PREFÁCIO
Dormi no Sara rodeado de pinturas rupestres com mais de vinte mil anos e com outras tantas estrelas por tecto, no mais puro céu do mundo; apontaram-me uma Kalashnikov à cabeça para me roubar as botas, numa tribal area do Paquistão; apertou-se-me o coração diante de uns sapatos vermelhos de mulher que sobressaíam no meio dos sapatos pretos dos milhares de mortos em Auschwitz; vi as jovens pigmeias, nas florestas virgens do Gabão, mastigar a mandioca antes de a meter na boca dos velhos já desdentados; caí numa emboscada montada pelo Exército angolano, com a cumplicidade do «Telejornal» da RTP, e sobrevivi, ao contrário de outros; andei às cegas em campos de minas no Afeganistão; recebi dezenas de ameaças de morte ao fazer a reportagem sobre a tragédia de Camarate; comovi-me com as lágrimas nos olhos de um piloto marroquino prisioneiro da Polisário; fui em parte responsável pela morte de soldados e de civis, em África; conheci muitas pessoas extraordinárias em situações extremas e um número bem maior de filhos da puta; pisei as velhas lajes de pedra com que os portugueses pavimentaram as ruas de Paraty para melhor escoar o ouro do Brasil; cheirei a gangrena nas pernas estilhaçadas de soldados no Chade; ouvi os gritos dos presos a serem espancados, no Togo, enquanto esperava pela minha vez, e vi morrer gente em combate, e nasceu-me uma criança no jipe, nas picadas do Burkina-Faso, e vi a ganância nos olhos dos garimpeiros, rente à fronteira do Congo, e o desespero nos olhos dos refugiados que fugiam do Iraque e da guerra…Vi e tornei a ver. Sou um homem rico de muitas imagens. Algumas ainda me atormentam em pesadelos; outras fazem-me sorrir. Colhi-as enquanto repórter. E como repórter aqui vo-las deixo. Afinal, foi por vós e para vós que as guardei.
Escrever sobre o que testemunhei é um trabalho que exige cautela, porque o tempo agrupa na memória os acontecimentos mais relevantes e apaga a escrita compacta dos dias. Se um jornalista não tiver cuidado, muito cuidado, ao relatar o que viu e viveu, arrisca-se a esquecer o que não lhe convém lembrar ou a pintar a metade do quadro que lhe diz respeito em tons cor-de-rosa e a metade dos outros com as cores sombrias de William Turner. Em vez disso, deve apenas cuidar dos factos, sempre os factos e ainda os factos, independentemente da sua cor. Para me manter no caminho certo, conto com os cadernos que enchi com notas durante décadas e com as reportagens que fiz para a imprensa, a rádio e a televisão, e faço votos para que eles me encurralem na verdade ou, pelo menos, na verdade desses tempos.
Vou abordar apenas umas quantas das grandes reportagens que fiz ao longo de vinte anos. Porquê umas e não outras? Porque algumas foram um marco no sempre inacabado combate entre o jornalismo independente e o poder político, em democracia; porque outras trataram temas prementes, que, sendo do passado, o são também da actualidade, e ainda porque dizem respeito a alguns sítios maravilhosos da Terra que a civilização, o turismo de massas e a poluição ainda não estragaram. Quanto à forma, o que escrevo só por acaso obedecerá a uma cronologia. Será, antes, como as cerejas da minha serra natal. Uma história puxará outra e nunca se sabe quantas virão no final. E poderá ainda acontecer que dentro de algumas histórias haja outras, como nas matrioscas russas. A primeira cereja — a que puxará pelas outras — serão as reportagens que fiz em África durante o ano de 1977.
1 - UMA GLORIOSA MADRUGADA
«A minha jornada chegou ao fim; abandono a Europa»
Arthur Rimbaud (Mauvais sang, 1873)
Volto costas a Paris e rumo a África, ao volante de um Land Rover em segunda mão que comprei em Birmingham. O projecto da reportagem passa por cruzar o Mediterrâneo entre Algeciras e Ceuta, e continuar por Marrocos e pela Argélia, antes de atravessar o Sara, a solo. Do outro lado do deserto, quero percorrer a África Ocidental e a Austral, até Angola. Depois, ao fim de um ano, se tudo correr bem, se o jipe e eu aguentarmos e se o que for escrevendo me der dinheiro para ir vivendo e continuar, logo se verá. Talvez um ano mais, até à África Oriental e a Moçambique, na peugada de Capelo e de Ivens. Mas, para já, agrada-me pensar, como Rimbaud, que ma journée est faite, je quitte l’Europe…
Nesta fria madrugada de Fevereiro de 1977, pouco sei sobre África, e quero saber tudo. Na juventude, ainda em Portugal, tinha ficado fascinado pelos livros de Ferreira de Castro, pelas narrativas de caça de Henrique Galvão e, mais tarde, pelas histórias contadas por amigos que tinham feito a guerra colonial. Já exilado em Paris, a estas impressões algo folclóricas tinha-se juntado a reflexão do grande africanista René Dumont1 sobre o mau caminho por onde a África enveredou após o surto das independências, nos anos 60.
Na actualidade, seguia atentamente o que as revistas e os jornais franceses escreviam sobre as suas ex-colónias e também sobre o andamento da guerra que Portugal travava nas frentes da Guiné, de Angola e de Moçambique. Mas sentia que, havendo de sobra declarações e comunicados oficiais, faltava a realidade dos povos africanos.
Esta misturada de informações, por vezes contraditórias, despertava em mim uma certa perplexidade e uma não menor curiosidade. Ambas eram exacerbadas pelas versões quase antagónicas sobre a colonização e a descolonização portuguesas, defendidas pelos políticos do pós-25 de Abril, por um lado, e, pelo outro, pelos chamados «retornados». A melhor solução para o problema, ainda que não a mais fácil, era ir ver. Sem óculos ideológicos de esquerda nem de direita, sem preconceitos. Ver para contar, a grande obsessão do repórter… Fui ver.
A França, de norte a sul, a Espanha, que surpreende, apesar de já saber que é surpreendente. A rádio noticia as discussões sobre a possibilidade da legalização do Partido Comunista Espanhol. Atrás de mim, a Europa mexe. À minha frente, África. O ruído certinho do motor é uma boa companhia. Hoje, tenho 29 anos e começo a minha primeira grande reportagem.
O jipe porta-se bem, apesar da muita carga que transporta. Nas subidas tem dificuldade em chegar às 50 milhas (80 quilómetros) por hora, mas nas descidas consegue dar mais de 100 à hora. O lado bom da coisa é que, pelo menos, não corro o risco de levar uma multa por excesso de velocidade.
O porta-bagagem do tejadilho leva os pneus sobresselentes, amarrados com uma corrente e um sólido cadeado, e duas pranchas de alumínio e uma pá, para resolver possíveis «atascanços» nas areias do deserto. À frente, do lado do passageiro, tem um bidon rectangular com capacidade para 60 litros de água, equipado com uma torneira à qual posso ligar um tubo de plástico, para servir de duche. No interior, nas costas dos bancos, mandei instalar um reservatório suplementar para 250 litros de gasóleo. A água e o combustível, as duas grandes preocupações de quem vai atravessar o Sara. A par de não se perder, é claro.
A cabina propriamente dita está dividida em dois «caixotes», aparafusados ao chassis. No maior, segue a roupa, alguns livros, a máquina de escrever, duas bússolas, alguns guias do Sara e da África negra em geral, vários mapas, um filtro bacteriológico para água e uma pequena mala de primeiros socorros, preparada pela minha namorada, que por essa altura acabava Medicina em Paris.
O «caixote» mais pequeno, separado do outro por uma estreita passagem que me permite aceder ao fundo do jipe, foi reservado para a cozinha. É nele que assenta a tampa do maior, que é desdobrável e que me permite fazer uma cama. No «caixote» pequeno vai um camping-gás, uma modesta panela de pressão, uma fartura de patês, de latas de conservas e de sopas instantâneas, um valente queijo de Malpica, vindo de Portugal (que atravessou o Sara com garbo e um cheiro vigoroso), esparguete, arroz, chá, café, açúcar, sal, piripíri, mostarda e uma garrafa de azeite, bem acondicionada com cartão, para a proteger dos saltos do jipe.
Guardo a quase totalidade do meu dinheiro no cinto. É um daqueles cintos com fecho-éclair no interior, onde posso esconder algumas notas bem dobradas. Anos mais tarde, já em Lisboa, esse mesmo cinto haveria de servir aos jornalistas da «Grande Reportagem» quando partiam para países de segurança duvidosa. Ainda hoje o tenho, não vá um milagre improvável lançar-me numa última reportagem… Dependurada no cinto tenho uma pequena bolsa de cabedal preto, que também guardo, onde conservo religiosamente o «coração burocrático» da viagem.
É um coração de várias nacionalidades. Essa circunstância iria custar-me inúmeras horas de justificações em quase todas as vinte e oito fronteiras africanas que atravessei nesse ano. A carta de condução é internacional; até aí, tudo bem. Mas depois vá lá explicar-se a um aduaneiro africano porque é que eu, português com um passaporte português, tenho um certificado internacional de vacinas francês, um jipe matriculado em Inglaterra, com o volante à direita, um caderno de passagem nas alfândegas também francês e, para compor o ramalhete, um seguro automóvel suíço.2
Ceuta será a minha porta de entrada em África. Levarei três dias a chegar lá. Ainda há poucas auto-estradas e procuro evitá-las, por causa das portagens. Afinal, tempo não me falta. Durmo no jipe, em estações de serviço, entre camiões e camionistas que me olham com curiosidade. Um deles é português e não quer acreditar que vou dar a volta a África. Conversamos um pouco, à volta de um cigarro. Ele fuma SG Gigante, o tabaco que eu também fumava quando vivia em Portugal. No dia seguinte, está um maço de SG Gigante no assento do jipe, que ele atirou lá para dentro pela janela entreaberta.
Em Algeciras apanho um barco cheio de marroquinos que fazem uma grande algazarra em árabe, e duas horas depois estou em Ceuta. A cidade é para mim uma surpresa tão grande quanto a minha ignorância sobre ela. As placas das ruas, encimadas pelas armas de Portugal, têm nomes portugueses. Lá no alto da fortaleza, ao lado da bandeira espanhola, agita-se a bandeira de Lisboa, que afinal é também a de Ceuta. À beira do fosso navegável que corta o istmo ao meio, uma placa explica que os engenheiros militares portugueses tinham criado ali a primeira ilha artificial do mundo, em meados do século xv. No ombro, os soldados espanhóis têm um escudo com as Quinas.
No «Ofício de Turismo» arranjo uns vagos prospectos e uma pequena brochura, que desfazem parte do mistério. Lá está a história de Ceuta desde a Antiguidade, com particular ênfase na conquista da cidade pelos portugueses, comandados por D. João I e pelos filhos, a 21 de Agosto de 1415. A insistência dos espanhóis em manter os nomes portugueses explica-se pela teoria com que pretendem legitimar a soberania de Espanha sobre o enclave. Segundo eles, Ceuta não era árabe até ser conquistada por Tárique, em 711, e os portugueses limitaram-se a reconquistá-la para o Ocidente e a Cristandade.
Ainda penso em escrever algo sobre a cidade, mas parto do princípio de que a história é por demais conhecida em Portugal e que não vale a pena recontá-la. Mal imaginava eu que a ignorância dos portugueses sobre Ceuta era igual à minha… Três anos mais tarde, em 1980, quando por lá voltei a passar com a minha equipa de filmagens, corrigi o erro. Fiz uma reportagem de 26 minutos para a RTP.
A entrada em Marrocos foi um exemplo daquela que seria a regra dos meus problemas com as fronteiras africanas. Problemas e tempo, imenso tempo de espera. A estrada que leva ao posto fronteiriço está engarrafada com carros e peões, sobretudo marroquinos, que saem rapidamente do lado espanhol, mas que são depois travados pelo rigor da Polícia de Marrocos. A maioria dos carros tem matrícula francesa, belga ou alemã. São emigrantes de regresso ao país. A rede de arame que se estende dos dois lados do posto fronteiriço tem cerca de três metros de altura e é suportada por pilares de cimentos. Na rede há uma pequena porta por onde passam os peões, sobretudo mulheres e jovens que levam às costas grandes trouxas com produtos com- prados em Ceuta, que é uma zona franca. Para entrar em Marrocos, entregam ao polícia e ao aduaneiro uma nota, que estes logo metem ao bolso. Que eu veja, nunca lhes foi dado qualquer recibo…3
A entrada é bem mais complicada para os automóveis e as carrinhas. No meio de uma grande algazarra, orquestrada sobretudo pelos gritos das mulheres, os condutores e os passageiros têm de sair e descarregar os carros. Desde os tapetes enrolados e transportados nos tejadilhos, aos electrodomésticos ainda embalados. Cada objecto é minuciosamente inspeccionado e alvo de um grande regateio à volta dos direitos alfandegários que deve pagar.
— Queres a minha desgraça e a da minha mulher e da minha família, queres, queres?!
Um processo moroso, como se calcula. Moroso e turbulento.
Temo o pior quando chegar a minha vez, e é mesmo o pior que acontece. Entrego todos os documentos a um polícia, que desaparece com eles no interior do posto, ao mesmo tempo que um guarda-fiscal me manda descarregar o jipe.
— Tudo? — pergunto eu, na minha inocência.
— Absolument tout!
Toca portanto a descarregar o jipe, desde os pneus sobresselentes à última lata de sardinhas. Um amontoado de coisas que surpreende até os marroquinos, meus irmãos de infortúnio. Quando o guarda avista a pá, as coisas complicam-se. Parece que a pacífica pá pode entrar na categoria das armas proibidas e, na dúvida, chama o chefe. Que demora uma eternidade a chegar. Pega no objecto suspeito, enquanto eu tento explicar para que quero a pá, que vou atravessar o Sara, que posso atascar o jipe… Uma lenga-lenga, finda a qual o chefe atira a pá para cima das latas de conservas, num gesto de soberbo desprezo, e diz algo que não percebo. Deve ser uma qualquer luz verde, porque o guarda manda-me carregar o jipe. Recolho os documentos, devidamente carimbados, e arranco. Passaram entretanto quatro horas, o Sol começa a pôr-se e está um frio de rachar.
Para quem está em Ceuta, o caminho mais directo entre o Norte de África e a África negra consiste em descer até ao Sul de Marrocos, atravessar o ex-Sara espanhol e a Mauritânia, e entrar no Senegal. Mas esse trajecto, chamado «pista ocidental», estava proibido aos viajantes. Quando a Espanha se retirou do território e entregou a administração a Marrocos e à Mauritânia, Rabat organizou e promoveu um cortejo, em Novembro de 1975, de centenas de milhares de civis e de soldados sem uniforme, que invadiu a ex-colónia espanhola. Foi a «Marcha Verde». Desde então, era proibido visitar ou sequer atravessar a região.
A ocupação da ex-colónia gerou uma grande tensão entre Marrocos e a Argélia. A Frente Polisário, um movimento revolucionário apoiado por Argel, tinha desencadeado a luta armada e proclamado a independência do território. O fundo da questão era — e é ainda hoje — bastante simples. Marrocos recusa deixar-se cercar pela Argélia, e a Argélia não aceita que Marrocos duplique a sua superfície. Para tentar resolver a questão, a ONU propôs uma consulta popular, em 1992, mas o referendo nunca se realizou. A situação mantém-se, a tensão entre os dois países também, e agravou-se mais ainda em 2021.
Em Fevereiro de 1980, no âmbito da série «África 80»4, fiz uma reportagem sobre a Polisário5 e a República Árabe Sarauí Democrática (RASD), algures entre Tindouf, na Argélia, e o ex-Sara espanhol. Por falta de lugares no avião militar argelino que nos levou até Tindouf, deixei metade da minha equipa em Argel e fui apenas com o meu cameraman, o Bernard Dechet. Viajámos ao lado de Otelo Saraiva de Carvalho e de Rogério Lobato, então ministro da Fretilin6 no exílio. Rogério Lobato levava uma boina à Che Guevara, com a estrela da Fretilin, e um blusão de cabedal do Exército português, com as Quinas gravadas nos botões. Otelo ia vestido à civil.
No avião seguia também Eugène Mannoni, grande repórter da revista francesa Le Point e um velho amigo que fazia parte do grupo de jornalistas franceses que tinham feito a cobertura da Revolução de Abril, em Portugal. Sabendo o que «a casa gasta», o Bernard e eu tínhamos levado umas sandes de sardinhas e de atum, e uns pacotes de sumo, que partilhámos irmãmente entre nós enquanto sobrevoávamos o deserto do Sara.
Da reportagem sobre a Polisário retive duas peripécias.
A primeira, algo folclórica, foi uma «pescadinha de rabo na boca». No meio do deserto, tinha sido construída uma parede com mais de trezentos metros de comprimento e cerca de cinco de altura. Tinha a forma de uma meia-lua com as pontas voltadas para o enorme terreiro que ficava à sua frente. Contra a parede, ao centro, estavam encostadas algumas bancadas em anfiteatro, às quais se acedia por uma pequena porta rasgada no muro. De um lado e do outro das bancadas, ao longo do muro, concentravam-se alguns milhares de sarauitas, homens, mulheres e crianças. Na bancada central ficaram o presidente da RASD, Mohamed Abdelaziz, outros altos dignitários da Polisário, convidados ilustres como Otelo, e a imprensa. Éramos a única televisão presente, a par da argelina.
Depois dos discursos da praxe, começou um longo desfile militar. Da esquerda do muro iam surgindo grupos de soldados, em passo marcial ou de corrida, e vários carros de combate, que passavam em frente à tribuna presidencial e desapareciam do outro lado, à direita. Quando chegava a vez das tropas de elite ou das companhias femininas, a multidão aplaudia com maior vigor e os tambores militares rufavam ainda mais alto.
— Parece que os comandos da Polisário podem percorrer setenta quilómetros numa noite — diz-me Otelo.
— Acha que sim?
Otelo hesita.
— Setenta quilómetros numa noite não é impossível… O problema aqui é o terreno. A areia não facilita a marcha…
Outra façanha que a Polisário gostava de anunciar era o jogo do gato e do rato com a aviação marroquina. Quando um avião inimigo avistava um jipe da Polisário no deserto, os sarauitas escondiam-se atrás de uma duna e, durante o tempo que o piloto demorava a dar meia-volta, o jipe acelerava e corria para o outro lado. É claro que ninguém referia a hipótese de os aviões actuarem aos pares, mas enfim…
Os marroquinos, por seu turno, faziam constar que tinham instalado ao longo de toda a fronteira sensores muito sofisticados, fornecidos pelos norte-americanos, que lhes permitiam detectar a grande distância qualquer sarauita que se aproximasse das suas posições, mesmo de noite e a rastejar. É claro que também ninguém explicava como é que os sarauitas, apesar disso, conseguiam atacar para lá das linhas marroquinas… Não é por acaso que as maiores pérolas de propaganda aparecem sempre em tempos de guerra, os mais propícios para os políticos e os militares jogarem o jogo do rato e do gato com os jornalistas.
Como já tínhamos imagens mais que suficientes do desfile, peço a Otelo que me conceda uma entrevista sobre a Polisário. Ele concorda, mas por causa do barulho devemos ir para o outro lado do muro — coisa que os seguranças não querem, e a que só acedem depois de Otelo ameaçar queixar-se a Abdelaziz.
Lá saímos pela pequena porta, e é aí que deparamos com a «pescadinha». Os militares e os veículos que entram na parada pela esquerda, desfilam em frente ao muro e da bancada presidencial, saem pela direita e depois regressam a correr, deste lado do muro, para desfilar de novo. Como não são muito numerosos — talvez uns quinhentos, no total; é difícil calcular —, fazem isso em passo de corrida, ao mesmo tempo que trocam de roupa e de armas uns com os outros…
A segunda peripécia foi desagradável para mim, que nunca gostei de entrevistar prisioneiros de guerra. Trata-se de uma situação em que, logo à partida, o entrevistado está indefeso e num plano de inferioridade em relação ao entrevistador. Acho que é um pouco como bater num ceguinho. Ou o prisioneiro responde como os seus guardas querem que responda e não se obtém qualquer informação nova, ou sujeita-se a retaliações assim que o jornalista se vai embora. A sacrossanta regra do jornalismo, nestes casos, é nunca fazer perguntas de carácter político ou militar. Exactamente o contrário do que um «jornalista» português fez a Xanana Gusmão, depois de ele ter sido capturado pelos indonésios (quando me lembro dessa entrevista, ainda hoje tenho vergonha…).
Numa longa fila, sentados no chão, de cabeça descoberta, à torreira do sol, estão cerca de cem soldados marroquinos capturados pelos sarauitas. Ligeiramente à parte, vê-se um pequeno grupo. São oficiais. Digo-lhes que somos a televisão portuguesa e pergunto a um deles se aceita responder a algumas perguntas. Ele diz que sim e põem-se todos de pé. É um piloto cujo avião foi abatido há poucos dias e que conseguiu saltar de pára-quedas. Trata-se de um homem novo, na casa dos trinta anos, um pouco gorducho, de olhar vivo, voz firme, bem barbeado e bem-disposto, dadas as circunstâncias. É casado e pai de três filhos, deux plus un, dois rapazes e uma rapariga. Ainda não recebeu a visita do Crescente Vermelho, nem da Cruz Vermelha.
Pergunta-me se a reportagem passará na televisão marroquina. Respondo-lhe que é muito provável que seja vista na embaixada de Marrocos, em Lisboa.
— É por causa da minha família, percebe… É humano…
Aperto-lhe a mão, desejo-lhe felicidades e penso que não voltarei a vê-lo. Será apenas mais um rosto, esfumado pelo tempo, no longo cortejo das memórias jornalísticas.
Mas não. Três anos mais tarde, por pura coincidência, o mesmo aviador é entrevistado pelo Miguel Sousa Tavares, para o programa «Grande Reportagem» da RTP. Ao dar uma vista de olhos às imagens, quando o Miguel estava a editá-las, vejo «o meu aviador» — ou, melhor, o fantasma do meu aviador, nas mesmas areias do Sara. Magro, abatido, o olhar vazio, sem sombra de ânimo ou de esperança, vestindo a mesma farda, mas já esfregada pelo tempo e pela areia do deserto. Na reportagem do Miguel, ele aparece «antes» e «depois». Já não é o mesmo homem.
Como acontece em quase todas as reportagens, também esta teve o seu lado cómico. No meio do acampamento sarauita passeavam-se dois europeus vestidos com fardas camufladas. Um grande e gordo e um baixo e franzino. Hum?… dizíamos nós, argutos jornalistas, estes dois cheiram a «conselheiros militares» da Alemanha de Leste. Afinal eram músicos, que actuaram nessa noite, o gordo a tocar acordeão e o franzino a cantar «Kalinka», para grande alegria dos sarauitas. À noite, quando o Eugène Mannoni foi dar um passeio fora do acampamento, deparou com os dois a «libertarem-se» desenfreadamente, sem margem para dúvidas, nas dunas desérticas daquele território libertado.
Em 1977 José Manuel Barata-Feyo começou uma reportagem que ainda não acabou. Sozinho ao volante de um jipe, deixou a Europa e cruzou África. Recorrendo à sua memória, ao testemunho de amigos e aos inúmeros cadernos de reportagem que encheu ao longo da sua vida profissional, o jornalista conta-nos como foi atravessar África e como essa viagem continua a revelar tanto sobre o continente e sobre a essência do jornalismo.
As condições para atravessar o Sara mudaram muito — e para pior — desde 1977. Os movimentos fundamentalistas na Argélia, num primeiro tempo, e depois o aparecimento do Boko Haram em toda a região do Sahel impedem qualquer travessia do deserto pelas pistas que então eram utilizadas, e que, em 2021, estão todas proibidas pelas autoridades da Argélia. Por ironia, a única pista que permite chegar à África negra, a partir da África do Norte, é agora a «pista ocidental», controlada pelo Exército marroquino.
Em El Aaiún, a 45 quilómetros de Oujda, sou parado numa barreira de polícia. Começo a praguejar para dentro, convencido de que terei de voltar a descarregar o jipe e a perder mais umas quantas horas.
O guarda que me manda parar pede-me o passaporte, olha para ele sem o abrir e pergunta-me:
— Portugais?
Digo que sim. O guarda sorri, volta-se para trás e aponta:
— A fábrica dos portugueses é já ali. Aquela chaminé lá ao fundo.
Não percebo nada, nem sei a que fábrica se refere, mas pouco importa. Recebo o passaporte, sorrio também e arranco com um aceno amistoso e um discreto suspiro de alívio. A fábrica? Quando chego por alturas da dita chaminé, paro diante de um grande estaleiro onde circulam camiões e jipes. Saio da estrada e pergunto pelos portugueses ao primeiro camionista que vejo. Lá dentro, diz-me ele. Pois seja, lá dentro.
É uma empresa portuguesa que está a construir uma cimenteira, de raiz. Ultrapassada uma primeira surpresa — ou, talvez, desconfiança — perante a minha visita, conto que vou dar a volta a África no jipe.
— A volta a África?! Fique até amanhã, almoçamos uma bacalhauzada.
A perspectiva agrada-me, mas quero sobretudo satisfazer a minha curiosidade. Há menos de três anos, a África independente estava vedada aos portugueses. Como é que agora?… Fico a saber que várias empresas ganharam concursos internacionais e que Marrocos é apenas um dos muitos países onde já estão implantadas. Tomo nota. O mundo dos negócios internacionais avançava mais depressa que os ideólogos da Revolução dos Cravos.
Da paragem em Oujda retenho sobretudo um convite para participar numa montaria aos javalis. A caçada é organizada pelos oficiais do exército do quartel de Oujda e tem lugar no djebel, o terreno montanhoso a sul da cidade. A montaria nada teve de especial, mas o almoço foi curioso. Os cozinheiros tinham feito um buraco no chão, onde acenderam uma fogueira. Quando já só havia brasas, puseram a assar por cima delas dois grandes borregos, metidos em espetos, que iam rodando.
Ao lado, no chão, estenderam mantas dispostas num círculo, onde se sentaram os caçadores. Alguns metros atrás deste primeiro círculo formara-se um outro, composto pelos batedores e pelos matilheiros. Mais longe, na zona onde ficaram os cães metidos nas suas caixas de rede, juntou-se um numeroso grupo de camponeses da região, atraídos pela montaria.
No ar paira um delicioso cheiro a méchoui, de onde sobressai o perfume do ras el hanout, a mistura de especiarias com que o borrego foi generosamente temperado antes de ir para cima das brasas.
A escala social do reino é respeitada. Os melhores bocados do méchoui são oferecidos aos caçadores, que têm em comum uma pele muito clara e que tratam os outros por «africanos». O borrego é-lhes servido em pratos de argila, ao lado de uma salada de tomate, pepino, pimento e cebola. Depois dos caçadores, à mão, comem os «africanos», matilheiros e batedores, e, depois deles, os camponeses. Os ossos são atirados aos cães. Foi o melhor borrego que comi na vida. Apesar de ter tomado nota da receita, ainda hoje não consigo chegar àquela divina perfeição.
A entrada na Argélia confirma a regra das fronteiras terrestres africanas: um ror de tempo, um perfume a humilhação e uma generosa pitada de corrupção. Chego ao meio da manhã. Mandam-me encostar o jipe. Passa uma hora. No chão sujo estão dezenas, talvez centenas de pontas de cigarro. Entretenho-me a ver as marcas. Há de tudo. Gitanes, Marlboro, Ducados, Belga… Não vejo cigarros portugueses.
Passam duas horas. Os carros conduzidos por argelinos, que chegaram depois de mim, despacham as formalidades rapidamente. Os guardas ignoram ostensivamente a minha presença. Passam três horas. Almoço uma lata de atum com pão e faço um chá de menta.
As fronteiras angustiam-me. Como nunca tive um passaporte «legítimo» antes do 25 de Abril, passava as fronteiras clandestinamente e fiquei traumatizado. O ambiente à entrada da Argélia empurra-me de volta para esses tempos sinistros. Lembra-me sobretudo a ida a «salto» e a pé de Vilar Formoso para Fuentes de Oñoro, em Espanha, e de lá, utilizando já um passaporte falso, para França. Estava a pagar os meus desaguisados com a PIDE, ainda jovem, tão jovem que sou por certo um dos mais novos detidos pela malfadada polícia. A solução foi partir para o exílio. Ora partir c’est mourir un peu, mas partir sem perspectiva de regresso é morrer um pouco mais que um pouco.
Tal como ainda hoje acontece, era preciso mudar de comboio na fronteira da Espanha com a França. Toda a gente descia e formavam-se filas que atravessavam uma sala mal iluminada por lâmpadas penduradas no tecto, onde havia, à entrada, uma mesa para a Guardia Civil espanhola e, do outro lado, uma mesa com a polícia francesa. Era o controlo de passaportes e de bagagens por onde os passageiros tinham de passar antes de poderem embarcar no comboio francês.
Já sabia que era assim, não tinha pensado noutra coisa durante a travessia de Espanha, mas quanto mais aquele futuro tão desejado se aproximava do presente, mais angustiado eu ficava. Tinha uma indizível sensação de caminhar para o inevitável. Repetia vezes sem conta a minha nova identidade — «Chamo-me João Mário…» —, mas nada me preparou para o choque da fila a caminho das mesas da polícia, para o lento avançar das famílias, em grupo, ou dos solteiros como eu, isolados, para a sufocante sensação de que todos olhavam para mim e conheciam a minha condição de clandestino, para o silêncio quase amedrontado que reinava na sala, onde ecoavam, pelo menos aos meus ouvidos, a voz forte dos polícias a fazer perguntas, as respostas abafadas ou tímidas dos emigrantes e a pancada ou o claque-claque metálico dos carimbos a bater nos passaportes.
A fila continuava a avançar, e eu com ela, e o meu coração a bater descompassadamente. Nunca tinha tido tanto medo na vida. Não era o medo infantil do quarto escuro ou o de quando andava à pancada com alguém mais velho e mais forte, mas um medo de algo para o qual não estava preparado e contra o qual não sabia como lutar. Só voltei a sentir um medo assim muitos anos mais tarde, em reportagem, mas essas são já outras histórias. Ali, naquele momento, assaltou-me a tentação de voltar para trás, de fugir, de esconder-me.
Olhei em volta à procura de uma casa de banho onde refugiar-me, e tudo isto deve ter durado uma eternidade, porque de repente chegou a minha vez e já não havia remédio nem nada que eu pudesse fazer. Estendi o passaporte ao guardia civil com um esforço para que a mão não me tremesse, tendo bem presente as recomendações de um amigo da Covilhã que — soube-o depois do 25 de Abril — era militante do PCP: «Lembra-te de que eles sentem o medo, são como os cães…»
Olhei o polícia nos olhos, sem sorrir, mas a direito. Ele abriu o passaporte na página com a fotografia, olhou para ela, olhou para mim.
— Dónde vas?
— Paris. Vacaciones.
O guarda voltou a concentrar a atenção no passaporte, avançou algumas páginas, atentou nos falsos carimbos «antigos» de saídas de Portugal e de entradas em Espanha —abençoado Carlos Oliveira, que antes de ser jornalista já era o melhor falsificador de passaportes do mundo! Que estejas em paz, lá onde estás — e aplicou-lhe o carimbo de saída por «Irún, España». Quando levantou a cabeça e me devolveu o passaporte, já nem olhou para mim.
Logo a seguir, embora eu tivesse apreciado um com- passo de espera, um respirar fundo, um descontrair os músculos da barriga, foi a mesa da polícia francesa. Mas os polícias estavam a conversar sobre qualquer coisa que os fazia rir e não me ligaram nenhuma. Um deles pegou no passaporte, procurou uma página adequada para o carimbo, claque-claque, e eis-me em França e em liberdade.
Só raramente voltei a utilizar um passaporte falso. Preferia arriscar as passagens «a salto», designadamente entre a França e a Bélgica, onde o meu irmão Jorge estava refugiado, viajando por estradas secundárias — a auto-estrada Paris-Bruxelas só seria concluída nos anos 70. Nessas fronteiras com pouco movimento, o pior que podia acontecer-me era mandarem-me para trás. A experiência marcou-me tanto que, durante muitos, muitos anos, já detentor de passaportes e de vistos legítimos, o meu coração ainda batia com desconforto de cada vez que me aproximava de uma fronteira.
Regresso à Argélia. Após sete horas de espera, já ao anoitecer, tudo se agita e acelera, bruscamente, sem qualquer razão especial para isso, penso eu, até que a explicação me salta aos olhos — e me vai ao bolso… —, um pouco mais tarde.
— Vá carimbar o passaporte.
— Vou.
Entro no edifício da polícia, com toda a documentação, que é submetida a uma análise rigorosa. Está um frio de rachar e esfrego os braços por cima da camisa, sem me arriscar a ir ao jipe buscar o casaco.
— Está frio — comenta um guarda alfandegário. Concordo. — Não tem uma garrafa de whisky ou de conhaque no carro?
A sugestão, para a qual já tinha sido alertado em Paris, é por demais evidente. Tinha comprado duas garrafas de whisky em Ceuta, contando com «imprevistos» desta natureza. Recordo-me de que uma garrafa de whisky custa cerca de 400 francos franceses (cerca de 60 euros, à época!) na Argélia.
— Tenho uma, já aberta…
É toda a arte das sugestões que não comprometem, dos não-ditos que dizem tudo.
— Bah… Alors!…
Vou ao carro e trago a garrafa. Ao meu guarda juntaram-se os outros todos, e os polícias também. Oito no total.
Desenrosco a tampa e ofereço:
— São servidos?
E o meu guarda:
— Não, nunca durante o serviço.
Adivinho uma pequena mágoa no tom de voz. Levanto a garrafa, devagar, bebo um gole e depois outro, sem olhar para ninguém, mas no silêncio da sala deserta sinto o peso de todas as presenças. Olho para o meu guarda, fecho a garrafa e estendo-lha:
— Talvez depois do serviço…
A garrafa desaparece num bolso da jaqueta, e o guarda por detrás de uma porta. A conversação recomeça, em tom alegre. É como se eu tivesse passado por uma cerimónia iniciática, e com sucesso. Os polícias contam-me da sua satisfação pelo facto de eu já não ter frio. Concordo, concordamos todos.
O meu guarda alfandegário volta ao serviço:
— Tem algo a declarar?
Vista de olhos superficial à bolsa que levo à cintura, depois declaração de divisas, de objectos preciosos, sobretudo em ouro, de máquinas fotográficas e de aparelhos de rádio. Depois vamos ao jipe e tremo perante a perspectiva de tudo descarregar e voltar a carregar. Mas não. O guarda dá uma vista de olhos superficial à parte de trás do jipe, vai à frente, onde eu me tinha «esquecido» de meia dúzia de maços de tabaco no assento do passageiro, e voltamos ao posto. É a vez dos polícias.
O meu seguro suíço, válido para a Europa e para toda a África do Norte e Ocidental… não é válido para a Argélia. Tenho de fazer um outro, ali mesmo, antes de poder continuar. Para isso é preciso dinheiro, dinares argelinos. Como só tenho francos franceses e alguns dirhams marroquinos, os guardas juntam-se e fazem-me o favor de cambiar o dinheiro necessário, porque o banco, que estava aberto quando cheguei, agora «já está fechado» e eles não desejam que eu tenha de esperar pelo dia seguinte. Aprecio devidamente a gentileza e concordo, grato, mesmo depois de perder metade do valor dos francos em relação ao câmbio oficial. Quanto ao câmbio do mercado negro, o melhor é nem calcular. Não quiseram os dirhams. Está explicado por que motivo tive de esperar.
Com os preciosos dinares na mão, vou atrás do guarda, até ao fundo do edifício. O corredor não tem iluminação e tudo está escuro. O guarda bate a uma porta, esperamos e o funcionário da companhia de seguros aparece, em contraluz, vestido com umas calças de pijama e uma camisola interior. Está de pantufas. O guarda diz-lhe qualquer coisa em árabe, o funcionário faz-me sinal para entrar e fecha a porta no nariz do guarda.
— Um seguro de trinta dias? Muito bem. São oitenta dinares.
Estendo o livrete do jipe e uma nota de 100 dinares.
— A sua declaração bancária do câmbio, por favor.
O funcionário é muito mais gentil que os guardas. Explico que, estando o banco fechado, os polícias fizeram o favor… O mais ardente desejo do funcionário é igualmente fazer-me o favor. Mas há o regulamento, há os seus chefes, há… A lista dos impedimentos que não lhe deixam «facilitar as coisas», como gostaria, vai-se alongando, enquanto ele preenche o certificado do seguro, que me estende com um sorriso caloroso, enquanto a outra mão faz desaparecer os cem dinares numa gaveta.
— Todos os meus votos de uma boa estada.
Despeço-me dele, despeço-me dos guardas alfandegários, despeço-me dos polícias, despeço-me da maldita fronteira e entro no jipe, que tinha deixado de portas abertas, como não podia deixar de ser, considerando a seriedade e a segurança do lugar, e porque fechá-las seria um sinal de desconfiança, talvez uma ofensa. No banco do passageiro ainda me restam três maços de tabaco.
Estou cheio de fome. Paro na primeira vila que encontro, em frente a um hotel de três estrelas, com as luzes quase todas apagadas. Que se danem as economias, por uma vez. O recepcionista informa que o restaurante está fechado, que o salão de chá está fechado, que o bar está fechado, que tudo fecha às dez horas na Argélia. Eu ignorava a diferença horária, e é uma hora mais tarde que em Marrocos. Perante o meu desânimo, o recepcionista vai lá dentro e traz-me um pão. Não aceita que lhe pague. Abro uma primeira lata de conservas e como à beira da estrada. São sardinhas da marca Pescador, que tinha comprado de propósito em Portugal, porque arrumam a um canto todas as francesas.
As aldeias e vilas por onde passo impressionam-me pela limpeza e pelo silêncio. Nenhum café, nenhuma bomba de gasolina, nenhuma iluminação pública. À entrada de Orão há um controlo de polícia, num sinal vermelho.
— É turista?
Digo que sim e saio do jipe para mostrar o passaporte.
O polícia diz-me que não é preciso e olha para o Land Rover.
— É inglês?
— Sou português.
O polícia sorri e diz-me que é a primeira vez na vida que vê um português. Respondo-lhe que é a primeira vez que visito a Argélia, e que procuro um hotel para dormir e água para beber, porque estou cheio de sede.
— Um hotel, a esta hora?… Siga-nos.
Atravesso Orão muito devagar, atrás do carro da polícia com as luzes azuis ligadas, até um pequeno hotel. Quando lhe agradeço a amabilidade, ele volta a olhar para o jipe e aconselha-me a não deixar nada à vista, «pneus, tudo». O que não puder esconder, devo levar para o hotel, por causa dos ladrões, «todos argelinos, expulsos de França». Bebo água no hotel e durmo no jipe.
No dia seguinte, vou ao hotel para tomar o pequeno-almoço. A sala de refeições tem a tinta das paredes a descascar e uma lâmpada acesa, dependurada pelo fio. As cadeiras estão postas em cima das mesas. Sou o único cliente. O empregado traz-me um café solúvel argelino, que sabe a favas torradas, leite, pão e manteiga, e uma faca com o cabo partido.
Pouco importa. Orão é a cidade onde Albert Camus escreveu A Peste, um livro que tão bem retrata as várias facetas do comportamento humano em tempo de crise. É em vão que tento projectar na actualidade o ambiente ali vivido durante a peste, mas com um pouco de imaginação é possível adivinhar o horror, mas também a solidariedade dessa época, a descer pelas ruas brancas da cidade, rumo ao mar. O único mérito do vírus que afligiu a humanidade a partir de 2020 terá sido levar milhares de pessoas a reler Camus ou, pelo menos, A Peste.
Em Orão, ao contrário do que sucedia de cada vez que parava em Marrocos, nenhum miúdo veio pedir-me um cadeau, o inevitável presente que é suposto o estrangeiro distribuir generosamente. De um modo geral, há nos argelinos uma aparência de dignidade que nem sempre se encontra nos marroquinos, talvez por estes últimos estarem muito mais em contacto com turistas que os habituaram a pedinchar.
Em Argel, quero apenas obter um visto para o Níger. Adoptei o método de pedir os vistos tanto quanto possível num país vizinho daquele que quero visitar. O meu propósito não é fazer um roteiro de viagem para hipotéticos turistas, nem repetir o que já é sabido sobre os lugares por onde passo. Quero somente apreender a realidade que me rodeia, sentir o modo como as pessoas vivem, as suas dificuldades e as suas esperanças, antes de me aventurar em análises políticas ou no balanço das independências. Por agora e tanto quanto possível, quero apenas ser africano. Enquanto espero pelo visto, vou às instalações da Rádio Voz da Liberdade, de onde algumas vezes me chegavam as notícias lidas por Manuel Alegre. Mas o prédio da rádio é igual a tantos outros e não merece uma atenção particular.
O ambiente na cidade não é hostil, mas também não é agradável para um europeu, quase sempre confundido com um francês. A guerra pela independência, com todas as crueldades cometidas pelos dois lados, acabou há quinze anos, mas uma década e meia não bastou para apagar as animosidades. Isso é palpável nos detalhes do quotidiano. De cada uma das cinco vezes por dia que o muezim chama para as orações, o europeu sente o peso dos olhares que o rodeiam, sem animosidade flagrante, mas num claro desafio. Ao contrário do que tinha sucedido com Portugal e com as suas ex-colónias, foi preciso esperar mais de vinte anos para que um chefe de estado argelino visitasse oficialmente a França.
Nas ruas, as placas em francês, objecto da campanha de arabização decretada em meados da década de 1960, foram apagadas ou substituídas por outras, escritas em árabe. Deslocar-me de jipe em Argel ou procurar a saída da cidade para continuar viagem é como navegar sem bússola. E o ditado «quem tem boca vai a Roma» não funciona aqui. Comecei por perguntar em francês, mas, por norma, recebia uma resposta seca em árabe, e ficava na mesma. Alguns desses argelinos podiam não falar francês, efectivamente, mas também era claro que os que conheciam a língua preferiam esconder esse conhecimento. A solução que encontrei foi falar em português ou num mau inglês. Nesse momento, o argelino perguntava-me se eu não falava francês, eu respondia que sim num francês aproximativo, e lá vinha a preciosa indicação sobre o caminho a seguir.
É em Argel que deve começar o megaprojecto da nova Transariana, sobre a qual quero fazer uma reportagem. A estrada deve ligar a capital argelina a Lagos, a capital da Nigéria, já na costa do golfo do Benim, depois de ter atravessado o Níger. O trajecto cobre uma distância de 4800 quilómetros — ida e volta entre Lisboa e Paris — e implica a travessia do deserto do Sara. Do lado argelino, a tarefa está a ser executada pelo exército nacional. Trata-se de um grande desafio, sob todos os pontos de vista, desde a obra de engenharia propriamente dita até ao que esta representa no plano político.
O pan-africanismo estava na moda e África fervilhava com discursos sobre realizações comuns, e mesmo sobre a fusão de alguns países recém-independentes, para tentar dar ao continente uma aparência de coesão e de unidade. Salvo uma rara excepção — a da fusão do Tanganica com Zanzibar, que originou a Tanzânia —, todos viriam a falhar. Tal como falhou a Transariana, pelo menos até 2021. E mais ainda falhou o projecto que englobava esta estrada, originalmente incluída numa rede mais vasta, que abarcava também a Tunísia, o Mali e o Chade, num total de seis países.
* * *
Saio de Argel e avanço para sul, rumo a Ghardaia, que é a porta de entrada no Sara argelino. Até à ocupação francesa, já no século XIX, era lá que se cruzavam as grandes caravanas que comerciavam as tâmaras, o sal, o marfim e as armas. Os seus habitantes, os mozabitas, concentram os casamentos num dia do ano. Fiquei curioso, porque esse costume poderia ter tido alguma influência nos casamentos de Santo António, em Lisboa. Ninguém pôde esclarecer-me. Sempre rumo a sul, passo por uma amostra da célebre Barragem Verde, um projecto lançado pela Argélia na década de 1970. Trata-se de plantar uma faixa de árvores no Sara que deve proteger os países do Magrebe contra o avanço do deserto para norte. Não protegeu nada. Foi um discurso grandiloquente, que produziu umas pífias plantações de pinheiros e que fracassou tão estrondosamente quanto o seu estrondoso anúncio público. Por força das alterações climáticas, o grande celeiro do Império Romano tinha-se tornado numa vastidão estéril.
Em 2008, depois da experiência da «barragem» e de outras «cinturas» verdes, a África lançou-se na construção de uma segunda e nova Muralha Verde. Só que agora ela deve ser construída quase 2000 quilómetros mais a sul, de Dakar, no Senegal, a Djibouti, na costa do Índico. Será uma muralha com 7500 quilómetros por 15 de largura e que envolve nada mais nem menos que onze países.
O objectivo também mudou. Pretende-se agora proteger os países costeiros do golfo do Benim contra o avanço do deserto… para sul. Como assim? A realidade, em 2021, é que o Sara já ocupa o Sahel, e que o Sahel já está a invadir o norte desses países, e que a grande muralha demora a sair do discurso e dos papéis para o terreno, onde, aliás, ainda terá de provar uma eficácia que não se verificou de todo com a primeira barragem…
Passo pelo grande oásis de El Golea a caminho do de In Salah, onde acaba o alcatrão. Há muitos troços proibidos ao trânsito, que me obrigam a rolar ao lado da estrada, numa pista que por vezes tem 30 quilómetros de largura. A impressão com que fico é que as areias do deserto não oferecem uma boa estabilidade para a implantação do alcatrão, mas trata-se, como é óbvio, da opinião de um leigo na matéria. Aqui e ali aparecem já buracos, provocados pela passagem dos grandes camiões que atravessam o deserto, carregados de mercadorias e de pessoas que viajam em cima delas. Entre as dunas, nas partes mais baixas do trajecto, a areia, soprada pelo vento, cobre por completo o alcatrão. O combate parece inglório. A estrada avança, é verdade, mas logo o deserto estraga ou engole boa parte do que acabou de ser feito. Uma versão africana e moderna dos trabalhos de Sísifo.
Os usos e costumes mudaram muito desde que saí de Argel. Quase todas as mulheres têm um lenço que lhes cobre a cabeça e, por vezes, uma parte do rosto. Os homens vestem a clássica jilaba, em tons bege ou cinzento-claro, às riscas verticais, que os cobre dos pés à cabeça, à volta da qual enrolam um chéche, um turbante que pode ter vários metros de comprimento. Quando está frio, usam o burno, uma espécie de jilaba feita de lã, com um capuz pontiagudo. Ao contrário do que acontecia em Argel, os que falam francês respondem-me nesta língua sem qualquer objecção. Os tuaregues são facilmente reconhecíveis. Normal- mente, são muito altos, têm um porte senhoril e vestem-se em tons de azul. O chéche também é azul, o que levou muitos viajantes do século XIX a chamar-lhes «os homens azuis» do deserto. Tal como nos árabes, uma das voltas do chéche passa por baixo do queixo. Quando são apanhados por um dos ventos de areia que assolam o Sara, essa volta é puxada para cima e cobre-lhes a boca e o nariz, deixando visíveis apenas os olhos. Das antigas formas de vida dos tuaregues pouco resta. As caravanas de camelos, rodeadas de mistério e de silêncio, e carregadas de mercadorias, que pareciam vir de parte nenhuma a caminho de nenhures, foram vencidas pelos camiões.
Ao mesmo tempo, os governos levantam tantos obstáculos quanto podem à sua vida de nómadas, de modo a tentar fixá-los, para melhor os controlarem. A primeira grande revolta organizada contra o poder central na Argélia independente foi precisamente a dos tuaregues. Pode ser considerada como o primeiro passo que levou ao aparecimento do Boko Haram, cujas atrocidades têm martirizado o Sahel nos últimos anos, apesar da presença de forças armadas da ONU, da França e também de Portugal. A sul de In Salah encontro o posto avançado dos Serviços de Engenharia do Exército argelino. Grandes tendas de lona camufladas em tons claros, máquinas pesadas, camiões em movimento e muitos homens de tronco nu. Paro e começo a fazer perguntas. Os soldados encaminham-me para um oficial, que me olha desconfiado e me pede o passaporte. O interrogatório continua, mas em sentido inverso. Quem sou eu? Que estou ali a fazer? E porque faço perguntas? O francês do oficial é muito bom e a sua severidade ainda maior. Afasto de imediato a minha curiosidade sobre as dificuldades que o projecto está a encontrar, e limito-me, humildemente, a querer saber quando é que está prevista a chegada da estrada a Tamanrasset. A resposta recorda-me os horários dos comboios espanhóis da minha infância:
— Chega quando chegar!
Só chegaria um ano e meio mais tarde, em Junho de 1978.
Em teoria, no rudimentar parque de campismo de Tamanrasset, o grande oásis do Sara Central, há água durante uma hora, todas as manhãs. Um luxo para quem vem do deserto. O parque está cheio de velhas carrinhas Peugeot 404, reputadas pela sua robustez. São carros comprados em França pelos chamados «traficantes de automóveis», que atravessam o deserto com eles, em caravana, geralmente apoiados por um camião. Depois vendem as carrinhas e todas as peças sobresselentes que trouxeram nos países do Sahel ou nos da costa do golfo da Guiné. Não é difícil encontrar gente menos boçal e arrogante, tanto em França como em África. Vou consagrar-lhes um parágrafo na reportagem, na medida em que são os únicos viajantes com quem falei a olhar com maus olhos a perspectiva da conclusão da estrada.
Para celebrar a chegada ao oásis, que marca sensivelmente o meio da travessia do Sara, decido ir jantar ao único hotel-restaurante de Tamanrasset. Lavo a cara, sacudo as calças e as botas de lona, mudo de camisa, e aí vou eu. Foi um jantar notável, num décor original. A sala e as mesas de fórmica sem toalhas são vagamente iluminadas por umas lâmpadas dependuradas do tecto, cuja luminosidade varia consoante o humor de um gerador que se ouve lá ao longe. Somos três clientes, um casal que fala uma língua que não consigo situar, talvez da Europa de Leste, e eu. O menu começa com uma sopa (esparguete a nadar na água em que foi cozido), continua com esparguete ao natural e acaba com uma sobremesa que recorda vagamente a nossa aletria — esparguete mergulhado em leite açucarado, mas sem canela. Rego o banquete com uma Fanta de laranja, pago uma fortuna e vou deitar-me, com um suspiro resignado, ao lado das minhas fiéis latas de conservas.
Não há lojas nem mercado em Tamanrasset e é com agrado que, na manhã seguinte, compro uns pães ázimos, espalmados, do tamanho de um prato de sobremesa, a um padeiro ambulante que aparece no camping com um burro carregado deles. Sempre fui um grande apreciador de pão e a visita do padeiro é, por enquanto, a única boa novidade em Tamanrasset. Em contrapartida, a má, muito má notícia, é que não há gasóleo na estação de serviço e que o dono não sabe quando chegará o camião-cisterna.
A próxima etapa, até Agadez, já no Níger, são 900 quilómetros de pista particularmente dura, com grandes ex- tensões de areia mole ou fech-fech, uma poeira fina, que recorda o pó de talco, onde os carros se enterram até ao chassis. Vou ter de fazer o percurso quase sempre com a tracção permanente às quatro rodas e muitas vezes com as redutoras, o que aumenta o consumo exponencialmente. Como estou sozinho e viajo num jipe isolado, não posso correr o risco de passar o tempo a atascar o carro. Da única vez, até agora, que isso me aconteceu, demorei duas muito cansativas horas a resolver o problema. Só me resta esperar pela chegada do gasóleo.
No camping está instalada uma família de ingleses, um casal com dois filhos adolescentes. Chegaram num Land Rover, que se avariou, e enquanto o mecânico local não o repara, fazem-me uma proposta atraente. Dão-me um jerricã com 20 litros de gasóleo a troco de os levar até à ermida do padre Foucauld (onde eu já tinha planeado ir, antes do contratempo do combustível). A célebre ermida fica no Assekrem, um alto planalto com quase 3000 metros de altitude, situado a cerca de 100 quilómetros para nordeste, no maciço do Hoggar. Embora sempre a subir, a pista não é má durante os primeiros 80 quilómetros. O problema são os últimos 20, quando a pista se empina, literalmente, antes da última subida, a pique, que só pode ser feita em primeira, com redutoras e, ainda assim, com o motor a protestar. A quem quiser levar um murro de espantosa beleza no estômago, aconselho vivamente a visita ao Assekrem e que contemple os espigões rochosos que se avistam a partir da modesta ermida de Foucauld. Tudo ali é extraordinário, desde a paisagem à vida e morte de um homem que tinha abdicado dos sermões e pregava pelo exemplo, enquanto estudava os usos e costumes dos povos do Sara Central. É ele o autor do primeiro dicionário tuaregue-francês, e é a ele que se deve o estudo do léxico, da gramática e da cultura do povo tuaregue. A viagem de ida e volta custa-me o dobro do gasóleo dado pelos ingleses, mas valeu a pena, sem sombra de dúvida.
Notas
1 L’Afrique noire est mal partie, Paris, Seuil, 1962.
2 Como os governos africanos eram avessos, ainda mais do que hoje, à presença de jornalistas estrangeiros, o meu passaporte indicava que eu era professor, profissão inócua e até respeitável, em África.
3 Em 2020/21, durante a pandemia da COVID-19, a Espanha e Marrocos fecharam a fronteira de Ceuta e de Melilla. O fim desse «contrabando institucionalizado» atirou milhares de marroquinos para a miséria e desencadeou grandes manifestações no Norte de Marrocos.
4 Contrato de co-produção com a RTP2 com a participação do Instituto Português do Cinema para a realização de uma série de treze grandes reportagens na África Ocidental, entre Janeiro e Agosto de 1980.
5 Polisário é o acrónimo, em espanhol, de Frente Popular de Liberación de Saguia el Hamra y Río de Oro.
6 Fretilin — Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente, que lutou contra a Indonésia e pela independência de Timor-Leste entre 1975 e 1998.
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