Tão arrojadinha, tão sem medo
Como um gato. A Isora vomitava como um gato. Hukuhu-kuhuku e o vómito precipitava-se para dentro da sanita para ser absorvido pela imensidão do subsolo da ilha. Fazia-o duas, três, quatro vezes por semana. Dizia-me dói-me tanto aqui, e apontava para si própria, para o centro do tronco, mesmo no estômago, com o seu dedo gordo e moreno, com a sua unha como se tivesse sido roída por uma cabra, e vomitava como quem lava os dentes. Puxava o autoclismo, baixava a tampa e com a manga da camisola, uma camisola quase sempre branca com um estampado de melancias com pevides pretas, secava os lábios e continuava. Ela continuava sempre.
Antes nunca o fazia à minha frente. Lembro-me do dia em que a vi vomitar pela primeira vez. Estávamos na festa de final de ano, na escola, e havia muita comida. De manhã, colocámo-la em cima das mesas da sala de aula, todas juntas, com toalhinhas de papel de festa de anos por cima. Havia batatas fritas munchitos, palitos de queijo risketos, gomas em forma de minhoca, conguitos, barquilhos cor-de-rosa cubanitos, sandes em pão de forma, rosquetes (1) de limão, suspiros, refrigerantes tipo fanta, clipper e sevenápe, suminho de ananás, suminho de maçã. Eu e a Isora brincávamos aos bêbedos dentro da sala e andávamos aos tombos agarradas aos ombros uma da outra, como se fôssemos dois maridos que tinham posto os cornos às mulheres e agora se arrependiam.
A festa acabou e chegámos à cantina e ainda havia mais comida. As cozinheiras prepararam-nos batatas com costeletas, maçaroca e mojo (2), a comida preferida da Isora. E quando passámos com o nosso tabuleirinho de metal, com o nosso guarda-napinho, o nosso copinho de água do poço (que suspeitávamos ser da torneira, apesar de esta não se poder beber na ilha) e os nossos talheres e os nossos iogurtes Celgán, as professoras que estavam na cantina perguntaram-nos se era mojo vermelho ou mojo verde e a Isora respondeu que era mojo vermelho, e eu pensei como é arrojadinha, mojo vermelho, e não tem medo de que seja picante, não tem medo de comer coisas de adultos, eu também quero ser como ela, tão arrojadinha, tão sem medo.
Sentámo-nos à mesa e começámos a comer a uma velocidade parecida àquela com que os rapazes se lançavam em cima das tábuas na encosta durante as festas de San Andrés (3). Não havia pneus no final da descida. Os jorros de mojo a deslizarem pelos nossos queixos, as tranças oleosas por metermos o cabelo dentro do prato, os dentes cheios de pedaços de milho e de orégãos, caganitas de pomba branca, como chamava a Isora à comida entre os dentes. E enquanto engolíamos eu já sentia uma tristeza como um estrondo, uma agonia na boca do estômago, a boca seca como se tivesse comido leite em pó misturado com gofio (4) e açúcar. No verão não íamos poder sair do bairro, a praia ficava longe. Não éramos como as outras meninas que viviam no centro da aldeia, nós vivíamos no meio do monte.
A Isora levantou-se da cadeira e disse-me shit, vamos à casa de banho.
Eu levantei-me e segui-a.
Tê-la-ia seguido à casa de banho, à boca do vulcão, ter-me-ia assomado com ela até ver o fogo adormecido, até sentir o fogo adormecido do vulcão dentro do meu corpo.
E segui-a, mas não fomos à casa de banho da cantina, antes à do segundo andar, onde não havia ninguém, onde diziam que vivia uma menina fantasma que comia os cagalhotos das raparigas que copiavam nos trabalhos de casa.
Fiz xixi e afastei-me para que a Isora também fizesse. Fê-lo e, depois de subir as calças, depois de ver a sua pachacha peluda como um feto a abrir-se no chão do monte, debruçou-se sobre a parte branca da sanita, esticou os dedos indicador e médio e meteu-os na boca. Nunca tinha visto nada assim. Porém, na verdade nessa ocasião também não o vi. Virei-me para o espelho. Ouvi-a tossir como um animalzinho pequeno e desnutrido, vi os meus olhos grandes, dois punhos refletidos no vidro. A minha cara assustada, um medo que me mordia a pele por dentro, a garganta da Isora que se queimava e eu sem fazer nada.
Ouvi o vómito.
Na minha cabeça imaginei o seu fiozinho de Nossa Senhora da Candelária pendurado do seu pescoço, pendurado sobre a água que depois arrastaria tudo o que tinha vomitado.
Só um niquinho
Dona Carmen, você faz sopa magi, a de pacote?, perguntou a Isora à velha. Não, minha riqueza, porquê? A minha avó diz que a sopa magi é sopa de putas. Ah, riqueza, pois não sei. Eu a sopa que faço, faço-a com as galinhas que tenho. A dona Carmen tinha perdido o juízo, mas era boa pessoa. Toda a gente a desprezava, porque, como dizia a avó, tinha um parafuso a menos. A dona Carmen esquecia-se de quase todas as coisas, passava longas horas a caminhar e a repetir rezas que ninguém conhecia, tinha um cão com os dentes de baixo saídos para fora, saídos para fora como os de um camelo. Seu rafeiro, maldito sejas, sai daqui e vai para o diabo que te leve, dizia-lhe. Umas vezes punha a mão na sua cabeça com carinho, outras gritava-lhe xô, xô, cão dos diabos, andor daqui pra fora. A dona Carmen esquecia-se de quase tudo, mas era uma mulher generosa. Gostava das visitas da Isora. Vivia por baixo da igreja, numa casinha de pedras pintadas de branco com a porta pintada de verde e as telhas velhas e cheias de musgo e de lagartos e de lonas de sapatos velhos trazidos de Caracas, Venezuela, e de verodes (5) grandes como arvorezinhas. A dona Carmen esquecia-se de tudo menos de descascar as batatas, disso ela percebia, descascava-as em círculos, punha-as a um canto e com uma faca com o cabo de madeira tirava-lhes a casca como se fosse um colar enorme. A dona Carmen fazia batatas fritas com ovos para o lanche. A Isora levava as batatas e os ovos da venda da avó e ela guardava um bocadinho para o lanche da Isora. Guardava um bocadinho para o lanche da Isora e se eu estivesse com ela também me dava. Dava-me, mas a dona Carmen não gostava tanto de mim como gostava da Isora, isso eu já sabia. A Isora sabia falar com as velhas. Eu limitava-me a ouvir o que diziam umas às outras. Vocês querem um niquinho de café, riquezas? Não me deixam beber café, respondi-lhe. Eu sim, um niquinho, disse a Isora. Só um niquinho. Ela queria sempre só um niquinho. Provava tudo. Uma vez comeu a comida de cão que havia na venda para descobrir qual era o sabor. Ela provava tudo e depois, se fosse necessário, vomitava-o. Eu tinha medo de que os meus pais cheirassem o café da minha boca e me castigassem, mas a Isora nunca tinha medo. Não tinha medo mesmo quando a avó ameaçava dar-lhe uma carga de porrada. Ela pensava que a vida era só uma e que era preciso provar um niquinho sempre que fosse possível. E um niquinho de anis, tesouro? Só um niquinho. Só um niquinho. Só um niquinho, dizia.
A Isora tomou a gotinha de café que lhe restava na chávena da qual a dona Carmen estava a beber e, sem rodeios, esticou o braço para pegar no copinho onde a velha tinha servido anís del mono. A Isora arrotou, arrotou cerca de cinco vezes seguidas. E depois bocejou. E, nesse momento, a dona Carmen agarrou-a pelo queixo e olhou-a fixamente, olhou aqueles olhos verdes como uvas verdes. Esgaravatava nos seus olhos lacrimosos como quem tira água de uma galeria subterrânea. A velha ficou assustada: por acaso sabes se alguém tem inveja de ti, riqueza? A Isora permaneceu imóvel. Porquê, dona Carmen? O que é que se passou? Lançaram-te mau-olhado, riqueza. Por amor de Deus, vai à casa da Eufracia pra que ela te benza. Tens de dizê-lo à tua avó, pois ela sabe destas coisas, e ela que te leve pra te fazerem a reza.
Ao sair pela porta vi que estava a dar a novela das cinco. A essa hora do dia, uma camada enorme de nuvens pousava sobre os telhados das casas do bairro. Já não davam Pasión de gavilanes, agora estavam a dar La mujer en el espejo. A protagonista era a mesma mulher que fazia de Gimena na Pasión, mas eu e a Isora não gostávamos assim tanto dela. Estávamos em junho, ainda não tinham posto as bandeirolas coloridas das festas no bairro e faltava muito tempo para as porem. Da janela da pequena entrada da dona Carmen era possível ver o mar e o céu. O mar e o céu que pareciam a mesma coisa, a mesma massa cinzenta e espessa de sempre. Estávamos em junho, mas podia ter sido em qualquer outro mês do ano, em qualquer outra parte do mundo. Podia ter sido uma aldeia num monte do Norte da Inglaterra, um lugar no qual quase nunca se visse o céu aberto e azul, azul, um lugar em que o sol fosse antes uma recordação longínqua. Estávamos em junho e as aulas tinham terminado há apenas um dia, mas eu já estava a sentir esse esgotamento imenso, essa tristeza de nuvens baixas sobre a cabeça. Não parecia verão. O meu pai trabalhava na construção e a minha mãe a limpar hotéis. Trabalhavam no Sul e às vezes a minha mãe também ia limpar as casas de férias do bairro, mesmo ao lado da minha casa, em El Paso del Burro. Saíam cedo para o Sul e regressavam tarde. Eu e a Isora ficávamos encerradas num conjunto de casas, pinheiros e ruas íngremes no cimo da aldeia. Estávamos em junho e eu já sentia a tristeza. E, agora, agora também o medo.
Quando saímos pela porta da dona Carmen parecia-me ter um verme a rastejar na minha garganta. Esse verme preto dizia-me que alguma vez eu tinha invejado a Isora. Gostava da cor do seu cabelo e da dos seus braços. Gostava da sua letra. Ela fazia uns g com uma cauda gigante que não deixava que se entendesse o que se dizia na linha de baixo. Gostava dos seus olhos e de tantas outras coisas. Invejava-a pela forma como falava aos adultos. Era capaz de interromper as conversas e de dizer não, a Moreiva é filha da Gloria, a da esquina, não da outra Gloria. Invejava-a pelas suas maminhas redondas e macias como duas gominhas cobertas de açúcar branco, embora a ela não lhe agradassem. E porque já tinha o período e porque tinha pelos na pachacha. A Isora tinha um bosque de pelo duro e pontiagudo, como a relva falsa das casas de férias. Invejava-a pelo seu cartucho de jogos para o gaimebói, que um primo em segundo grau que era informático e que vivia em Santa Cruz lhe pirateara. Invejava-a porque o cartucho tinha o jogo do Hamtaro e eu adorava o jogo do Hamtaro.
A Isora não tinha mãe. Vivia com a sua tia Chuchi e com a sua avó Chela, a dona da venda do bairro. De que não tivesse mãe, disso eu não tinha inveja, para ser sincera. De que não tivesse mãe e de que tomassem conta dela a tia e a avó, não tinha inveja. Do que eu tinha medo, para ser sincera, era de que lhe dissessem que lhe lancei o mau-olhado. A Chela, a avó da Isora, era uma mulher que acreditava muito nessas coisas. Se se convencesse de que eu tinha feito isso à neta, rachava-me a cabeça. A avó da Isora era uma mulher gorda e bigoduda. Gorda e bigoduda e arruaceira. Na verdade, chamava-se Graciela, mas toda a gente a tratava por a Chela da venda. Era muito religiosa, mas muito desbocada. E por ser tão religiosa também a tratavam por Chela, a santa. Chela, a santa, porque dedicava todo o tempo que tinha livre, que era muito pouco, a rezar e a falar com o padre e a decorar a igreja com jarros e fetos que cortava da parte de fora da casa, e com cravos-de-amor, cravos-de-amor como penugem branca a cair do céu. Depois, por outro lado, a avó da Isora adorava contar a todas as meninas coisas sobre a gordura. Ou antes, sobre a magreza. Para ser magra é preciso comer de um prato mais pequeno, dizia, e para ser magra é preciso comer menos batatas fritas, e uma batata frita é como comer duas batatas guisadas, e o que essas grandessíssimas putas têm de fazer é deixar de comer tanta guloseima, e o que eu vou dar a esta cachopa é uma coça pra que deixe de comer merdas, e eu meto a cachopa a fazer dieta porque já está a ficar badocha, e se eu a deixar ela fica um batoque, e toca de comer gomas e incha como um animal, e toca de comer e depois fica com caganeira e passa três dias na casa de banho como as poupas (6), e toca de comer e depois ouço-a a vomitar-se, a filha da mãe vomita-se toda e fica com caganeira, e come e caga e vomita-se e depois dá-lhe nos imódiuns como se fossem gomas, e come e caga e caga e caga e vomita-se como um animal e quando não consegue arriar o calhau não lhe cabe nem uma palha pelo befe e põe os supositórios pra cagar outra vez. E vai-me ficar doente, vai-me ficar doente de tanto comer, esta cachopa, maldita seja.
A Isora odiava a avó com todas as suas forças. Uma vez na escola aprendeu que bitch significava puta, e desde então sempre que a avó lhe dizia leva os ovos e as batatas à dona Carmen, cobra à mulher, leva duas caixas de coxas de frango à rapariga, quatro pães, duzentoscinquenta gramas de queijo de cabra, põe um pedaço de doce de goiaba à rapariga, um saco de batatas, vai lá abaixo e traz-lhe camarões, ao estrangeiro faz-lhe tu a conta, que sabes falar inglês, eu só falo a língua de cá, a Isora respondia-lhe está bem, bitch, já vou, bitch, tudo bem, bitch, é o que tu quiseres, bitch, obrigada, bitch, mais alguma coisinha, bitch? E a avó fitava-a como que desconfiada, mas a Isora dizia-lhe que bitch significava avó em inglês.
Na venda também trabalhava a Chuchi. A Chuchi, a tia da Isora, a segunda filha da Chela. Toda a gente chamava Chuchi à Chuchi, mas ninguém sabia como é que se chamava mesmo. A Chuchi tinha os olhos verdes como a Isora, mas com manchas de café derramadas no branco. Como de café no fundo da chávena. A Chuchi era alta, magra, de pernas compridas, enxuta, seca. Não era nada parecida com a Isora a não ser nos olhos. Nunca ninguém a tinha visto com um namorado e não tinha filhos. A Chuchi também costumava estar muito na igreja, mas o seu sonho não era ser santa, como a mãe, antes vendedora. Durante algum tempo andou a vender maquilhagem e cremes para a cara e champôs para o cabelo e sabonetes para o corpo às vizinhas do bairro. Andava com a sua roupa de secretária, com um casaco verde, como os seus olhos verdes, e uma saia verde, como os olhos verdes da Isora, e umas botas castanhas de salto quadrado e uma pasta com as revistas da Avon nas quais mostrava os produtos, casa por casa. A mãe dizia a toda a gente que a filha se estava a desgraçar, pois andava a exibir-se com pouca roupa o dia inteiro de um lado para o outro.
Subimos pela estrada até passarmos em frente da venda. A Isora não parou para dizer uma palavra à avó. Pra onde é que vocês vão? Andam sempre na boa-vai-ela?, gritou-nos a Chela com o balcão cheio de gente. A única coisa que fazem é andar por aí a meter o bedelho! A Isora continuou a subir a encosta como se nada fosse. Eu segui-a e olhei para a Chela e para a Chuchi. A Chuchi cortava enchidos com a cabeça baixa, a ouvir as lamúrias da Chela, como se tivesse um peso na ponta do pescoço, como se tivesse um francelho pousado nos ossos das costas, que era a presença pesada da mãe. Vamos à da Eufracia pra ela me benzer sem que a bitch dê por isso, disse-me a Isora. E novamente o verme preto. Eu sabia muito pouco sobre o mau-olhado. Sabia que aos bebés, que estão vermelhos e carecas e feios e sem dentes e com a cabeça cheia de crostas, lhes punham um lacinho vermelho no carrinho porque as mães e as avós tinham medos. Medos, dizia a avó, do mau-olhado. Se as pessoas fitavam os bebés durante muito tempo ou lhes diziam coisas carinhosas, como que menina tão bonita, Deus a proteja, Deus a proteja, quanto tempo tem, que bonita, as mães e as avós ficavam mais esticadas do que o pernil de um morto. Quando a avó via um bebé recém-nascido, a primeira coisa que fazia era fazer-lhe o sinal da cruz e repetir-lhe Deus o proteja e o abençoe dos pés à barriga. Dos pés à barriga e daí para cima nada, pensava eu. Então eu achava que o mau-olhado era lançado naquela parte do corpo, na zona da pachacha e do rabo e dos pelos das pernas, que eu queria que a minha mãe me depilasse e ela não me depilava. Eu e a Isora fazíamos muitas coisas naquela parte do corpo, a dos pés à barriga. Sobretudo na zona da pachacha. Então talvez o mau-olhado tivesse a ver com isso. Mas calei-me e não o disse, calei-me e continuámos a andar.
Notas:
- Os rosquetes são um doce típico das Canárias, com a forma de rosquinhas e com aromas cítricos. Podem ser secos ou húmidos e duros ou fofos. (N. dos T.)
- Molho típico das Canárias, que pode ser suave ou picón (picante) e verde ou vermelho. (N. dos T.)
- As Tablas de San Andrés são uma festa tradicional de Tenerife celebrada nos concelhos de Icod de los Vinos, onde decorre o romance, e de La Guancha na véspera do dia de Santo André. Consiste em descer numa tábua por uma encosta íngreme. (N. dos T.)
- Farinha não peneirada de cereais torrados, geralmente de trigo ou de milho. É originária dos guanches, os primeiros povoadores das ilhas Canárias. (N. dos T.)
- Arbusto endémico das ilhas Canárias. O seu nome científico é Kleinia neriifolia. (N. dos T.)
- Upupa epops. Aves migratórias que recolhem grandes quantidades de fezes nos seus ninhos para, com o cheiro, se protegerem dos seus predadores. (N. dos T.)
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