Prólogo
Há dez anos
San Jose, Califórnia
Era suposto o Khai estar a chorar. Ele sabia que era suposto estar a chorar. Toda a gente sabia que ele deveria estar a chorar, mas nem uma lágrima lhe banhava os olhos.
Se lhe ardiam, era por causa do forte incenso que deixava uma bruma na casa mortuária. Se estava triste? Ele achava que sim, mas deveria estar mais triste. Quando o nosso melhor amigo morre daquela maneira, uma pessoa deveria ficar de rastos. Se isto fosse uma ópera vietnamita, os olhos dele estariam a jorrar rios de lágrimas e a afogar os demais.
Porque estava a enfrentar a situação com tanta calma? Porque estava a pensar no trabalho para a escola que teria de entregar no dia seguinte? Porque continuava a pensar com lucidez?
A sua prima Sara soluçara tanto que precisara de ir a correr vomitar ao quarto de banho. Suspeitava que ela ainda lá estaria a vomitar sem parar. A mãe dela, Dì Mai, estava sentada na primeira fila, hirta, as palmas das mãos encostadas uma à outra e a cabeça baixa. De vez em quando, a mãe de Khai dava-lhe umas palmadinhas nas costas, mas ela continuava sem reação. À semelhança de Khai, não vertia lágrimas, mas isso era porque já as vertera dias antes. A família ficara preocupada com ela. Desde o momento que receberam o telefonema, ficara pele e osso.
Filas de monges budistas não o deixavam ver o caixão aberto, mas isso até era bom. Apesar de os funcionários da agência funerária terem feito o seu melhor, o corpo parecia disforme e estranho. Aquele não era o rapaz de 16 anos que fora o amigo e primo predileto de Khai. Aquele não era Andy.
Andy desaparecera.
A única coisa dele que subsistia eram as recordações na mente de Khai. Lutas com paus e com espadas, combates de wrestling que Khai nunca vencia, mas se recusava a perder. Khai preferiria partir os dois braços a dar-se por vencido. Andy dizia que Khai era patologicamente teimoso. Khai insistia que, tão-só, tinha princípios. Ainda se lembrava das demoradas caminhadas até casa, quando lhes custava mais carregar o peso do sol do que das mochilas cheias de livros e das conversas que tinham durante essas caminhadas.
Mesmo agora, conseguia ouvir o primo a troçar dele. Não se recordava das circunstâncias em que as proferira, mas as palavras persistiam.
Nada te perturba. É como se o teu coração fosse de pedra.
Ele não compreendera o que Andy quisera dizer. Agora, começava a compreender.
Os monótonos cânticos budistas espalhavam-se pela sala, graves, sílabas desafinadas, proferidas numa língua que ninguém percebia. Os cânticos adejavam até ele e vibravam na sua cabeça e não conseguia deixar de abanar a perna apesar dos olhares de soslaio. Olhou de relance para o relógio e confirmou que, sim, aquilo já durava há horas. Queria que aquele barulho parasse. Quase se conseguiu imaginar a meter-se no caixão e fechar a tampa para não ouvir aquilo, mas então ficaria preso num espaço exíguo com um cadáver e não tinha a certeza de isso ser melhor do que o atual apuro.
Se Andy aqui estivesse — vivo e aqui —, escapulir-se-iam juntos e arranjariam alguma coisa para fazer, nem que fosse apenas ir lá para fora dar pontapés em pedras no parque de estacionamento. O Andy era bom para isso. Estava disponível sempre que precisavam dele, mas agora não.
O irmão mais velho de Khai estava sentado ao lado dele, mas ele sabia que Quan não quereria ir embora mais cedo. Os funerais existiam para pessoas como Quan. Ele precisava de virar a página ou lá o que era que as pessoas faziam nos funerais. Com a sua constituição física intimidante e as novas tatuagens no pescoço e nos braços, Quan parecia um filho da puta mauzão, mas tinha os olhos vermelhos. De vez em quando, limpava a humidade das maçãs do rosto sem dar nas vistas. Como sempre, Khai desejava poder ser mais como o irmão.
Ouviu-se um tinido metálico e os cânticos pararam. Sentiu um alívio imediato e estonteante, como uma enorme pressão a desaparecer de súbito. Os monges ajudaram os cangalheiros a fechar o féretro e, pouco depois, uma procissão desfilou lentamente pelo corredor central. Como detestava estar em filas e a sensação claustrofóbica de ter pessoas encostadas a ele, Khai deixou-se ficar sentado enquanto Quan se levantou, apertou o seu ombro uma vez e se juntou à multidão.
Ficou a ver os familiares passar a arrastar os pés. Alguns choravam manifestamente. Outros mostravam-se mais estoicos, mas até ele conseguiu perceber que estavam tristes. Tias, tios, primos, familiares afastados e amigos da família, todos a dar força aos outros, unidos por esta coisa a que se chama luto. Como sempre, Khai não pertencia ao clube.
Um grupo de mulheres mais velhas, formado pela sua mãe, Dì Mai, e duas outras tias, encerrava a procissão num transe perto do desmaio, mantendo-se unidas em adultas tal como, todos o diziam, acontecera quando eram jovens. Se não fosse por estarem todas vestidas de preto, até parecia que estavam num casamento. Ostentavam diamantes e jade nas orelhas, pescoços e dedos, e Khai conseguiu sentir o cheiro da maquilhagem e do perfume no meio da névoa do incenso.
Quando iam a passar pela fila onde ele estava, levantou-se e alisou o casaco do fato que pertencera a Quan. Se queria que não lhe ficasse largo, teria ainda muito que crescer. E fazer elevações de braços. Milhares de elevações de braços. Começaria hoje mesmo.
Quando levantou a cabeça, reparou que as mulheres tinham parado junto dele. Dì Mai estendeu o braço para lhe afagar a cara, mas parou antes de lhe tocar.
Perscrutou-lhe o semblante com um olhar solene.
— Pensei que vocês fossem amigos íntimos. Não ficas triste com a morte dele?
O seu coração disparou e começou a bater com tanta força que doeu. Quando tentou falar, nem uma palavra lhe saiu pela boca. Tinha um nó na garganta.
— É claro que eram amigos íntimos — repreendeu-a a sua mãe, e depois puxou-a pelo braço. — Anda, Mai, vamos embora. Estão à nossa espera.
Com os pés colados ao chão, Khai ficou a vê-las sair pela porta. Era lógico que sabia que estava a manter-se firme, mas sentia-se a afundar.
Pensei que vocês fossem amigos íntimos.
Desde que a professora da escola primária insistira para que os pais o levassem a um psicólogo, sabia que era diferente. Porém, a maioria da sua família desvalorizara o diagnóstico, afirmando que ele era apenas «um pouco estranho». Na zona rural do Vietname, não havia coisas como autismo ou síndrome de Asperger. Além disso, ele não se metia em sarilhos e tinha bons resultados na escola. O que é que isso importava?
Pensei que vocês fossem amigos íntimos.
Não conseguia esquecer aquelas palavras, que o faziam compreender uma coisa desagradável: sim, ele era diferente, mas de uma maneira má.
Pensei que vocês fossem amigos íntimos.
Andy não fora apenas o seu melhor amigo. Fora o seu único amigo. Andy não podia ser um amigo mais íntimo no que a Khai dizia respeito. Se não conseguia sentir mágoa pela morte de Andy, isso queria dizer que não conseguiria sentir qualquer mágoa. E se não conseguia sentir qualquer mágoa, o oposto também deveria ser verdade.
Não conseguia amar.
Andy tinha razão. Em termos metafóricos, o coração de Khai era feito de pedra.
Essa certeza espalhou-se por todo o seu ser como uma maré negra. Não gostava da ideia, mas só lhe restava aceitar a realidade. Aquilo não era algo que ele conseguiria mudar. Era o que era.
Pensei que vocês fossem amigos íntimos.
Ele era… mau.
Deixou de cerrar os punhos e esticou os dedos. As pernas mexeram-se quando lhes deu ordem para tal. Os pulmões inspiraram o ar. Viu, ouviu e experienciou. E então aquilo pareceu-lhe extremamente injusto. Ele não quereria que as coisas fossem assim, se pudesse decidir quem estava naquele caixão.
Os cânticos recomeçaram, sinal de que o funeral estava a terminar. Tinha de se juntar aos outros enquanto se despediam uma última vez. Parecia-lhe que ninguém estava a perceber que não era uma despedida quando Andy não se despedia também. Por seu turno, Khai não diria coisa alguma.
Capítulo Um
Há dois meses
T.P. Hồ Chí Minh, Việt Nam
De uma forma geral, limpar quartos de banho não era assim tão interessante. Mỹ fizera-o tantas vezes que agora já tinha uma rotina otimizada. Pulverizar tudo com veneno. Deitar veneno na sanita. Esfregar, esfregar, esfregar, esfregar, esfregar. Limpar, limpar, limpar. Descarregar o autoclismo. Processo feito em menos de dois minutos. Se houvesse um concurso de limpeza de quartos de banho, Mỹ seria uma das candidatas ao título. Mas hoje não. Os barulhos no cubículo ao lado estavam sempre a distraí-la.
Tinha a certeza de que a rapariga que lá se encontrava estava a chorar. Ou isso ou a praticar exercício. A respiração era ofegante. Que tipo de exercício se podia fazer num cubículo de quarto de banho? Talvez flexões de joelhos.
Ouviu-se um som sufocado, seguido de um gemido estridente e Mỹ largou a escova. Não tinha dúvidas de que a rapariga estava a chorar. Encostou o ouvido à divisória, aclarou a voz e perguntou:
— Menina, está tudo bem?
— Sim, está tudo bem — respondeu a rapariga, mas o seu choro aumentou de intensidade, até que parou de repente e deu lugar a uma respiração pesada mais abafada.
— Eu trabalho neste hotel. — Como zeladora e criada. — Se alguém a tratou mal, eu posso ajudar. — Pelo menos tentaria. Nada a irritava mais do que um rufia. Porém, não se podia dar ao luxo de perder este emprego.
— Não, está tudo bem. — O trinco da porta retiniu e ouviram-se uns tacões a bater no chão de mármore.
Mỹ meteu a cabeça pela abertura da porta do cubículo a tempo de ver uma rapariga bonita a deambular até aos lavatórios. Estava a usar os tacões mais altos e mais assustadores que Mỹ jamais vira e um vestido vermelho justo que acabava logo abaixo das nádegas. A fazer fé nas palavras da avó de Mỹ, aquela rapariga engravidaria no instante em que pusesse um pé na rua. O mais certo até era já ter engravidado — com o poder fecundo do olhar fixo de algum homem.
Por seu turno, Mỹ engravidara depois de andar na brincadeira com um pinga-amor da escola, sem precisar de vestidos curtos e tacões altos. No início, mostrara-se reticente. A mãe e a avó haviam deixado bem claro que os estudos estavam em primeiro lugar, mas ele não a largara até ela ceder, convencida de que era amor. Porém, depois de ela lhe contar do bebé, em vez de casar com ela, oferecera-se de má vontade para a manter como sua amante secreta. Ela não era o tipo de rapariga que ele pudesse apresentar à sua família de classe alta e, surpresa das surpresas, já estava noivo e com casamento marcado. Como é evidente, Mỹ rejeitara a oferta, o que fora um alívio e um choque para ele, aquele filho de um cão. Por outro lado, a família dela ficara destroçada de desilusão, pois depositara nela muitas esperanças. Porém, tal como ela sabia que iria acontecer, a família apoiara-a e ao bebé.
A rapariga do vestido vermelho lavou as mãos e enxugou a maquilhagem que lhe escorria pela cara. Depois, atirou a toalha para cima do balcão e foi embora. Mỹ cerrou os punhos e as luvas de borracha amarelas rangeram. O cesto das toalhas estava mesmo ali. Resmungando com os seus botões, percorreu o caminho até aos lavatórios, limpou o balcão com a toalha da rapariga e atirou-a para o cesto. Uma rápida inspeção ao lavatório, ao balcão, ao espelho e à pilha de toalhas enroladas permitiu-lhe confirmar que estava tudo como devia ser e voltou para o último cubículo.
A porta do quarto de banho abriu-se e entrou apressadamente outra rapariga. Com os seus cabelos que lhe chegavam à cintura, o corpo esbelto, as pernas compridas e sapatos de tacão alto, era muito parecida com a primeira rapariga, só que trazia um vestido branco. Será que o hotel estava a ser palco de algum tipo de concurso de beleza? E porque é que esta rapariga também estava a chorar?
— A menina sente-se bem? — indagou Mỹ, dando um passo hesitante para ela.
A rapariga salpicou a cara com água.
Sinto. — Agarrou-se com as mãos molhadas ao balcão de granito, fazendo mais sujidade para Mỹ limpar, e olhou para o seu reflexo no espelho enquanto respirava fundo. — Pensei que ela iria escolher-me. Tinha a certeza absoluta. Porque haveria de fazer aquela pergunta se não queria aquela resposta? É uma mulher traiçoeira.
Mỹ desviou o olhar das gotículas de água acabadas de cair no balcão e focou-se na cara da rapariga.
— Que mulher? Escolhê-la para o quê?
A rapariga esquadrinhou a farda do hotel de Mỹ com desdém e revirou os olhos.
— A senhora não compreenderia.
Mỹ empertigou-se e ruborizou de embaraço. Já não era a primeira vez que a olhavam e lhe falavam daquela maneira. Percebia ao que se queriam referir. Antes de conseguir dar uma resposta adequada, a rapariga desapareceu. Assim, esqueceu o avô e todos os antepassados da rapariga e viu outra toalha amarrotada em cima do balcão.
Mỹ foi a bater os pés até ao lavatório, limpou a sujeira que a rapariga deixara e arremessou a toalha para o cesto. Ou pelo menos tentou. A pontaria falhou-lhe e a toalha caiu no chão. Soprando pela boca de frustração, foi apanhá-la.
No preciso instante em que agarrou a toalha com a mão enluvada, a porta abriu-se outra vez. Olhou para o céu. Se fosse outra rapariga mimada a chorar, iria procurar um quarto de banho na outra ponta do hotel.
Mas não era. Uma mulher mais velha de ar cansado caminhou penosamente até à sala de espera no extremo do quarto de banho e sentou-se num sofá forrado a veludo. Mỹ percebeu logo que aquela mulher era uma Việt kiều. Foi uma conjugação de coisas que a denunciou: a enorme bolsa Louis Vuitton genuína, as roupas caras e os pés. Bem tratados e sem calos, aqueles pés calçados com umas sandálias só podiam ser de uma vietnamita emigrada. Aquela gente dava gorjetas mesmo boas, por tudo. Praticamente jorravam dinheiro. Talvez aquele fosse o dia de sorte de Mỹ.
Atirou a toalha para o cesto e aproximou-se da mulher.
— A menina deseja que lhe traga alguma coisa?
A mulher fez sinal com a mão a recusar.
— Se precisar de alguma coisa diga, menina. Aproveite o seu tempo aqui. Este quarto de banho é muito agradável. — Estremeceu e desejou poder retirar as últimas palavras. Virou-se outra vez para as sanitas. Não sabia para o que servia uma sala de estar naquele sítio. Não havia dúvida de que era um lugar aprazível, mas porquê relaxar num sítio onde se podia ouvir as outras pessoas a fazer coisas que se fazem nas casas de banho?
Terminou o seu trabalho, pousou o balde com os artigos de limpeza no chão junto dos lavatórios e inspecionou as instalações sanitárias uma última vez. Uma toalha desenrolara-se parcialmente, por isso pegou nela, voltou a enrolá-la e pousou-a na pilha junto com as outras. Depois, arranjou a caixa de lenços de papel. Pronto. Estava tudo impecável.
Agachou-se para pegar no balde, mas antes de ter tempo de agarrar a pega, a senhora disse:
— Porque foi que ajeitou a caixa de lenços de papel dessa maneira?
Mỹ endireitou-se, olhou para a caixa de lenços de papel e inclinou a cabeça para a senhora.
— Porque a gerência do hotel quer assim, menina.
Uma expressão pensativa perpassou o semblante da senhora e, logo de seguida, fez sinal para Mỹ se aproximar e deu uma palmadinha no lugar ao seu lado no sofá.
— Vem conversar um pouco comigo. Trata-me por Cô Nga.
Mỹ sorriu, espantada, mas fez o que lhe pediram e sentou-se ao lado da senhora, mantendo as costas direitas, os dedos entrelaçados e os joelhos juntos com se fosse a virgem mais virginal. A sua avó ficaria cheia de orgulho. Uns olhos argutos num rosto polvilhado de pó-de-arroz claro sondaram-na da mesma maneira que Mỹ acabara de inspecionar o balcão do quarto de banho e ela juntou os pés desajeitadamente e brindou a senhora com o seu melhor sorriso.
Depois de ler o nome dela no crachá, a senhora disse:
— Então, chamas-te Trần Ngọc Mỹ.
— Sim, senhora.
— És tu quem limpa os quartos de banho aqui? Que mais é que fazes?
O sorriso de Mỹ quase se esfumou e foi com esforço que o manteve.
— Também arrumo os quartos dos hóspedes, o que quer dizer mais quartos de banho, mudar os lençóis, fazer as camas, aspirar… Esse tipo de coisas. — Não era o que ela sonhara fazer quando era criança, mas valia-lhe um salário e esforçava-se por fazer o trabalho bem feito.
— Ah, estou a ver… Tu és mestiça. — A senhora debruçou-se para a frente, agarrou o queixo de Mỹ e levantou-lhe a cara. — Tens os olhos verdes.
Mỹ susteve a respiração e tentou perceber o que a senhora pensava sobre isso. Às vezes, era uma coisa positiva. Na maioria das vezes, não. Era muito melhor ser mestiça quando se tinha dinheiro.
A senhora franziu o cenho.
— Mas como? Desde a guerra que não há aqui soldados americanos. Mỹ encolheu os ombros.
— A minha mãe diz que foi um homem de negócios. Eu nunca o conheci. — Rezava a história que a mãe dela fora a governanta do pai — entre outras coisas — e o caso entre os dois terminara quando o projeto profissional dele acabara e ele deixara o país. Apenas mais tarde é que a sua mãe descobrira a gravidez, mas já era tarde demais. Não soubera como o encontrar e apenas lhe restara a solução de voltar a morar com a família. Mỹ sempre pensara que se sairia melhor do que a mãe, mas conseguira seguir os seus passos quase na perfeição.
A senhora assentiu com a cabeça e apertou-lhe o braço uma vez.
— Mudaste para a cidade há pouco tempo? Não pareces ser destas bandas.
Mỹ desviou o olhar e o sorriso desapareceu. Ela crescera com muito poucas posses, mas só quando chegara à grande cidade é que percebera como era pobre.
— Mudámo-nos para cá há dois meses porque arranjei este emprego. Consegue-se perceber assim com tanta facilidade?
A senhora afagou o rosto de Mỹ de uma maneira estranhamente carinhosa.
— Continuas ingénua como uma rapariga do campo. De onde és?
— De uma aldeia perto de Mỹ Tho, junto ao rio.
A senhora esboçou um largo sorriso.
— Eu percebi logo que gostava de ti. Os lugares fazem as pessoas. Eu cresci lá. O meu restaurante chama-se Mỹ Tho Noodles. É um restaurante muito bom na Califórnia. Falam sobre ele na televisão e nas revistas. Mas presumo que, aqui, nunca tenhas ouvido falar dele. — Suspirou consigo mesma. Depois, os seus olhos tornaram-se mais vivos e perguntou:
— Quantos anos tens?
— Vinte e três.
— Pareces mais nova — retorquiu Cô Nga com uma gargalhada. — Mas é uma bela idade.
Uma bela idade para o quê? Porém, Mỹ não fez a pergunta. Com gorjeta ou sem ela, estava preparada para dar a conversa por terminada. Talvez uma verdadeira rapariga da cidade já tivesse ido embora. Os quartos de banho não se esfregavam sozinhos.
— Já alguma vez pensaste em ir para a América? — perguntou Cô Nga.
Mỹ abanou a cabeça, mas era mentira. Quando era criança, fantasiara viver num sítio onde passasse despercebida e, quiçá, encontrar o seu pai de olhos verdes. Porém, havia mais do que um oceano a separar o Việt Nam da América e quanto mais velha ficara, maior essa distância se tornara.
— És casada? — quis saber a senhora. — Tens namorado?
— Nem marido nem namorado. — Passou as mãos pelas coxas e agarrou os joelhos. O que pretendia aquela mulher? Ouvira histórias horrorosas sobre desconhecidos. Estaria aquela mulher simpática a querer enganá-la e levá-la para uma vida de prostituição no Camboja?
— Não te preocupes. As minhas intenções são boas. Olha, quero mostrar-te uma coisa. — A senhora remexeu na sua enorme bolsa Louis Vuitton até encontrar uma pasta de arquivo. Depois, tirou de lá uma fotografia e entregou-a a Mỹ. — Este é o Diệp Khải, o meu filho mais novo. É bonito, não é?
Mỹ não queria olhar. Na realidade, não queria saber daquele homem desconhecido que morava no paraíso da Califórnia, mas decidiu fazer a vontade à mulher. Iria olhar para a fotografia e fazer todos os sons adequados.
Iria dizer a Cô Nga que o filho dela parecia uma estrela de cinema e depois arranjaria uma desculpa para ir embora.
Porém, quando olhou para a fotografia, o seu corpo ficou sereno, como o céu imediatamente antes de um dilúvio.
Ele parecia mesmo uma estrela de cinema, muito bem-parecido, com um cabelo ondulado e sensual e umas feições fortes e angulosas. Todavia, o que mais lhe chamou a atenção foi a intensidade discreta que emanava dele. Um sorriso aflorava-lhe os lábios enquanto mantinha o olhar fixo em alguma coisa mais ao lado e ela deu por si debruçada sobre a fotografia. Se fosse ator, conseguiria todos os papéis de herói reservado e perigoso, como um guarda-costas ou um mestre de kung-fu. Mỹ ficou a cismar no que ele estaria a pensar tão absorto… Qual seria a história dele? Porque não mostrava um verdadeiro sorriso?
— Ah, afinal gostas dele. Eu bem te disse que era bonito — disse Cô Nga com um sorriso cúmplice.
Mỹ pestanejou como se estivesse a sair de um transe e devolveu a fotografia à senhora.
— Sim, de facto é. — Um dia, faria alguma sortuda feliz e teriam uma longa e próspera vida juntos. Desejou que sofressem uma intoxicação alimentar pelo menos uma vez. Nada que lhes pusesse a vida em perigo, é claro. Apenas inconveniente… muito inconveniente. E um pouco doloroso. Embaraçoso, também.
— Além disso é inteligente e talentoso. Tirou uma pós-graduação.
Mỹ esboçou um sorriso.
— Isso é admirável. Eu ficaria muito orgulhosa se tivesse um filho como ele. — Por outro lado, a filha da mãe dela ganhava a vida a limpar retretes. Fez um esforço para afastar o azedume e relembrou-se de que tinha de manter a cabeça baixa e tratar dos seus assuntos. A inveja apenas lhe traria infelicidade, mas isso não a impediu de lhe desejar mais incidentes de intoxicação alimentar. Tinha de haver alguma justiça no mundo.
— Tenho muito orgulho nele — disse Cô Nga. — Na verdade, estou aqui por causa dele. Vim à procura de uma mulher para ele.
— Oh. — Mỹ franziu o cenho. — Não sabia que os americanos faziam isso. — Tal prática parecia-lhe terrivelmente antiquada.
— Não fazem e o Khải ficaria zangado se soubesse. Mas eu tenho de fazer alguma coisa. O irmão mais velho tem muito jeito para as mulheres e não preciso de me preocupar com ele, mas o Khải tem 26 anos e ainda não arranjou namorada. Quando lhe arranjo encontros com raparigas, ele não aparece. Quando as raparigas lhe telefonam, ele desliga-lhes o telefone. No próximo verão, teremos três casamentos na família, três, mas algum é dele? Não. Como ele não sabe como encontrar mulher, decidi fazê-lo por ele. Passei o dia a entrevistar candidatas, mas nenhuma vai ao encontro das minhas expetativas.
Mỹ ficou boquiaberta.
— Aquelas raparigas a chorar…
Cô Nga menosprezou o comentário com um menear da mão.
— Estavam a chorar porque sentiam vergonha delas próprias. Aquilo passa-lhes. Eu tinha de ter a certeza de que estavam a encarar com seriedade o casamento com o meu filho. Nenhuma estava.
— Pareceram-me bastante sérias. — O choro não lhe parecera falso, disso tinha a certeza.
— Então e tu? — Cô Nga fitou-a outra vez, avaliando-a.
—Eu o quê?
— Estás interessada em casar com o meu Khải?
Mỹ olhou para trás das costas e depois apontou para o próprio peito.
— Eu?
Cô Nga anuiu.
— Sim, tu. Chamaste a minha atenção. Mỹ arregalou os olhos.
— De que maneira?
Como se conseguisse ler os pensamentos de Mỹ, Cô Nga respondeu:
— Tu és uma boa rapariga trabalhadora e és bonita de uma maneira invulgar. Parece-me que poderia confiar-te o meu Khải.
Mỹ ficou sem reação. Ter-lhe-iam os vapores dos químicos de limpeza provocado lesões cerebrais?
— A senhora quer que eu case com o seu filho? Mas nem nos conhecemos. A senhora pode até gostar de mim… — Abanou a cabeça, ainda sem conseguir perceber o que estava a acontecer. Ela ganhava a vida a limpar sanitas. — Mas é provável que o seu filho não goste. Ele parece ser caprichoso e eu com certeza não sou…
— Oh, não, não — interrompeu-a Cô Nga. — Ele não é caprichoso. É tímido. E teimoso. Acha que não quer uma família. Precisa de uma rapariga que seja mais teimosa. Terias de fazer com que mudasse de ideias.
— Como poderia eu…
— Oi, tu sabes. Terias de te aperaltar, cuidar dele, cozinhar o que ele gosta, fazer coisas que ele aprecia…
Mỹ não conseguiu esconder um sorriso afetado e Cô Nga espantou-a com uma gargalhada.
— É por isto que eu gosto de ti. Tu és genuína. O que me dizes? Estou disposta a pagar-te um verão na América para vermos se és compatível. Se não fores, não há problema. Regressas a casa. No mínimo, irás a todos os casamentos da nossa família e terás comida e diversão. O que achas?
— Eu… Eu… Eu… — Não sabia o que dizer. Era demasiado para assimilar.
— Outra coisa. — Cô Nga avaliou-a com o olhar, fez um compasso de espera pleno de tensão e acrescentou:
— Ele não gosta de crianças, mas eu estou determinada a ter netos. Se conseguires engravidar, sei que ele fará a coisa certa e casará contigo, independentemente do vosso relacionamento. Estou disposta a pagar-te. Vinte mil dólares americanos. Fazes isto por mim?
Mỹ perdeu o fôlego e ficou com pele de galinha. Cô Nga queria que ela roubasse um bebé ao seu filho e o obrigasse a casar com ela. Sentiu-se subjugada pela desilusão e pela futilidade. Por instantes, pensara que aquela mulher vira alguma coisa especial nela, mas Cô Nga julgara-a com base em coisas que não podia controlar, tal como às raparigas dos vestidos curtos.
— As outras raparigas também recusaram, não foi? A senhora pensou que eu concordaria porque… — Fez sinal para a farda com a palma da mão aberta.
Cô Nga não redarguiu, mas manteve o olhar firme.
Mỹ levantou-se do sofá, foi buscar o balde com os artigos de limpeza, abriu a porta e fez uma pausa no vão. Com o olhar fixo, disse:
— A minha resposta é «não».
Ela não tinha dinheiro, conhecimentos nem competências, mas podia ser tão obstinada e insensata quanto desejasse. Tinha a esperança de que a sua recusa fosse pungente. Virou costas e partiu.
Nessa noite, depois da caminhada de uma hora de regresso a casa — a viagem que repetia duas vezes todos os dias —, Mỹ entrou em bicos de pés para a sua casa de uma divisão e deixou-se cair no espaço no tapete onde pernoitava. Tinha de se preparar para ir dormir, mas primeiro precisava de uns instantes sem fazer coisa alguma. Não fazer nada. Não fazer nada era um luxo.
O momento de sossego foi perturbado por um zunido no bolso. Com um suspiro de frustração, tirou o telefone do bolso.
Era um número desconhecido.
Ponderou a possibilidade de não atender, mas alguma coisa a levou a premir o botão para atender e a encostar o telemóvel ao ouvido.
— Estou?
— Mỹ, és tu?
Mỹ tentou identificar a voz. Soou-lhe familiar, mas não conseguiu perceber quem era.
— Sou. Quem fala?
— Sou eu, a Cô Nga. Não, não desligues — apressou-se a senhora a acrescentar. — Foi o supervisor do hotel que me deu o teu número. Queria falar contigo.
Apertou o telemóvel com força e sentou-se.
— Já disse o que tinha a dizer.
— Não mudarás de ideias?
Fez um esforço para não arremessar o telefone contra a parede.
— Não.
— Ótimo — disse Cô Nga.
De sobrolho carregado, Mỹ afastou o telefone do ouvido e olhou-o fixamente. O que quereria dizer com ótimo?
Voltou a encostar o telefone ao ouvido a tempo de ouvir Cô Nga dizer:
— Aquilo foi um teste. Eu não quero que enganes o meu filho para ter um bebé, mas precisava de saber que tipo de pessoa és.
— Isso quer dizer…?
— Quer dizer que tu és a pessoa que eu procuro, Mỹ. Vai à América conhecer o meu filho. Terás o verão inteiro para o conquistar e ir aos casamentos dos primos. Precisarás desse tempo. Não será fácil perceber a maneira de pensar dele, mas valerá a pena. Ele é uma pessoa de bem. Se alguém o conseguirá fazer mudar de ideias, acho que és tu. Se quiseres. Queres?
Mỹ sentiu a cabeça à roda.
— Não sei. Preciso de pensar.
— Então pensa e liga-me. Mas não te demores. Preciso de tratar do teu visto e da passagem de avião — disse Cô Nga. — Fico à espera da tua resposta. — Então, desligou.
Acendeu-se uma lâmpada do outro lado da divisão, banhando o espaço exíguo e atafulhado de coisas com uma fraca luz dourada. Nas paredes, estavam dependuradas roupas e apetrechos de cozinha, cobrindo cada centímetro de tijolo deteriorado que não era ocupado pelo velho fogão elétrico, pelo minúsculo frigorífico e por um pequeno televisor no qual assistiam a sagas de kung-fu e filmes americanos de pirataria. O espaço central no chão era ocupado pela filha, Ngọc Anh, e pela avó, que estavam a dormir.
A sua mãe estava deitada entre a avó e o fogão e tinha a mão no interruptor. Uma ventoinha soprava ar húmido sobre elas na velocidade mais potente.
— Quem era? — murmurou a mãe.
— Uma Việt kiều — respondeu Mỹ, quase sem conseguir acreditar nas próprias palavras. — Quer que eu vá com ela para a América para casar com o filho.
A mãe apoiou-se sobre um cotovelo e os seus cabelos caíram-lhe sedosos sobre o ombro. Só quando estava na cama usava o cabelo solto e isso fazia com que parecesse dez anos mais nova.
— Ele é mais velho do que o teu avô? Tem cara de fuinha? Qual é o problema dele?
Nesse instante, o telemóvel de Mỹ zuniu ao receber uma mensagem de Cô Nga.
Para te ajudar a pensar.
Ouviu-se outro zunido e a fotografia de Khải surgiu no visor. Era a mesma fotografia que ela lhe mostrara. Mỹ passou o telemóvel para a mão da mãe sem dizer uma palavra.
— Ele é este? — indagou a mãe de olhos arregalados.
— Chama-se Diệp Khải.
A mãe fitou a fotografia imenso tempo, sem dizer uma palavra, ouvindo-se apenas a sua respiração leve. Por fim, devolveu-lhe o telemóvel.
— Não tens alternativa. Terás de aceitar.
— Mas ele não quer casar. A ideia é eu não o largar enquanto ele não mudar de opinião. Não sei como…
— Aceita. Faz o que tiveres de fazer. Estamos a falar da América, Mỹ. Tens de fazer isso por ela. — A mãe esticou-se por cima do franzino corpo adormecido da avó e puxou o cobertor fino de Ngọc Anh até ao seu queixo. — Se eu tivesse a oportunidade, teria feito o mesmo por ti. A pensar no futuro. O lugar dela não é aqui. Além disso, precisa de um pai.
Mỹ cerrou os dentes quando recordações de infância tentaram saltar do fundo da sua mente onde as havia encurralado. Ainda se lembrara de ouvir as crianças a gritar Mestiça dos doze olhos do cu quando regressava a casa depois da escola. Tivera uma infância complicada, mas preparara-a para a vida. Agora, era mais forte, mais rija.
— Eu não tive um pai.
O olhar da mãe tornou-se mais duro.
— E vê só aonde isso te levou.
Mỹ fitou a menina.
— Também me levou a tê-la. — Arrependia-se de ter estado com o desalmado pai dela, mas nunca se arrependera de ter a filha, nem por sombras.
Afastou o cabelo húmido da testa da menina e aquele imenso amor espalhou-se pelo seu coração. Olhar para a cara da filha era como olhar para um espelho que a fazia recuar vinte anos no tempo. A sua filha era exatamente igual a ela. Tinham as mesmas sobrancelhas, maçãs do rosto, nariz e tom de pele. Até a forma dos lábios era igual, mas Ngọc Anh era muito mais querida do que Mỹ alguma vez fora. Seria capaz de qualquer coisa por aquela pequenina, exceto prescindir dela.
Depois de o pai de Ngọc Anh casar, a sua mulher ficara a saber que não podia ter filhos e haviam-se oferecido para criar Ngọc Anh como se fosse filha deles. Também então Mỹ recusara a oferta que todos esperavam que aceitasse. Tinham-lhe chamado egoísta. A família do pai da menina poderia dar a Ngọc Anh todas as coisas de que ela precisava.
Mas e amor? O amor era importante e ninguém poderia amar a sua filha como ela. Ninguém. Sentia-o no seu coração.
Porém, de vez em quando, punha-se a cismar se teria tomado a decisão certa.
— Se não gostares dele — disse-lhe a mãe —, podes divorciar-te depois de conseguires a autorização de residência permanente e casar com outro homem.
— Não posso casar com ele só para obter a autorização de residência permanente. — Ele era uma pessoa, não um monte de papel e, se decidisse casar com ele, seria por conseguir seduzi-lo, por ele gostar dela. Não podia usar uma pessoa dessa maneira. Isso torná-la-ia uma pessoa tão má como o pai de Ngọc Anh.
A mãe assentiu com a cabeça como se conseguisse ler o pensamento de Mỹ.
— O que acontecerá se fores e não conseguires convencê-lo a casar?
— Regressarei no fim do verão.
A mãe soltou um grunhido de repulsa.
— Nem acredito que tenhas de pensar sobre isto. Não tens nada a perder.
Quando Mỹ olhou para o visor negro do telemóvel, lembrou-se de uma coisa.
— A Cô Nga disse que ele não quer uma família. Eu tenho a Ngọc Anh.
A mãe revirou os olhos.
— Qual é o jovem que quer uma família? Se ele te amar, amará a Ngọc Anh.
— As coisas não são assim e tu sabe-lo. Quando os homens sabem que temos um bebé, na maioria das vezes não estão interessados. — E quando estão interessados, tudo o que querem é sexo.
— Nesse caso, não lho digas logo. Dá-lhe tempo para se apaixonar por ti e diz-lhe apenas mais tarde — disse-lhe a mãe.
Mỹ abanou a cabeça.
— Isso não me parece correto.
— Se ele te disser que te ama, mas desistir do casamento porque tens uma filha, também não o vais querer. Mas esta mulher conhece o filho e escolheu-te a ti. Tens de tentar. Na pior das hipóteses, passas o verão na América. Sabes a sorte que tens? Não queres conhecer a América? Em que região é?
— Ela disse que é na Califórnia, mas eu acho que não conseguirei ficar longe tanto tempo. — Mỹ passou os dedos pela cara macia da filha. Nunca estivera fora de casa mais do que um dia. E se Ngọc Anh pensasse que ela a abandonara?
A mãe enrugou a testa, pensativa, e levantou-se para ir remexer num monte de caixas que guardavam a um canto. Eram os objetos pessoais da mãe e ninguém tinha autorização para as abrir. Quando era mais nova, Mỹ costumava bisbilhotar quando ninguém estava a ver, sobretudo a caixa do fundo. Quando a mãe abriu especificamente essa caixa e remexeu o que havia lá dentro, o coração de Mỹ disparou.
— O teu pai é da Califórnia. Ora vê. — A mãe passou-lhe para a mão uma fotografia amarelecida de um homem com o braço por cima dos ombros dela. Mỹ passara horas infinitas a olhar para aquela fotografia, aproximando-a de si, observando-a de cabeça para baixo, semicerrando os olhos, tentando de tudo para confirmar que os olhos do homem eram verdes e que ele era, de facto, o pai dela, mas não conseguira ter a certeza. A fotografia fora tirada de demasiado longe. Os olhos dele poderiam ser de qualquer cor. Para ser franca consigo mesma, pareciam ser castanhos.
Todavia, conseguia-se ler bem as letras da camisa. Lia-se distintamente Cal Berkeley.
— É a isso que «Cal» se refere? — indagou. — A Califórnia? A mãe assentiu com a cabeça.
— Investiguei. É uma universidade famosa. Quem sabe quando lá estiveres a possas ir visitar. Talvez possas… tentar encontrá-lo.
O coração de Mỹ bateu com tanta força que sentiu um formigueiro nos dedos.
— Irás finalmente dizer-me o nome dele? — perguntou, num murmúrio. Apenas sabia que se chamava Phil. Era o nome que a avó sussurrava com raiva quando ficava a sós com Mỹ. Aquele Phil. O Senhor Phil. O Phil da tua mãe.
A mãe esboçou um sorriso amargurado.
— Ele disse que o seu nome completo era feio. Que toda a gente o tratava apenas por Phil. Acho que o apelido dele começava por um «L».
A esperança de Mỹ dissipou-se antes mesmo de ganhar forma.
— Nesse caso, é impossível.
A mãe fez uma expressão determinada.
— Só saberás depois de tentares. Talvez se utilizarem aqueles computadores caros possam dar-te uma lista. Se te esforçares, há uma possibilidade.
Mỹ fitou a fotografia do pai, sentindo a ânsia crescer no peito a cada segundo que passava. Estaria a viver na Califórnia? Qual seria a sua reação ao abrir a porta… e dar de caras com ela? Acusá-la-ia de ir atrás de dinheiro?
Ou será que ficaria feliz por encontrar a filha que nunca soubera ter?
Abriu a fotografia de Khải no telemóvel e segurou as duas fotografias lado a lado sobre o regaço. O que é que Cô Nga vira nela para achar que Mỹ seria uma boa opção para o filho? Será que o seu filho seria da mesma opinião? E aceitaria a filha dela? Iria o seu próprio pai aceitar a filha?
De qualquer maneira, a sua mãe tinha razão. Não saberia se não tentasse. Em relação às duas coisas.
Mỹ escreveu uma mensagem para Cô Nga e carregou no botão para enviar.
Sim, quero tentar.
— Vou em frente — disse à mãe. Tentou parecer confiante, mas estava a tremer por dentro. Com o que é que acabara de concordar?
— Eu sabia que o farias e fico feliz por isso. Nós trataremos bem da Ngọc Anh durante a tua ausência. Agora, vai dormir. Ainda terás de trabalhar amanhã. — A luz apagou-se com um estalido, mas quando o quarto ficou na penumbra, a mãe disse:
— Deverás saber que, num único verão, não terás tempo de fazer as coisas como manda a tradição. Terás de jogar para ganhar, mesmo que não tenhas a certeza de o querer. Desde que não seja um malvado, o amor poderá crescer. E não te esqueças de que as meninas boazinhas não ficam com o homem. Terás de ser má, Mỹ.
Mỹ engoliu em seco. Fazia uma boa ideia do significado de «má» e ficou espantada por a mãe sugerir tal coisa com a avó no quarto.
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