente, excitava Aninhas. Porém, assim que atingia o orgasmo, a presença da outra mulher passava a ser para si intolerável. Não suportava as pegadas molhadas no chão do quarto, os cabelos que ficavam na almofada, o cheiro íntimo de Olympia na ponta dos seus dedos. A nudez de Olympia tornava-se supérflua e ofensiva. Aninhas voltava para casa e entregava-se ao marido. Amava-o pela sobriedade e pela inteligência. Gostava de sentir a barba grisalha a arranhar-lhe a pele. Gostava da sombra dos seus corpos no passeio enquanto caminhavam ao final do dia. Um ao lado do outro.

Babilónia
créditos: E-Primatur

Aninhas, o marido e o amante

Relacionava-se com o marido sem esforço. Conheciam-se desde o liceu e havia entre eles uma simbiose perfeita, um desejo de conforto e de estabilidade, uma ambição não totalmente assumida de fugir das origens. Ambos provinham de famílias de classe média, esforçadas e honestas. Raramente voltavam aos subúrbios da cidade e tinham o cuidado de nunca misturar na mesma festa os familiares com os novos amigos. Faziam férias na Sardenha e iam à neve quando apenas as famílias das avenidas novas frequentavam as estâncias espanholas. Assim que os hábitos adquiridos se tornavam populares – a democraticidade do consumo e a facilidade no acesso ao crédito levava a que tal acontecesse – passavam a desprezá-los como se nunca tivessem sido seus. A empregada funcionava muitas vezes como indicador daquilo que podiam ou não continuar a fazer. Ainda não há muito tempo, enquanto lhes preparava o pequeno-almoço, contara que aproveitara a folga de domingo para experimentar um restaurante japonês que abrira no Cacém. Gostara dos fritos e até do peixe cru. Aninhas escutou-a e sorriu ao marido. Souberam naquele instante que não voltariam a comer sushi. Acreditavam que a estratificação social não passa pelo dinheiro que se tem, pela casa onde se vive, pelo carro que se conduz, mas apenas pela sofisticação de hábitos e interesses. Aninhas e o marido raramente discutiam porque, na verdade, raramente falavam. Eram tidos pelos amigos, pela família, pelos vizinhos, pelos colegas de trabalho, como o casal perfeito, jovens, bonitos, realizados, viajados. Porém, Aninhas aplicava-se na traição. Tratava o amante de maneira diferente. Estimava-o. Esmerava-se por lhe agradar, acarinhava-o como se fosse uma criança pequena. Trazia-lhe sempre uma caixinha com os primeiros morangos da época e comprava-lhe cigarros importados que espalhavam um fumo azul e adocicado pelo apartamento da Paiva Couceiro. Não sabia se o amava. Sabia apenas que precisava dele. O casamento, o apartamento espaçoso com vista para os jardins da fundação, as viagens, a maternidade delegada na empregada, toda essa vida de solidez e fruição dependia da manutenção daquela relação. Porque quanto mais conhecia o amante, os seus defeitos, a sua banalidade, o romantismo insuportável que o fazia chamar-lhe meu amor, mais Aninhas se consolava com a sobriedade do marido, a ausência de afecto, o modo frio como lhe tocava no rosto.

Livro: "Babilónia"

Autor: Ana Cássia Rebelo

Editora: BookBuilders

Data de lançamento: 7 de setembro

Preço: 15,00 €

Brasileira na putaria

Explicou-lhe o paradoxo de Teseu. Mostrou-lhe a terceira sinfonia de Bruckner. Fez Aninhas dançar ao som de canções magiares. Levou-a a jantar às sopas vietnamitas. Ofereceu-lhe um livro de botânica com lindas ilustrações da Seomara da Costa Pinto. Aninhas ficou sensibilizada e agradeceu, na medida das suas possibilidades. Despiu-se, abraçou-o e, feita brasileira na putaria, disse-lhe um montão de frases ordinárias ao ouvido. Quem dá o que tem a mais não é obrigado. Sempre ouvira dizer.

Bíblia

Todas as noites, antes de rezar, pego na Bíblia e leio as passagens que o padre recomendou na missa de domingo. Uma passagem para cada dia da semana. Deito-me tranquila, sabendo que Deus me ama e protege. Mas quando há lua cheia não sei o que acontece, transformo-me numa qualquer. Não quero ser amada por Deus, quero ser amada por indigentes, velhos, bichos e, se asseadas, também por putas. Nessas noites, abro a Bíblia e procuro a passagem do dia. Arranco a página com cuidado e meto-a na boca. As folhas da Bíblia mastigam-se muito bem. São finas, translúcidas e sabem a essência de violeta.