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4 de dezembro de 2017

Esta manhã, Nina olhou-me sem me ver. O olhar deslizou como as gotas de chuva sobre o meu impermeável, segundos antes de ela desaparecer num canil.

Chovia se Deus a dava.

Vislumbrei a sua palidez e os cabelos negros sob o capuz do oleado. Trazia galochas demasiado grandes e tinha na mão uma mangueira comprida de rega. Só de a ver, senti uma espécie de descarga elétrica no ventre, quinhentos mil volts no mínimo.

Entreguei trinta quilos de ração. Faço isto todos os meses, mas nunca entro no abrigo. Ouço os cães, mas não os vejo. Exceto quando algum voluntário passa por mim com um deles, que leva a passear.

As sacas alinhadas umas ao lado das outras diante dos portões de entrada. Um empregado, sempre o mesmo, um tipo alto e mal escanhoado, ajuda-me a transportar os meus prémios de consolação até debaixo das inscrições ABANDONAR MATA e POR FAVOR, FECHE BEM A PORTA AO SAIR.

Todos os anos, por altura do Natal e antes das férias de verão, mas nunca no mesmo dia, deixo dinheiro na caixa de correio do abrigo. Dinheiro anónimo, com NINA BEAU escrito a caneta de feltro preta no envelope. Não quero que saiba que este dinheiro é meu. Não o faço pelos animais, faço-o por ela. Bem sei que se irá todo em comida e cuidados veterinários, mas quero que passe por ela sem deixar vestígios. Só para que saiba que cá fora não há apenas humanos que metem gatinhos em caixotes do lixo.

Há trinta e um anos, ela olhou para mim sem me ver, tal como esta manhã. Estava a sair da casa de banho dos homens, tinha dez anos. Na das mulheres havia uma fila enorme, e já nessa altura Nina não gostava de esperar.

O seu olhar deslizou sobre mim e ela fundiu-se nos braços de Étienne.

Estávamos no Progrès, o bar e tabacaria dos pais de Laurence Villard. Era uma tarde de domingo. O estabelecimento encontrava-se encerrado e as grades estavam baixadas. Tinham reservado o espaço para a festa de aniversário da filha. Recordo-me das cadeiras viradas ao contrário sobre as mesas, de pernas para o ar, umas em cima das outras. De uma pista de dança improvisada entre uma máquina de flippers e o balcão. De presentes desventrados sobre este, ao lado de batatas fritas de pacote e de bolachas Choco BN, de palhinhas amarelas em copos de cartão cheios de Oasis e limonada.

Estava lá a turma toda do 5.o ano. Eu não conhecia ninguém. Tinha acabado de chegar a La Comelle, pequena cidade operária do centro de França com cerca de doze mil almas.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Nina Beau. Étienne Beaulieu. Adrien Bobin.

Observei o triplo reflexo nos espelhos embutidos por trás do balcão. Tinham nomes antiquados, de antepassados. A maior parte de nós chamava-se Aurélien, Nadège ou Mickaël.

Nina, Étienne e Adrien acabavam de entrar numa infância de inseparáveis. Naquele dia e em todos os restantes dias, não me viram.

Nina e Étienne dançaram ao som de Take on Me do grupo a-ha toda a tarde. Um maxi-single de 45 rotações. Um trecho de vinte minutos. Os miúdos da minha turma fizeram-no girar no prato como se não tivessem mais discos.

Nina e Étienne dançaram como pessoas grandes. Como se tivessem feito aquilo a vida toda. Foi o que disse a mim mesma, enquanto os observava. À luz estroboscópica, pareciam duas aves marinhas cujas asas se abrem à noite, quando há muito vento. Quando só um farol longínquo ilumina as asas e a graciosidade.

Adrien manteve-se sentado no chão, de costas contra a parede, não muito longe deles. Quando Cyndi Lauper começou a cantar True Colors, ergueu-se para convidar Nina a dançar o slow.

Étienne passou de raspão por mim. Nunca esquecerei o seu cheiro a vetiver e açúcar.

*

Vivo sozinha na zona alta de La Comelle, ainda que não seja muito alta: o campo é só um pouco em vale. Fui embora e depois regressei, porque aqui conheço o barulho das coisas, os vizinhos, os dias em que há sol, as duas ruas principais e os corredores do supermercado onde faço as compras semanais. Desde há uma dezena de anos que o preço por metro quadrado é irrisório. Só falta darem os terrenos. Por isso, comprei uma casinha por meia dúzia de tostões, que restaurei. Quatro assoalhadas e um jardim com uma tília que dá sombra no verão e chás no inverno.

Aqui, as pessoas debandam. Menos Nina.

Étienne e Adrien partiram, voltam no Natal, tornam a partir.

Eu trabalho em casa, por vezes revejo ou traduzo manuscritos para editoras. E para manter uma ligação social à vida daqui, substituo em agosto e dezembro o redator pago à linha do jornal regional. No verão, cubro os obituários, as bodas e os concursos de bisca. No inverno, é parecido. Mais os espetáculos infantis e os mercados de Natal.

A tradução e a revisão são restos da minha vida de outrora.

Há as lembranças, o presente e as nossas vidas anteriores que mudam de cheiro. Quando se muda de vida, muda-se de cheiro.

A infância tem o do alcatrão, de uma câmara de ar e do algodão-doce, do desinfetante das salas de aula, das chaminés das lareiras que exalam o hálito das casas nos dias de frio, do cloro das piscinas municipais, da transpiração agarrada à roupa nas filas dois a dois à saída do ginásio, das pastilhas elásticas na boca, da cola que faz fios nos dedos, das gomas entaladas entre os dentes, de uma árvore de Natal plantada no coração.

A adolescência tem o odor da primeira passa, de um desodorizante almiscarado, de uma fatia de pão com manteiga numa caneca de chocolate quente, do uísque-cola e das caves transformadas em salas de baile, do corpo que deseja, da água-de-colónia, do gel para o cabelo, do champô de ovo, do batom, de restos de detergente numas calças de ganga.

As vidas posteriores, aquela da écharpe esquecida pelo seu primeiro desgosto amoroso.

E depois há o verão. O verão pertence a todas as lembranças. É intemporal. É o seu cheiro que é o mais duradouro. Que se agarra às roupas. Que se busca toda a vida. Os frutos mais doces, a brisa marítima, as bolas de Berlim, o café escuro, o protetor solar, o pó de arroz das avós. O verão pertence a todas as idades. Não há infância nem adolescência. O verão é um anjo.

Sou alta e magra, ainda que bem-proporcionada. Franja, cabelo de comprimento médio, castanho-escuro. Alguns fios brancos na trunfa, que disfarço com rímel castanho.

Chamo-me Virginie. Tenho a mesma idade que eles.

Hoje em dia, dos três, só Adrien me fala ainda.

Nina despreza-me.

Quanto a Étienne, sou eu que já não quero saber dele.

Contudo, fascinam-me desde a infância. Nunca me senti tão ligada a alguém como àqueles três.

E a Louise.

2

5 de julho de 1987

Tudo começa com uma dor de barriga depois da sanduíche e das batatas fritas ensopadas em ketchup. Nina está sentada debaixo de um guarda-sol da Miko, diante do vendedor de batatas fritas. Há algumas mesas coloridas de ferro, uma esplanada sobre as três piscinas do complexo municipal. Enquanto lambe os grãos de sal da ponta dos dedos, Nina ouve La Isla Bonita de Madonna e observa sonhadoramente um loiro de pele bronzeada que salta da prancha dos cinco metros. Passa os dedos pelo fundo da embalagem vazia, para apanhar os restos que ficaram presos entre as ranhuras do plástico. Étienne baloiça-se na cadeira enquanto dá pequenos goles no seu refresco de morango e Adrien trinca um pêssego demasiado maduro, que escorre e o deixa com sumo por todo o lado, nas mãos, na boca, nas coxas.

Nina olha com frequência para Étienne e Adrien. Nunca o faz de soslaio. Pousa os olhos numa parte dos corpos deles e já não os retira. Isso deixa Étienne pouco à vontade, e este diz-lhe muitas vezes: «Para de olhar assim para mim.» Adrien parece gozar a cena, ela é assim, a Nina, não tem freio.

De novo as agulhas no ventre, depois um líquido quente que lhe escorre entre as coxas. Nina percebe. Não já. Demasiado nova. Não tem vontade. Onze anos daí a quinze dias... Ela achava que a tinham depois. Entre o 7.o e o 9.o anos. Vai começar o 6.o dentro de dois meses... Que vergonha, se as outras raparigas sabem que sou menstruada, vão pensar que sou repetente.

Levanta-se, envolve-se numa pequena toalha áspera mas que basta para lhe cobrir as ancas. É muito estreita. «Um palito», diz-lhe muitas vezes Étienne, para a aborrecer. Ela devolve-lhe o walkman sem dizer palavra, dirige-se para o vestiário feminino. Habitualmente, usa o masculino, para que seja mais rápido despir-se e vestir-se na cabina.

Étienne e Adrien deixam-se ficar na esplanada. Nina desapareceu como uma bala, sem lhes dirigir palavra. Aqueles três nunca se separam sem dizerem aonde vão.

— O que é que lhe deu? — pergunta Étienne com a palhinha entalada na comissura dos lábios.

Adrien repara que o refresco lhe deixou a língua cor-de-rosa.

— Não faço a mínima — diz ele. — Talvez a asma.

Nesse dia, Nina não regressa à esplanada. Uma mancha castanha no fato de banho. Muda rapidamente de roupa, enfia uma bola de papel higiénico nas cuecas. Como um inchaço entre as coxas. Passa pela Petite Coopérative para comprar pensos higiénicos com o troco das batatas fritas. Uma embalagem de dez. Os mais baratos.

Quando chega a casa, a cadela Paola observa-a com um ar esquisito, enquanto abana a cauda. Ergue o nariz e vira-lhe as costas, para ir ter com Pierre Beau, o avô de Nina, a trabalhar no jardim. Ele não a viu entrar. Ela fecha-se no quarto, no piso de cima.

Está muito calor. Nina queria estar com Étienne e Adrien na cova. É a piscina mais profunda: quatro metros. Encimam-na três pranchas de mergulho: a um metro, a três metros e a cinco metros. A água da cova é demasiado profunda para aquecer. O desafio diário é ir tocar o fundo gelado, depois de saltar.

À noite, Étienne telefona a Nina. Nesse momento, Adrien tenta também ligar-lhe, mas a linha está ocupada.

— Porque é que te foste embora sem dizeres nada, esta tarde?

Ela hesita na resposta. Pensa numa mentira. Para quê?

— Apareceu-me o período.

Para Étienne, o período só aparece às raparigas que têm seios, pelos, às mães, às mulheres casadas. Não a Nina. Étienne faz coleção de cromos da Panini e ainda chupa o polegar às escondidas.

Nina é como ele. Já viu as bonecas Barbie alinhadas umas ao lado das outras, no quarto dela.

Depois de um longo silêncio duvidoso, pergunta:

— Disseste ao teu avô?

— Não... Que vergonha.

— O que é que vais fazer?

— O que queres tu que eu faça?

— Se calhar não é normal, com a tua idade.

— Parece que depende das mães. Se a minha o teve com esta idade, é normal. Mas não posso saber.

— Dói-te?

— Iá. Como cólicas. Cólicas depois de uma sopa de cebola nojenta.

— Ainda bem que não sou rapariga.

— Tu vais fazer o serviço militar.

— Talvez... Mas ainda bem, mesmo assim. Vais ao médico?

— Não sei.

— Queres que vamos contigo?

— Talvez. Mas vocês ficam à espera à porta do consultório.

*

Os três tinham-se conhecido dez meses antes, no recreio da Escola Básica Pasteur, no dia do início das aulas do 5.o ano.

É a idade da confusão. A idade em que as crianças deixam de se parecer umas com as outras. Altas e baixas. Puberdade, não puberdade. Algumas têm ar de ter catorze anos, outras, oito.

As duas turmas do 5.o ano estão reunidas no recreio. Perante uns sessenta alunos, a professora, a senhora Bléton, e o professor, o senhor Py, fazem a chamada ao lado um do outro.

É a manhã em que se conhecem os golpes de sorte e os golpes de azar. Em que se aprende a fazer a distinção.

Cada criança reza em silêncio — mesmo aquelas que nunca puseram os pés na catequese — para que seja a senhora Bléton a chamá-la. O professor tem uma reputação terrível. Gerações de antigos alunos traumatizados transmitiram-na aos mais novos. Um refinado estafermo, que não hesita em distribuir chapadas, em erguer do chão uma criança pelos colarinhos, nem em partir cadeiras contra as paredes, quando está com os azeites. E todos os anos escolhe um bode expiatório e não o larga. Geralmente um mau aluno. «Assim, tens todo o interesse em trabalhar, caso contrário, é o teu fim.»

Senhora Bléton, fila da direita. Senhor Py, fila da esquerda. Fazem a chamada por ordem alfabética.

Adivinham-se suspiros de alívio discretos na fila da direita. Algo no porte da cabeça que agradece aos céus, os ombros que se descontraem. E expressões de condenados à morte nos que se juntam à fila da esquerda.

Reina um silêncio de chumbo na Escola Pasteur, nessa manhã. Só as vozes dos dois professores se ouvem sob o telheiro. À vez, são chamados os alunos cujos nomes começam pela letra «A».

Adam Éric, fila da direita.
Antard Sandrine, fila da esquerda.
Antunès Flavio, fila da direita.
Aubagne Julie, fila da esquerda.
Em seguida, vêm os bês.
Beau Nina, fila da esquerda.
Beauclair Nadège, fila da direita.
Beaulieu Étienne, fila da esquerda.
Bisset Aurélien, fila da direita.
Bobin Adrien, fila da esquerda.

É assim que Nina Beau, Étienne Beaulieu e Adrien Bobin são reunidos a 3 de setembro de 1986. Como os dois rapazes parecem paralisados, Nina pega-lhes na mão e arrasta-os para a fila diante do senhor Py. Étienne deixa-se conduzir. Deixar que uma rapariga nos pegue na mão é uma vergonha, mas ele não parece dar-se conta, pois a sentença foi dupla: acaba de ser separado do seu amigo, Aurélien Bisset; e ficou na turma do senhor Py. Na Escola Pasteur, do 1.o ao 4.o anos, todos os alunos encaram aquela última fila direita antes do 6.o ano como um teste. «Caraças, ficaste com o Py, estás feito.»

Aguardam os três, lado a lado, o fim da chamada.

Étienne é bastante mais alto que os outros dois. Tem traços finos, cabelos loiros, a pele clara da criança perfeita desenhada nas gravuras, os olhos de um azul-piscina que marcam quem se cruza com ele.

Adrien é castanho-escuro, cabelo em desalinho, remoinhos indomáveis, muito magro, pele leitosa, de tal forma tímido que parece escondido atrás de si próprio.

Nina possui a graciosidade de um animal selvagem. Sobrancelhas e compridas pestanas negras que circundam uns olhos de ébano. Depois de dois meses de verão, tem a pele castanha.

Por trás dos óculos, o senhor Py observa os seus futuros alunos. Parece satisfeito, sorri e pede-lhes que o sigam para o interior da sala, onde se planta diante do quadro de ardósia.

Três
créditos: Editorial Presença

Livro: "Três"

Autor: Valérie Perrin

Editora: Editorial Presença

Publicação: 3 de março

Preço: € 19,71

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Ainda aquele silêncio medonho. Cada passo, cada gesto, é gelado.

Cada um escolhe a sua carteira ao calhas. Os que se conhecem ficam lado a lado. Étienne empurra discretamente Adrien com um golpe de anca para ficar ao lado de Nina. Adrien aquiesce e ocupa o lugar atrás dela. Observa-a, esquece-se do professor. Perde-se nas duas tranças dela, nos cabelos castanho-escuros nas raízes e aloirados pelo sol nas pontas, os dois elásticos, o risco ao meio, os botões nacarados do vestido vermelho de veludo, a penugem do pescoço. A beleza vista de costas. Ela sente o olhar sobre si e vira-se furtivamente para lhe lançar um sorriso malicioso. Um sorriso que o tranquiliza. Tem uma amiga. Uma colega. Poderá chegar a casa e dizer à mãe: «Fiz uma amiga.» Espera que Nina coma no refeitório, como ele.

— Podem sentar-se.

O senhor Py apresenta-se, escreve o seu nome no quadro. A tensão diminui, no fundo, até tem um ar simpático, quase que sorri, explica as coisas com calma. Talvez tenha mudado, não se diz que os adultos podem ficar melhores com o tempo?

A manhã passa depressa. Distribuição de manuais a forrar ainda nesse dia, e não no dia seguinte.

— Abomino a procrastinação! — exclama o senhor Py enquanto remexe na sua pasta de cabedal.

Prolongado silêncio duvidoso na sala de aula.

— Vejo que não conhecem o significado desta palavra.

O senhor Py levanta-se, apaga o seu nome com uma esponja e escreve no quadro: PROCRASTINAÇÃO: DO VERBO DA PRIMEIRA CONJUGAÇÃO PROCRASTINAR, que sublinha três vezes.

— Quer dizer deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.

Em seguida, pede a cada aluno que se levante na sua vez, diga o seu nome e apelido e indique o seu ponto fraco e o seu ponto forte.

Ninguém reage.

— Ora, ora, estão a dormir de olhos abertos! Vai ser preciso acordar-vos! Pois bem, vou chamar-vos ao acaso.

Aponta para a vizinha de Adrien. Uma loirinha muito pálida. Ela põe-se de pé.

— Chamo-me Caroline Desseigne, o meu ponto forte é a leitura, o meu ponto fraco é ter vertigens...

Caroline enrubesce um pouco e senta-se.

— Seguinte! O teu vizinho — chama Py.

Adrien levanta-se. Tem a cara vermelha e as mãos húmidas. O horror de tomar a palavra diante dos outros.

— Chamo-me Adrien Bobin. O meu ponto forte é a leitura também... O meu ponto fraco... tenho medo de cobras.

Nina levanta a mão. O professor encoraja-a com um aceno de cabeça.

— Chamo-me Nina Beau. O meu ponto forte é o desenho... O meu ponto fraco, a asma.

É a vez de Étienne se pôr de pé.

— Não levantaste a mão! — berra Py.

Silêncio.

— Não faz mal, é o primeiro dia e, em geral, no primeiro dia o meu pé ainda não sente comichões, as férias cansaram-no. Senta-te. Se quiseres falar, ergues a mão. Seguinte!

Étienne senta-se de imediato, com suores frios nas costas. As mãos tremem-lhe.

É meio-dia, a campainha toca em todas as salas. Ninguém ousa mexer-se. O senhor Py pede aos alunos que ainda não se apresentaram que terminem o exercício. Étienne levanta a mão várias vezes para tomar a palavra, mas o professor ignora-o até ao momento em que os manda a todos almoçar.

Ao saírem da sala, Étienne e Adrien esperam por Nina em frente da porta. Como que para reconstituir o grupo. Quando ela se junta a eles, Étienne está despeitado.

— Todos se apresentaram menos eu — geme ele.

— Lembra-me lá de como te chamas — pede Nina.

— Étienne Beaulieu. O meu ponto forte é o desporto, o meu ponto fraco... não sei... sou bastante bom em tudo.

— Não tens nenhum defeito? — pergunta Nina.

— Acho que não.

— Nunca tens medo de nada? — espanta-se Adrien.

— Não.

— Nem mesmo sozinho numa floresta, à noite?

— Acho que não. Não sei. Era preciso experimentar.

Caminham lado a lado em passo de corrida, estão com vinte minutos de atraso para o refeitório.

Nina ao meio, Adrien à direita, Étienne à esquerda.

Aluno: Bobin, Adrien, rua John-Kennedy, 25, 71200 La Comelle, data de nascimento 20 de abril de 1976, em Paris, nacionalidade francesa.
Filiação: Pai – Bobin, Sylvain, rua de Rome, 7, 75017 Paris, bancário, data de nascimento 6 de agosto de 1941, em Paris, nacionalidade francesa;
Mãe – Simoni, Joséphine, rua John-Kennedy, 25, 71200 La Comelle, auxiliar de puericultura, data de nascimento 7 de setembro de 1952, em Clermont-Ferrand, nacionalidade francesa.
Outro responsável legal, morada, profissão, data de nascimento, nacionalidade, telefone da residência, telefone do emprego.
Pessoa a contactar em caso de emergência: Joséphine Simoni, 85 67 90 03.
Aluno: Beaulieu, Étienne, Jean, Joseph, rua do Bois-d’Angland, 7, 71200 La Comelle, data de nascimento 22 de outubro de 1976, em Paray- -le-Monial, nacionalidade francesa.
Irmão: Paul-Émile, 19 anos. Irmã: Louise, 9 anos.
Filiação: Pai – Beaulieu, Marc, rua do Bois d’Angland, 7, 71200 La Comelle, funcionário administrativo em Autun, data de nascimento 13 de novembro de 1941, em Paris, nacionalidade francesa.
Mãe – Beaulieu, nome de solteira Petit, Marie-Laure, rua do Bois d’Angland, 7, 71200 La Comelle, funcionária judicial em Mâcon, data de nascimento 1 de março de 1958, em La Comelle, nacionalidade francesa.
Outro responsável legal, morada, profissão, data de nascimento, nacionalidade, telefone da residência, telefone do emprego.
Pessoa a contactar em caso de emergência: Bernadette Rancoeur (empregada da casa), 85 30 52 11.
Aluno: Beau, Nina, rua das Gagères, 3, 71200 La Comelle, data de nascimento 2 de agosto de 1976, em Colombes, nacionalidade francesa.
Filiação: Pai – Incógnito.
Mãe – Beau, Marion, rua Aubert, 3, 93200 Saint-Denis, profissão desconhecida, data de nascimento 3 de julho de 1958, em La Comelle, nacionalidade francesa.
Outro responsável legal: Pierre Beau (avô), rua das Gagères, 3, 71200 La Comelle, funcionário dos correios, viúvo, data de nascimento 16 de março de 1938, nacionalidade francesa.
Pessoa a contactar em caso de emergência: Pierre Beau, 85 29 87 68.

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5 de dezembro de 2017

Repito mentalmente a informação, várias vezes, sem acreditar deveras nela. Eu, que sou solitária... o que me passou pela cabeça, no dia em que enviei a minha candidatura ao jornal? Um desafio? Uma loucura passageira? Não me interesso nem pelos mexericos, nem pelas passagens à reforma, nem por concursos de petanca. E eis-me na primeira linha. A levar com um tsunâmi mesmo na tromba.

Sem dúvida um acaso infeliz.

O lago da Floresta. Uma antiga pedreira de arenito a sul de La Comelle, na estrada para Autun. Os lençóis subterrâneos que comunicam com o Saône encheram de água uma centena de hectares. Tomávamos muitas vezes banho ali, quando éramos miúdos. Sabíamos que era arriscado, gostávamos de namorar o perigo, mas ainda assim não nos afastávamos muito das margens, por causa dos deslizamentos de terra submarinos que criavam poços de água mortíferos. Poucos de nós se aventuravam até ao meio. Os rapazes, por vezes, para se armarem. E depois havia muitas lendas em torno daquele lago. Contava-se que, de noite, se conseguia ver os fantasmas dos que ali se tinham afogado, que nadavam até à superfície com as suas mortalhas. Pela minha parte, nunca ali me cruzei senão com campistas e latas de cerveja abandonadas. Muitos de nós não nos banhávamos descalços. Eu, quando tinha muito calor, entrava na água sem tirar as sapatilhas. Não era raro haver ferimentos com um vidro ou um pedaço de ferro. Para nadar, eu preferia a piscina municipal. Mas nas noites de verão encontrávamo-nos ali para ouvir música e beber, junto de uma fogueira.

Havia anos que não ia lá.

Com vista a fazerem a reabilitação de uma margem, esvaziaram-no parcialmente pela primeira vez em cinquenta anos. A comuna está a efetuar um estudo de viabilidade para criar ali uma praia de areia com bar de apoio e escorregas. Uma zona que será vigiada por nadadores-salvadores. Pretende-se assim controlar o acampamento selvagem e os banhistas demasiado temerários.

Foi ao esvaziarem a parte ocidental que descobriram um automóvel, na semana passada. Para ter acesso às margens é preciso seguir trilhos sinuosos e estreitos. Em geral, quem vem de automóvel estaciona num parque improvisado entre dois terrenos, a cerca de trezentos metros do acesso principal.

Acabam de identificar a matrícula do salvado, um Twingo roubado no dia 17 de agosto de 1994 em La Comelle. Até aqui, nada de anormal: o ladrão ou ladrões quiseram desembaraçar-se dele. Mas o que intriga os gendarmes é a data corresponder à do desaparecimento de Clotilde Marais.

Dezassete de agosto de 1994. Quando ouvi o responsável do jornal pronunciar esta data, senti o sangue gelar. Perguntei-lhe se não podia enviar alguém da sede, um jornalista mais aguerrido, mas estavam todos de férias e eu encontrava-me no local.

«Há uma investigação em curso, é preciso que vá ao lago o mais depressa possível. Queremos uma fotografia do automóvel e o artigo antes do final do dia...»

Procuro o meu cartão de imprensa no fundo de uma gaveta. Regra geral, não preciso dele. Para redigir um texto sobre a eleição da Miss Petanca nunca mo pedem.

Não gostava da Clotilde Marais. Tinha certamente inveja das suas pernas compridas e afuseladas, que ela enroscava à volta da cintura de Étienne. Tenho esta imagem na cabeça. Ela sentada num murete, ele de pé, aos linguados. Ela de calções, as gâmbias a apertarem-lhe os rins. Ela descalça, vermelho nas unhas, pedicura perfeita. As espartanas douradas dela sobre o passeio. A quinta-essência da feminilidade. Sinto vontade de a empurrar. De ocupar o seu lugar. De ser ela. Claro que não me manifestei. Retomei o meu caminho sem respirar.

Clotilde Marais volatilizou-se no verão dos seus dezoito anos. Quando desapareceu, toda a nossa cidadezinha se afligiu. Porquê partir sem deixar uma explicação, a menor nota? Ao mesmo tempo, isso não me surpreendeu por aí além: era uma rapariga arrogante e reservada, não tinha amigos e andava muitas vezes sozinha.

Sinto vontade de telefonar a Nina, no abrigo, para lhe contar do salvado no lago. Mas nunca o farei. Só uma pulsão súbita que logo refreio.

Quanto a Étienne, nem me atrevo a imaginar o que vai sentir quando souber.