1
Há lugares que pertencem a séculos passados e a relógios lentos, onde as pessoas sentem que, ao caminhar, entram em realidades intemporais. Aquele bosque era um daqueles lugares extraordinários onde as árvores pareciam contemplar os visitantes com serena quietude, sabendo que estes deixariam de respirar muito antes que a vida ali existente, entre a pedra, a água e o musgo, perecesse. Quem transpusesse os muros do bosque particular do antigo mosteiro podia sentir o abraço caloroso de quem habitara aquela terra e já lá não estava, bem como o hálito frio dos pântanos que não souberam resistir aos ventos.
No entanto, uma jovem naquele momento caminhava com passo determinado por entre aquele matagal, e não o fazia com gestos melancólicos ou evocativos, mas sim de urgência e sem qualquer consideração pela antiguidade e magnificência do bosque. Na realidade, e como muitas vezes acontece quando vivemos em lugares extraordinários, há muito que ela perdera o fascínio incondicional por aquele curioso bosque secreto.
Talvez por aquele local já não ser um mosteiro, mas uma pousada. Ou talvez, quem sabe, porque da magia do tempo apenas restava naquele bosque as ruínas de uma padaria e pouco mais; tudo no exterior daqueles muros fora restaurado e apresentava apenas vestígios desbotados da sua história. Além disso, a jovem trabalhava aqui há vários anos, e, por vezes, onde trabalhamos não existe muito tempo para sonhar.
A delgada sombra feminina que se movia pela floresta chamava-se Rosa, e era nítido que procurava algo com um gesto impaciente e sem muita convicção. Acabara de amanhecer e as manhãs de setembro já estavam frescas. Na noite anterior tivera lugar na pousada um casamento: uma bela cerimónia realizada no claustro dos Cavaleiros, maravilhosamente decorado para a ocasião com centenas de pequenas luzes que, como pirilampos, davam um toque dourado ao ar. Flores e convidados elegantes, emoção contida nos olhares. Rosa, como chefe da receção, estava habituada a este tipo de eventos, assim como aos noivos que caminhavam pela pequena e solitária mata privada da pousada para tirar algumas fotos do casamento.
De manhã cedo, a noiva ligou do telefone da sua suíte para a receção, à procura de um dos acessórios do vestido, que se perdera no pequeno bosque da pousada. Por isso Rosa estava ali, atendendo os caprichos daquela noiva que se esquecera de um casaco branco «caríssimo» que combinava com o vestido. Onde diabo aquela mulher se teria esquecido da jaqueta? Como lhe dissera ao telefone, além de insistir no seu preço elevado, o tecido da peça de vestuário imitava pele e teria a suposta maciez de um urso polar branco imaginário. Devido ao calor da tarde anterior, tirara-o para as fotos, não sabia onde, e deixara-o esquecido.
Rosa, resignada, resolveu procurar o que a noiva lhe pedira; sabia que dar uma volta por todo o bosque deveria levar, quando muito, quinze minutos. Mas não planeava gastar tanto tempo. A jaqueta deveria estar nas ruínas da antiga padaria monacal ou sob uma bela e enorme bétula, onde os casais costumavam tirar algumas das fotografias mais impressionantes. Passeou a sua esbelta silhueta por todos os cantos sem conseguir localizar o adereço nupcial. Nem a beleza daquele arvoredo silencioso impediu a firmeza de seu passo. Com tudo o que tinha para fazer, andar no mato àquela hora da manhã por causa de uma noiva descuidada!
De repente, Rosa parou. E se...? Talvez ali, naquela enorme pia de pedra perto da antiga padaria monacal, onde os fotógrafos costumavam levar os noivos para tirar fotos divertidas. Rosa pensou que não era realmente uma pia, mas um velho caixão de pedra, mas quem era ela para partilhar os seus pensamentos com quem passeasse ali, por acaso, durante apenas um breve instante da sua vida?
A chefe da receção acelerou o passo de regresso à pousada, e de longe, finalmente, vislumbrava já o branco da jaqueta ao pé da pia. Satisfeita, a jovem acelerou ainda mais a caminhada, fazendo seus longos cabelos loiros dançarem como um vaivém de ondas pelas costas. Mas quase a chegar ao destino, algo indefinível a fez parar. À sua direita, pela altura do muro e do arco de entrada do antigo jardim monacal, a sua visão captou algo que a perturbou, uma sombra que instintivamente sabia que não pertencia à calma daquele pequeno bosque escondido. Deu dois ou três passos para trás e, com um inexplicável tremor de inquietação subindo por si acima, virou o corpo e o olhar para o velho pomar.
O seu grito agudo, de puro terror e medo, fez com que alguns funcionários do refeitório da pousada corressem para o bosque. Quando os colegas de Rosa chegaram, esta já parara de gritar e parecia dividida entre a necessidade de correr em direção a eles e a de entrar no antigo jardim do mosteiro, como se precisasse de se certificar que o que vira era real. Acabou por ficar imóvel, levantando a mão e apontando, trémula, para uma figura escura que se encontrava dentro do antigo recipiente de pedra. Quando os outros se aproximaram, viram, atónitos e horrorizados, o que parecia ser o cadáver de um homem corpulento, cujas mãos estavam cheias de terra, como se tentasse agarrar o chão e só conseguisse torcer os dedos com o esforço. A posição do corpo, apesar de virado para baixo, teria permitido visualizar o rosto do cadáver se não fosse um capuz preto e pontiagudo, que o escondia. A túnica, escura como a noite e comprida até os pés, não mostrava um homem comum, mas um daqueles monges beneditinos que, há quase duzentos anos, não pisava terras sagradas de Santo Estevo de Ribas de Sil.
2
O sargento Xocas Taboada era baixinho e magro, embora a profundidade dos olhos escuros conferisse à sua presença a solidez das rochas. Talvez fosse o modo lacónico de olhar, conciso e inteligente. Ou a curvatura dos lábios, que pareciam estar sempre prontos a sorrir de forma cáustica, como se o mundo fosse uma brincadeira. Amplas entradas começavam a descobrir-lhe a tez ganhando espaço ao cabelo, ainda escuro, já que acabara de completar quarenta anos.
O sargento observava o cadáver com os braços cruzados, pensativo. Dois dos seus agentes tinham acabado de selar a zona de acesso à velha horta, embora a direção da pousada de Santo Estevo também tivesse bloqueado a entrada dos clientes ao magnético e centenar bosque.
— Então, Lucho, e agora que se segue?
— Vamos levá-lo e logo se verá. Ou pensas que sou do CSI? Xocas suspirou sem alterar a posição dos seus braços e olhou para o perito legal que, de cócoras, inspecionava o cadáver.
— Mas consegues apreciar se há ou não indícios de criminalidade?
— Talvez sim, talvez não. Temos de esperar pela autópsia. Qual é o teu problema? Não ativaste o protocolo?
— Sim, mas esta é a primeira vez que nos deparamos com um corpo neste estado.
— Vai-te lixar! Em que estado? Acabei de to dizer, insuficiência cardíaca aguda, e ponto final. Vês algum punhal espetado, uma corda, um... sei lá que mais..., um ritual satânico em redor? Não se apreciam contusões, nem cortes nem sinais de violência.
– Não, mas se houvesse sinais de criminalidade teríamos de avisar o juiz para levantar o corpo.
— Porra, Xocas, não me lixes – respondeu o perito legal, rindo amigavelmente, fazendo com que a incipiente barriga se movesse como gelatina nas mãos de uma criança. – Há quanto tempo nos conhecemos? Dez anos? E em todo esse tempo viste algum juiz por perto a levantar alguma coisa?
O sargento Xocas sabia que não, que na prática os juízes nunca estão presentes neste tipo de situações. Pelo menos na sua circunscrição. Na realidade, nos dez anos que levava destacado no quartel da Guarda Civil em Luíntra, só tinha assistido à remoção de cadáveres de anciãos que viviam sozinhos ou que não resistiram a um acidente com o trator ou que, simplesmente, tinham sofrido uma queda mortal. O seu quartel pertencia a Nogueira de Ramuín, onde se localizava a pousada de Santo Estevo. Os habitantes da zona eram de idade muito avançada, exceto durante o verão e alguns fins-de-semana, quando as povoações pareciam voltar a respirar. O sargento descruzou os braços e passeou de novo em redor do cadáver, observando os pormenores das imediações. Possivelmente este lugar teria sido, no seu tempo, uma horta cheia de vida, ordem e cor, com fragrâncias das mais variadas ervas medicinais cultivadas para a botica monacal.
Porém, agora restava tão-só um pedaço de terra abandonado e coberto de ervas silvestres. Um deserto verde que combinava com a solidão pardacenta daquelas paredes desabitadas. O volumoso cadáver tinha aparecido precisamente à entrada da horta, de bruços e com as mãos fechadas sobre a terra, como se o homem tivesse tentado agarrar-se a ela. Apesar do dramatismo desta cena, o escuro hábito monacal que o morto envergava encaixava perfeitamente com o ambiente ancestral e melancólico, e a polícia judiciária é que parecia deslocada entre aqueles muros. O sargento abaixou-se perto do cadáver, e fixou o seu olhar no que assemelhavam ser uns discretos restos de vómito.
— E isto?
— Já colhi amostras – reagiu Lucho a bufar.
— E é normal vomitar antes de um enfarte?
— Andas a ver muita televisão. Que te parece? Que quando tens uma insuficiência cardíaca levas a mão ao peito porque te dói e pronto? Como nos filmes?
— Eu sei lá, por isso mesmo é que te pergunto.
— O facto é que até é habitual ter os mesmos sintomas que os de uma indigestão... Náuseas, vómitos e tudo o mais. Inclusivamente, há pessoas que podem notar uma pressão nas costas ou no maxilar, sem chegarem a sentir dor no peito. Satisfeito?
Xocas lançou um olhar incrédulo ao perito legal e suspirou antes de voltar a falar.
— Daqui a quanto tempo terás o relatório da autópsia?
— Daqui a três ou quatro dias. As análises toxicológicas demoram mais. Mas escuta, acabei de te dizer que a este lhe falhou simplesmente o coração. A cor da cara e do pescoço, o excesso de peso... típico das insuficiências cardíacas. Ah, e no caso de estares interessado, deve estar morto há umas quantas horas, desde a madrugada.
— E o sujeito não era demasiado novo para ter um enfarte? — perguntou o sargento, que calculara que o morto deveria ter apenas uns trinta e cinco anos.
— Isso nunca se sabe, Xocas. Este tipo também não tem aspecto de quem se cuidasse muito – acrescentou, observando o evidente excesso de peso do cadáver. – Neste momento, só te posso dizer que não posso atestar a causa da morte com clareza. Acresce que, se houvesse algo estranho, os da Unidade de Pessoas de Ourense tê-lo-iam levado, portanto... qual é o teu problema?
Xocas voltou a cruzar os braços.
— É que há qualquer coisa que não faz sentido, Lucho.
— Se te referes ao hábito de monge, os da pousada já to explicaram.
Com efeito, a diretora do hotel, ao reconhecer o corpo, tinha confirmado tratar-se de Alfredo Comesaña, um guia que, ocasionalmente, fazia percursos teatralizados vestido de monge beneditino. Comesaña era um homem solteiro, normalíssimo, sem multas de tráfego, nem antecedentes criminais, não havia nada na sua vida que fosse relevante. Vivia sozinho, porque a sua única família era um irmão que emigrara para a Alemanha muitos anos antes. Trabalhava num supermercado de Luíntra e fazia este curto percurso para turistas há cerca de uns meses com o intuito de ganhar algum dinheiro extra. Contudo, essas premissas e a possibilidade do falecimento se dever a um lamentável e inesperado enfarte pareciam não convencer o sargento.
— E é normal terem a cara assim?
— Assim como?
— Com esse esgar de dor, tão alterado, como se o tivessem torturado.
— E julgavas que ao morrer ficamos com a cara serena, como se estivéssemos a ser embalados pela nossa mãe? Porra, Xocas, o tipo não bateu a bota a dormir, teve uma insuficiência cardíaca.
— Certo, mas porquê aqui, precisamente? Porquê nesta horta e sozinho? – perguntou o sargento, mais como se estivesse a falar sozinho do que a perguntar ao perito legal.
— O teu problema é que estás chateado porque aqui nunca acontece nada.
Xocas franziu o nariz, fazendo com que os seus olhos castanhos sorrissem.
— É possível.
3
Meia hora mais tarde, e depois de ter acedido aos incessantes pedidos de discrição da diretora da pousada, o sargento Xocas Taboada encontrava-se num dos gabinetes do hotel a recolher declarações de Rosa, a chefe de receção. A jovem, de tez clara e limpa, parecia estar mais corada do que nunca. Apesar dos nervos e do susto que levara ao descobrir o cadáver de Alfredo Comesaña, dava mostras de se ter restabelecido e apresentava-se serena e focada.
— Então, conhecia pessoalmente o falecido Alfredo Comesaña?
— Sim. Costumava cá vir umas duas vezes por mês fazer percursos teatralizados. Ontem à noite fez um.
— Eram sempre à noite?
— Sim, era muito mais atrativo para as visitas... – hesitou, à procura da palavra adequada – ...mais misterioso. A visita terminava com a preparação de uma queimada1 numa das salas da pousada, a que dantes era o refeitório.
— Onde?
— No refeitório dos monges.
— E há notícias dos turistas que acompanharam Alfredo no percurso? Refiro-me a se houve intoxicações, alguma ocorrência...
A jovem negou com a cabeça.
— Não tenho conhecimento. Na realidade, faziam parte de um grupo que veio de autocarro e partiu esta manhã cedo, depois do pequeno-almoço. Costumamos perguntar-lhes como correu a experiência e, segundo o que os meus colegas me disseram, iam muito satisfeitos.
— Ou seja, estão todos vivos.
Rosa arqueou as sobrancelhas e acabou por anuir, como se a prova de vida fosse realmente necessária.
— E o percurso incluía o bosque privado da pousada?
— Que eu saiba, não. Normalmente realizava-se pela igreja e os três claustros e terminava com a queimada. Na realidade, ontem Alfredo fez o habitual; depois, como sempre fazia, deixou as chaves na receção...
Portanto, o normal teria sido ir-se embora.
— Mas não foi.
— É o que parece.
— Não a vejo muito afetada. A jovem encolheu os ombros.
— Conhecia-o apenas por causa dos percursos, e só começaram há poucos meses. Mas lamento o sucedido, claro. Disse-lho há pouco. Ao princípio, quando encontrei o corpo, nem sequer me ocorreu que fosse ele, juro. Estava tão fora de contexto... Eu não soube, ou antes, não consegui relacionar... fiquei aterrada, compreende? Não percebia o motivo por que havia um monge morto no nosso bosque.
O sargento assentiu olhando-a diretamente nos olhos. Não lhe pareceu que estivesse a mentir.
— Recapitulemos. De manhã, bem cedo, através do telefone da receção, é contactada pela noiva que tinha casado na tarde anterior, correto?
— Sim.
— Bem. Pede-lhe que procure uma... – e o sargento revê os seus apontamentos – ...jaqueta branca de noiva, porque não sabe se a perdeu durante o banquete ou na sessão de fotografias realizada no bosque antes do banquete. Correto?
— Sim, exatamente. Uma jaqueta de toureiro caríssima, parecia uma pele de urso polar.
— Muito bem. Decide ir pessoalmente ao bosque procurá-la e, quando passa perto da antiga horta do mosteiro, depara-se com o cadáver.
— Sim, sargento. Assim foi.
— Rosa, você conhece muito bem o bosque da pousada... viu alguma coisa que lhe chamasse a atenção, algo fora do normal?
— Absolutamente nada – negou ela, convicta. – Neste momento, para ser franca, só tenho a imagem do corpo deitado no bosque. E nem sequer pensei em Comesaña ao vê-lo insistiu. – Creio que a impressão foi tal que fiquei totalmente desorientada.
O sargento assentiu, admitindo com o gesto que aquele cenário teria sido difícil de digerir para qualquer pessoa.
— Sabe por que razão terá o Comesãna entrado no bosque?
— Não faço a menor ideia.
— E quantos acessos existem?
— Quantos? Ao certo não sei... a cafetaria, o spa e o restaurante, creio. Mas o acesso do spa normalmente está fechado.
— E o perímetro do bosque do mosteiro está totalmente amuralhado?
— Sim, como pode verificar. Trata-se de uma muralha medieval, deve ter umas centenas de anos.
O sargento ficou pensativo, avaliando a informação.
— E câmaras de vigilância... têm?
— Claro, mas apenas na entrada e nos claustros, no bosque privado não.
— Entendo... de qualquer forma, para o caso de ser necessário, peço-lhe que guardem as gravações desta noite. Para a eventualidade de terem de ser visualizadas, pode ser?
— Como o senhor achar melhor, sargento.
Xocas avaliou a possibilidade de pedir de imediato uma visualização das câmaras, mas para quê? Em princípio, a video-vigilância privada costuma guardar as imagens durante um período máximo de um mês, e ele tinha um falecido de enfarte que fora morrer num local pouco habitual, é um facto, mas isso era tudo.
Além disso, no bosque não havia câmaras e os acessos eram numerosos: a cafetaria, o spa e o restaurante eram apenas os caminhos mais habituais para entrar, mas Xocas reparara que havia vários pontos onde o muro estava semi-derrubado, pelo que qualquer pessoa com certa agilidade poderia ter acedido ao bosque por aí. Ainda por cima, com um casamento pelo meio, a noite anterior fora certamente uma loucura, com um desassossego de pessoas e de caras desconhecidas. Por que motivo complicava tanto as coisas? Havia, tão-só, um indivíduo com excesso de peso que falecera de um enfarte depois de uma dupla jornada de trabalho num supermercado e num biscate como guia turístico. Era absolutamente normal que o pobre homem estivesse esgotado.
— Sargento – avisou a agente Inés Ramírez, que tocara à porta abrindo-a em simultâneo –, está lá fora um antropólogo, um professor universitário que afirma investigar arte perdida ou algo do género... diz que quer falar consigo.
— Um antropólogo?
— Deve ser o senhor Bécquer! – interveio a chefe de receção, surpreendida.
— Quem?
— Jon Bécquer, um detetive de arte roubada que também é professor de Antropologia em Madrid. Para ser franca, embora seja muito conhecido, neste momento não consigo dizer-lhe exatamente qual é a atividade dele... Não vos diz nada uma reportagem da National Geographic sobre um anel de Oscar Wilde que fora roubado em Inglaterra? Bécquer encontrou-o e apareceu com o sócio em todos os telejornais, e a seguir... – a jovem parou um instante, como se tentasse recordar. – Sim, penso que depois encontraram uma coroa africana que estava desaparecida vinte anos antes. Enfim, este tipo de histórias. Está aqui hospedado há uns quinze dias a investigar lendas, não sei se para um dos seus casos ou para quê.
— Lendas... – repetiu lentamente Xocas, esboçando um leve sorriso e sem ocultar a sua surpresa. – Pelo que diz, desconhece o motivo da estada do senhor Bécquer em Santo Estevo.
— Oh – surpreendeu-se a jovem –, nunca me ocorreria perguntar-lho. Seria uma indelicadeza e uma falta de discrição imperdoável... No entanto, posso confirmar-lhe que o senhor Bécquer se tem mostrado muito interessado em todas as lendas do mosteiro e da zona.
O sargento inspirou lentamente e pareceu avaliar positivamente aquela informação. Seguidamente, dirigiu-se à agente Ramírez.
— Esse tal Bécquer disse-te o motivo por que quer falar comigo?
— Sim, sargento. Por algo relacionado com o homem que encontraram morto esta manhã. Diz que o conhecia e que pensa que...
Ramírez pareceu aperceber-se de qualquer coisa, pelo que olhou para a chefe de receção e depois para o seu superior, dando-lhe a entender que a informação de que dispunha não podia ser transmitida diante de um civil. Xocas captou imediatamente a mensagem, pediu licença à jovem por uns instantes e saiu do gabinete com Ramírez. Ficaram junto da porta depois de a terem fechado.
— Vejamos, que disse o detetive?
— Que pensa que o monge foi assassinado.
— Porra. Assassinado? E onde está esse tal Bécquer?
— Ali, meu sargento, ao fundo do corredor. É o alto, o que está a olhar pela janela.
Xocas dirigiu o olhar para Jon Bécquer, que pareceu aperceber-se por puro instinto, pois virou o rosto, que até aí parecia estar concentrado em admirar o claustro dos Cavaleiros, e observou-o com determinação. No seu gesto, o sargento conseguiu captar a premência de quem tem algo extraordinário e importante que contar.
4
Jon Bécquer
O meu trabalho consiste em analisar as pessoas, saber como respiram apenas por observá-las durante o que dura um assobio. Se dispuser de um pouco mais de tempo, posso até descobrir aquilo que perderam para se tornarem no que são hoje. São essas renúncias que me interessam. As que não se veem. As que entrevejo nos gestos cansados, no olhar descrente, no sarcasmo.
Mas nem sequer eu, que estou treinado para observar, consegui avaliar a dimensão do que tinha entre mãos. Seria a grande descoberta. A decisiva. A minha afirmação no pequeno universo dos detetives do mundo da arte. Imaginei-me, elegantemente vestido, impecável, a ser distinguido em museus e universidades, esboçando um sorriso de humilde eficiência diante dos jornalistas.
— Como soube da existência destas relíquias milenares, senhor Bécquer?
— Oh, foi por mero acaso – explicaria, fingindo minimizar o meu mérito –, durante umas férias. Imagine só! Como poderia eu suspeitar que ia encontrar uma história tão inacreditável a caminho de um spa?
O jornalista rir-se-ia e eu acompanhá-lo-ia sem estridências, exibindo o meu sorriso de jovem investigador, atraente e triunfador. A verdade é que, com apenas trinta e três anos, alcançara fama com alguns resultados sonantes, graças aos quais o meu colega Pascual e eu conseguíramos, inclusivamente, recuperar um anel de Oscar Wilde roubado em Oxford.
— E como correu a investigação da lenda, Jon? Teve dificuldades com o episcopado?
— Não, de modo algum – teria negado com contundência. — Encontrei pessoas amabilíssimas, e esta investigação representou uma enorme aventura, como sempre – terminaria, piscando um olho ao jornalista com exagerada cumplicidade.
Mas não. Nada disto ocorreria, porque não passava de uma efabulação ingénua e soberba da minha parte. Em boa verdade, não sou especialista nem em arte nem em história, embora deva dizer, a meu favor, que desde criança tenho certa queda para discernir a arte falsa da que não o é. Talvez devido ao longo período da minha infância e adolescência em que passei as tardes na oficina do meu avô paterno; era restaurador e tinha uma loja de antiguidades no bairro de Salamanca, em Madrid. Foi ele que me explicou que pelo menos um terço do que lhe tentavam vender na loja era falso, e foi também ele que me ensinou pequenos segredos e técnicas para distinguir o que havia de verdade nos objetos e pinturas que me mostrava. Reconheço que apenas me interessavam as peças que tinham uma boa história, porque o que me atraía realmente não era a arte, mas sim a alma do objeto, a razão mesma da sua existência.
Não sei se esta curiosidade pelo sentido das coisas seria o motivo, entre outros, por que me tornei antropólogo. Observar e entender as pessoas, a sua evolução e as suas expectativas; porque essa era a minha ideia inicial, compreender e estudar os homens a partir da perspetiva social, biológica e evolutiva; suponho que sim, que foi lógico ter acabado por ser professor universitário de Antropologia Social. Mas nunca sequer imaginei que acabaria por me tornar detetive.
Tudo mudou quando conheci Pascual, que dava aulas de História de Arte na mesma universidade que eu, a Autónoma de Madrid. Como poderíamos imaginar que, depois de duas cervejas na cafetaria da faculdade, acabaríamos por trabalhar juntos e sermos conhecidos como os Indiana Jones do mundo da arte?
Ele tinha-se especializado em antiguidades gregas e romanas, e além de trabalhar na universidade mantinha uma colaboração estável com o MAN, o Museu Arqueológico Nacional de Madrid. Foi aí que introduziram ilegalmente um busto romano do ano zero que, em bom rigor, fora criado no século xIx, o que pôs em causa a sua reputação e o seu amor próprio. Ajudei-o como pude, numa longa história que não vem ao caso, e que terminou quando localizámos em Sevilha o falsificador que, como a maioria dos da sua atividade, era no fim de contas um antigo restaurador de arte. Os seus trabalhos eram tão extraordinários que nem sequer os especialistas conseguiam reconhecer as diferenças entre os seus bustos e os originais, com dois mil anos de antiguidade. Apesar de não ser essa a nossa intenção inicial, com aquele achado Pascual e eu acabámos por descobrir uma rede de falsificadores de nível internacional, pelo que aparecemos na imprensa nacional, europeia e até na norte-americana. Este acontecimento não nos trouxe nenhuma recompensa económica, mas sim um inesperado prestígio nas nossas respetivas faculdades universitárias e a origem de uma ideia: e se nos dedicássemos a desmascarar burlões, ladrões e falsificadores de arte?
Após alguma experiência e dois anos a supervisionar outros casos de burlas e roubos artísticos, acabámos por criar a Samotracia, a nossa própria empresa de detetives de arte. Pascual tratava das questões técnicas, do estudo pormenorizado e artístico de cada obra de arte que tínhamos de localizar, e cabia-me a mim viajar, contactar e reunir-me com clientes, comerciantes de arte, colecionadores e leiloeiras. Esta distribuição de funções era a mais lógica, visto eu não ter conhecimentos de arte, porque em Antropologia Social apenas me tinha formado em Gestão Sociocultural, com um mestrado em intervenção psicossocial e comunitária: muitos dos clientes da Samotracia pensavam que estudara Antropologia Arqueológica, sem que nunca me tenha incomodado em desfazer o equívoco.
Pascual e eu tínhamos acordado organizar-nos de modo que ele permanecesse quase sempre em Madrid, não só para se dedicar ao trabalho como professor e à colaboração com o MAN, mas também para conciliar a sua vida com a da mulher e os dois filhos pequenos, de três e seis anos. Pela minha parte, ao não ter esse tipo de laços familiares podia dar-me ao luxo de reduzir as minhas colaborações com a universidade, de modo que Pascual também delegou em mim os contactos com a imprensa e os colóquios e conferências em universidades, preferindo manter-se na sombra e dedicar-se à divulgação histórica e científica dos nossos achados em revistas especializadas.
Por esse motivo cheguei sozinho à Galiza, onde, após finalizar na Faculdade de História de Ourense a minha conferência Os Mercados da Arte, me deparei com cerca de dois dias inteiros sem nada que fazer até ao seguinte colóquio, que se atrasara por um erro de agenda. Perante esse inconveniente, foi o próprio Pascual quem me fez por telefone a proposta que mudaria tudo:
— Faz de conta que são umas miniférias... um dia de descanso, para variar.
— É claro, pá, como umas férias nas Caraíbas. Conheço Ourense, sabes? Não creio que tenha muito que fazer por aqui.
— Então não durmas na cidade... por que não vais para a pousada2 de Santo Estevo? Não deve ficar longe do centro, uma meia hora de carro. Disseram-me que era um sítio extraordinário, tanto assim que a Elisa e eu decidimos que quando formos à Galiza temos de visitar esse mosteiro.
— Mas é uma pousada – argumentei com relutância –, do mosteiro pouco restará.
— Não sejas desmancha-prazeres, Jon. Vá lá, pá, anima-te e depois contas-me.
— Não sei bem. Parece-me uma maçada.
— Vais ver que não. Além disso, não querias um pouco de tranquilidade para acabar de preparar as tuas próximas apresentações na faculdade?
Deixei-me convencer. Far-me-ia bem um descanso depois de duas semanas intermináveis com a imprensa, conferências e reuniões com colecionadores de arte na zona norte, cujos resultados não haviam sido grande coisa. Nessa mesma tarde deixei o meu hotel no centro da cidade de Ourense e dirigi-me para Santo Estevo.
Recordo ter chegado ao mosteiro quase ao anoitecer, após ter contornado umas quantas curvas que atravessavam bosques centenares e povoações com casas dispersas sem qualquer ordem aparente. No último troço, quando já encarava a hipótese de me ter perdido, surgiu, diante de mim e à direita, uma estrutura de pedra gigantesca que me obrigou a travar suavemente o automóvel. Os telhados eram colossais, imensos, e a cor de argila nova das telhas contrastava com o cinzento desgastado e poderoso da pedra. Que teria levado uns simples monges a construírem aquele refúgio descomunal num lugar tão distante do mundo e dos seus caminhos?
Arrumei o carro num estacionamento exterior e verifiquei que o acesso à pousada se fazia pelo maior dos seus três claustros; era conhecido por claustro dos Cavaleiros. Além de ser enorme, estava ajardinado e coberto por um extenso e impecável relvado. À direita, se procurássemos o acesso à receção e detivéssemos o olhar apenas uns metros mais adiante, descobríamos o verdadeiro coração do imenso edifício: um claustro pequeno e antigo, eclético, numa combinação de estilos que naquele instante não consegui determinar. A pedra dos arcos fora talhada em sinuosidades impossíveis, como se a humilde mão do homem a tivesse rendilhado até encontrar a alquimia exata da beleza.
Apesar da espetacularidade do meu alojamento, naquela noite, cansado, não fiz qualquer investigação e dirigi-me diretamente para o meu quarto, onde o século xxI e a Idade Média pareciam encaixar da forma mais natural e imaginável, como se os dois tempos se tivessem fundido numa época só. Lembro-me de ter dormido profundamente nessa noite, ignorando o que me esperava de manhã, e que se tornaria o mistério mais extraordinário da minha vida de investigador. E, de facto, encontrei-o a caminho do spa enquanto passeava por aquele recinto edificado.
De manhã, os meus passos conduziram-me inevitavelmente àquele claustro escondido perto da receção. Fiquei absorto a contemplá-lo, e tive saudades do Pascual, porque me era difícil entender o valor histórico do que via, e estava certo de que durante um bom pedaço de tempo ele me fascinaria com histórias sobre os segredos que, com todos os seus conhecimentos, encontraria naquelas enigmáticas pedras.
— É impressionante, não é?
Virei-me. Uma jovem loira, magra e de faces rosadas, vestida com o casaco do pessoal da pousada, observava-me com um sorriso.
— Sou a Rosa, a chefe de receção. Fui eu que o atendi ontem à noite quando chegou, senhor Bécquer.
— É claro, desculpe, não a reconheci. Estava absorto a contemplar esta maravilha.
— É o claustro dos Bispos, o mais antigo do mosteiro – explicou-me com uma expressão compreensiva, como se estivesse habituada ao impacto que aquele claustro produzia em quem visitava o lugar pela primeira vez.
— Se quiser saber mais sobre a pousada, encontrará mais de trinta cartazes espalhados pelo recinto que explicam a história de cada aposento; somos a primeira pousada museu da história – acrescentou sem disfarçar o orgulho. – Esta zona é especial porque aqui foram enterrados os nove bispos. Suponho que terá visto as suas mitras no escudo do mosteiro? Os anéis desses bispos atraíram milhares de peregrinos durante séculos – concluiu, fazendo menção de se afastar, e partindo do princípio de que eu sabia o que era uma mitra.
— Os anéis deles? – perguntei-lhe, retendo-a – Que tinham de particular?
— Curavam as pessoas, faziam milagres... sabe, esse tipo de coisas.
— Ah, e onde estão?
— Não sei... desapareceram. Sabe como é, talvez seja apenas uma lenda. Mas se o assunto lhe interessa, as ossadas dos bispos encontram-se na igreja, junto ao altar. Embora me pareça que a igreja só abre aos fins-de-semana.
Fiquei a olhar para ela enquanto a curiosidade me invadia. Sorriu-me e começou a girar os sapatos em direção à receção, num gesto de discreta e cordial despedida.
— Espere! E essa porta aí? Os pormenores de arte sacra são espetaculares. É românico, não é? O homem do punhal e o outro, o que está a ler um livro... que significam? – perguntei, indicando um lateral do claustro que tinha, além dessas, outras figuras curiosas esculpidas num arco de pedra que conduzia a um patamar e a uma escadaria imponente. A jovem aproximou-se.
— Ah, esse era o acesso original ao mosteiro e à sala do capítulo. E, com efeito, é românico, dos séculos doze e treze, assim como a parte inferior do claustro. A parte superior – esclareceu assinalando com a cabeça o segundo piso – é do século dezasseis. As figuras... confesso que não sei bem o que significam – admitiu, rindo-se e encolhendo os ombros.
Assenti e deixei-a ir sem ter reconhecido que não sabia exatamente o que era uma sala capitular, embora tivesse uma vaga ideia de ser um lugar onde se reuniam os monges. Os meus trabalhos na Samotracia tinham-me aproximado do mundo grego e também do pictórico do século xx, mas não do monacal. Independentemente do que possa ter sido, aquela sala do capítulo era agora uma moderníssima casa de banho para hóspedes e visitantes.
Dei um passeio mais tranquilo e minucioso ao redor do claustro, lendo alguns dos cartazes informativos que ali havia. Nove bispos da Idade Média que tinham lá ido para morrer entre os séculos x e xI, quando estas pedras albergavam monges beneditinos e não turistas de luxo. Cada bispo com o seu próprio anel episcopal e a sua mitra, que é uma espécie de touca alta e pontiaguda, símbolo de autoridade. Compreendi então a que se referia a chefe de receção, e que eu mesmo vira talhado em pedra por todo o lado: o extraordinário escudo com nove triângulos pontiagudos, que mais não eram do que as arcaicas mitras. Mas tudo isto não passa de história desgastada, votada ao desprezo pelo tempo. Quero lá saber desses nove anéis! Ninguém pedira à Samotracia que os localizasse, e eram relíquias tão antigas que seria um milagre encontrá-las. Para mais, Pascual e eu tínhamos começado a especializar-nos em arte romana e grega e em pintura do século xx, e havia ainda as peças roubadas provenientes do Afeganistão, que eram muitas. As relíquias religiosas não eram o nosso forte, talvez porque a eventual recompensa que a Igreja pudesse oferecer por um achado daquele tipo não seria particularmente generosa. Os montantes que as companhias de seguros dos xeques sauditas e dos funcionários da Europa Central prometiam eram, certamente, muito mais atrativos. Todavia, por algum motivo inexplicável, aqueles nove anéis fascinaram-me desde o início, e não pelos seus supostos milagres, mas pelo seu desaparecimento. Se a história era verdadeira, foram certamente muito venerados e estariam fortemente protegidos. Mil anos de antiguidade e história... não podiam evaporar-se sem deixar rasto.
Pensativo, abandonei o claustro e atravessei vários túneis de pedra centenários, que pela iluminação suave e estudada convidavam à confidência, à intimidade. Nesse estado de espírito, deslizei em silêncio até à cave da pousada, onde se encontrava o spa. Mergulhei numa das piscinas de água quente borbulhante, fechei os olhos e comecei a imaginar o que poderia ter sucedido às ditas relíquias. Foram certamente muito importantes durante a passagem dos peregrinos. É possível que os próprios responsáveis da Catedral de Santiago de Compostela fizessem desaparecer aqueles objetos milagrosos, preocupados com o facto de a sua veneração em Ourense poder reduzir a afluência de fiéis e viajantes a Compostela. Era uma formulação fantasiosa, mas não descabida.
A ideia de investigar o que teria sucedido às raras relíquias seduzia-me. Não seria extraordinário se conseguisse encontrá-las? Não no âmbito da minha atividade na Samotracia, mas por pura distração, por curiosidade. Reconheço que por vezes gosto de me entreter com coisas impossíveis, creio que para esquecer que, apesar da minha aparência amável, eu próprio sou, e serei sempre, um estranho monstro.
Quando regressei a Madrid, contei a lenda dos nove anéis ao Pascual; mostrou-se interessado, embora, como calculei, não visse grande proveito na investigação. Naquela altura estava mais focado na procura de um quadro do Picasso que desaparecera do iate de um xeque, uma vez que a comissão de dez por cento que receberíamos pela descoberta, a concretizar-se, seria muito mais aliciante do que a demanda de uns velhos anéis que ninguém reclamara.
Posto isto, voltei às minhas ocupações na Samotracia e durante todo o verão andei entretido a tentar reaver o quadro do Picasso e em reuniões com negociantes de arte de toda a Europa. No início de setembro entrei de férias, e decidi ocupá-las na procura daqueles anéis que de forma tão surpreendente atiçaram a minha curiosidade. Regressei por minha conta ao mosteiro de Santo Estevo e hospedei-me de novo no que era agora uma pousada escondida no imenso bosque nas margens do rio Sil. Comecei a indagar, dirigi-me ao Arquivo Histórico do Bispado e ao Arquivo Provincial de Ourense, e cheguei mesmo a andar de porta a porta a questionar os habitantes da povoação. Descobri, para minha grande surpresa, que o misterioso desaparecimento dos ditos anéis com mil anos de antiguidade não teria ocorrido na Idade Média, mas sim muito mais tarde, no início do século xIx.
Demorei quase duas semanas a destrinçar parte da extraordinária viagem realizada pelos anéis, e hoje sinto que este recanto secreto do mundo é um desses lugares onde sucedeu absolutamente tudo e onde não restam vestígios de nada, exceto nas suas pedras, esculpidas pela água, a história e o musgo do pretérito e vetusto.
Mas após a breve estada na pousada, onde ainda permaneço, sinto um incómodo desassossego que sobe do estômago e me angustia. Acabou de morrer uma pessoa e penso que pode ter sido culpa minha. Esta manhã a rapariga da receção encontrou o corpo, e não sei se o que mais a aterrou foi a visão do cadáver ou o pensar que viajara ao passado, duzentos anos no tempo.
Soube que a polícia judiciária chegou e acabei de pedir uma entrevista ao responsável pela investigação. Entretanto, espero neste corredor da pousada, e não consigo afastar o meu olhar do claustro dos Cavaleiros, como se a contemplação do relvado rodeado por arcadas e galerias de pedra pudesse transmitir-me um pouco de tranquilidade. Não, não me resta outra opção. Tenho de contar a verdade à polícia, tudo o que aconteceu nas últimas duas semanas, quando comecei a procurar os nove anéis.
Notas:
1 Licor tradicional galego a que se deita fogo, enquanto se recita o conjuro contra as bruxas, e que invoca os quatro elementos (fogo, terra, ar e água), divindades fundamentais da cultura dos druidas e célticas (N. das T.)
2 Parador no original. (N. das T.)
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