Identidade em todo o lado, justiça em parte alguma
Tanto na Europa como nos Estados Unidos, na Índia ou no Brasil, o debate político está a virar-se cada vez mais para a histeria identitária e a obsessão das origens. Em França, os novos tribunos de direita e de extrema-direita agitam, todos os dias, os ódios anti-imigrantes e o medo da «grande substituição», esquecendo, pelo caminho, que desde há séculos que o país se foi construindo sobre múltiplas mestiçagens. É evidente que alguns continuam a não se poder habituar ao facto de a população francesa compreender hoje entre 7 e 8% de pessoas de confissão muçulmana, contra menos de 1% há cinquenta anos1. Embora cada contexto xenófobo conserve a sua singularidade, encontramos, de quando em vez, uma virulência que faz pensar inevitavelmente nos discursos de ódio brandidos, no período entre as duas guerras do século passado, contra a imigração judaica e da Europa de Leste. O repúdio radical da diversidade das origens e das tradições culturais, religiosas ou relativas ao vestuário, reforçado pela perceção distorcida de uma minoria acusada de beneficiar de todos os privilégios e roubar os empregos e salários dos autóctones, alimenta uma visão fantasiosa do Estado-nação e das origens consideradas homogéneas no seu seio. Tudo isso fomenta um desejo violento de expulsão e de depuração social relativamente a grupos considerados indesejáveis, uma verdadeira sede de destruição, tão inquietante hoje como ontem.
Em comparação com as experiências passadas, a situação atual tem como traço específico os semeadores de fel poderem apoiar-se no medo legítimo do terrorismo jiadista para estigmatizarem milhões de pessoas que não têm nada que ver com isso. Após o horror e o traumatismo dos atentados de 2015-2016 e da decapitação de Samuel Paty em 2020, cada um procura, como é natural, encontrar explicações e até mesmo identificar culpados. Entre os responsáveis políticos mais cínicos, alguns tiveram a ideia genial de lançar a suspeição de cumplicidade ideológica com os terroristas sobre todo e qualquer investigador que se interesse pelas questões de discriminação ou a história da guerra colonial, ou então sobre todo e qualquer crente muçulmano que compre halal ou use leggings na praia, véu na rua ou numa visita de estudo da escola. Estas suspeitas ignóbeis são totalmente descabidas, num contexto em que todos deveriam juntar-se no apoio aos sistemas de justiça, policial e de informações para lutar contra a ultraminoria terrorista. Esta lógica da suspeição generalizada só pode conduzir a inflexibilidades e a diálogos de surdos. O terrorismo jiadista grassa na Nigéria, no Sahel, no Iraque, nas Filipinas. Iremos, a cada vez, suspeitar dos intelectuais franceses ou estado-unidenses, ou dos muçulmanos comuns, que, com frequência, são os primeiros a pagar os custos dos atentados? Tudo isso é ridículo e perigoso. Em vez de mobilizar a inteligência coletiva para apreender processos sócio-históricos inéditos e complexos, precisamente o que fazem os investigadores no domínio das ciências sociais, soçobra-se na lógica míope do bode expiatório.
Na Índia, esta estratégia baseada na estigmatização ultraviolenta da minoria muçulmana e dos intelectuais que assumem a sua defesa (considerados «antipatrióticos» pelos semeadores do ódio) tem sido utilizada, de alguns anos a esta parte, pelos nacionalistas hindus do BJP para se guindarem ao poder e, depois, para nele se conservarem, com motins, pogrom e perdas de nacionalidade como consequência. Na Europa, a direita anti-imigrantes e antimuçulmanos limita-se, no fundo, a reproduzir esta tática. O atual governo francês, que se afirma do centro, contribuiu infelizmente nestes últimos anos para banalizar a retórica nauseabunda sobre a «gangrena islamo-esquerdista na universidade», uma fraseologia detestável vinda da extrema-direita antes de ter sido retomada por um poder que, no entanto, se apoia em parte em eleitores e eleitos vindos do centro-esquerda. Também alimentou muitíssimo a direitização em curso, de que hoje quer ser o antídoto, como um bombeiro pirómano.
Felizmente, existe uma grande maioria de cidadãos que se não reconhece nesta histeria direitista e neste cinismo. Estão dispersos por múltiplos partidos e candidaturas, vêm de todas as opiniões políticas e refugiam-se amiúde na abstenção, mas sentem bem que a obsessão identitária atual não prepara nada de bom e não permite resolver nenhum dos problemas sociais e económicos que temos pela frente, porque esse é, de facto, um dos efeitos mais perversos da extrema direitização do debate político: todos falam de identidade, mas ninguém fala das políticas socioeconómicas e antidiscriminatórias que seriam necessárias para permitir a vida em comum e que exigem debates profundos e serenos, dado que as apostas são tão novas e abertas. Nunca as injustiças ligadas às origens foram tão gritantes, quer se trate do acesso ao ensino, ao emprego, à habitação, à segurança, ao respeito ou à dignidade; e, no entanto, nunca se falou tanto em justiça e igualdade de direitos, de medição do racismo e de luta contra as discriminações. Este texto destina-se a todos os cidadãos que não se contentam com esta situação.
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