Se esteve atento à Eurovisão, aquilo que leu ou ouviu muito provavelmente veio daqui. Falamos da zona de imprensa do Festival, com quartel-general numa das salas do Pavilhão de Portugal, na Alameda dos Oceanos. Ao todo, números da organização, mais de 1.500 jornalistas de todo o mundo fixaram-se em Lisboa nos últimos dias.
Sim, porque engana-se se pensa que este é um trabalho que começou na primeira semifinal. Aliás, este sábado, se falasse com qualquer jornalista ou repórter de imagem, a primeira coisa que ele lhe iria referir era as horas de sono que deve à cama. Na verdade, em alguns dos casos, bastaria olhar para as suas caras.
Voltando atrás, antes de nos perdermos no cansaço, a grande maioria dos profissionais que acompanhou a Eurovisão esteve sentada — não 24 sobre 24 horas, mas seguramente das 09h00 às 23h00 — nas cadeiras azuis do edifício de Álvaro Siza Vieira — bastante confortáveis até — desde 29 de abril, dia dos primeiros ensaios. A estes seguiram-se duas semanas de mais ensaios, conferências de imprensa, Blue Carpet e espetáculos do júri e das famílias. Até, finalmente, chegar a primeira e segunda semifinal, e este sábado, a final.
Os jornalistas acreditados fazem parte, a grande maioria, de blogs e sites nacionais de fãs da Eurovisão (já ouviu falar do WiwiBloggs ou da ESC Portugal?). Por isso, talvez não seja exagero dizer que esta é uma das salas de imprensa menos profissionais. No sentido oficial, não do trabalho que desempenham (muito mais detalhado e exaustivo que o dos chamados meios tradicionais). Para além dos referidos, há ainda as televisões, a maioria públicas, as rádios, os principais meios nacionais de cada país (The Guardian, El País e Le Monde estavam cá) e as agências de notícias (Getty, AFP, Associated Press). Todos a assinar diretamente de Lisboa.
As mesas são ocupadas por bandeiras, qual delimitação de fronteiras. Ou eventualmente por uma ou outra toalha de praia. Mesmo sem se conhecerem, há um sentimento de pertença. Ao entrar na sala, o primeiro gesto é procurar as cores nacionais. Foram assim os dias, ao longo destas duas semanas. Foi ainda mais este sábado, onde as canções que subiram ao palco da Altice Arena se transformaram em hinos.
“Boa noite, Europa. Bom dia, Austrália”
Está dado o pontapé de saída para a grande final. Nela, 26 finalistas — dez apurados de cada semifinal, os “big-5” e Portugal — sonhavam com a vitória e um lugar na história da Eurovisão. Posto conquistado por Netta, a representante Israel, quando a noite já ia longa.
Procuram-se os últimos lugares para sentar, são já poucos à hora do início da emissão. Pelo menos com visão direta para os vários ecrãs espalhados pela enorme sala de imprensa. Ninguém quer ficar com um poste no campo de visão, não é? O chão é uma opção. Isto porque a imprensa não pode entrar durante o espetáculo na Altice Arena.
Há palmas quando começa o hino da Eurovisão. Batem-se teclas. Com mais força agora. O ritmo da sala acelera. As emissões começam. Abrem-se artigos, tiram-se selfies, filma-se o ecrã ou os colegas. “Live” ou a 240 carateres de cada vez. Para o papel ou no digital. No Facebook ou no YouTube. Por paixão ou obrigação.
Canta Ana Moura, seguem-se Mariza e os Beatbombers. Há um nervoso miudinho que não se escreve ou diz, mas percebe-se. Na apresentação de cada intérprete, há palmas e gritos.
O desfile das canções começa agora. É a Melovin, com “Under The Ladder” que tem a responsabilidade de abrir as hostes. No fundo da sala o azul da bandeira ucraniana salta. E com ela os jornalistas que a seguram.
Depois é a vez da Espanha. O casal de “Tu Canción”, Amaia y Aldred, que se apaixonou no concurso de talentos que os elegeu, e que muita tinta fez correr na imprensa espanhola. Os jornalistas reúnem-se no centro da sala, mais próximo de um dos ecrãs, seguram bandeiras, cantam e no fim pedem um beijo do par. Não aconteceu.
O ritual repete-se com a comitiva de repórteres da Eslovénia na sala e manteve-se ao longo da noite. Canção após canção. Como se cada tema fosse, ali, o hino que os representa. Não é ir longe na comparação pois, muitas vezes, até a mão foi ao peito. Quando chega a vez do seu país, a reportagem fica de lado. A emoção regista primeiro o que a razão informa depois.
Chega a vez de “O Jardim”. Há perucas cor-de-rosa que contrastam com o verde-amarelo-e-vermelho da bandeira. Os mais experientes nestas lides são aqueles de quem em cima falámos, os sites de fãs e blogs portugueses especializados na Eurovisão. São eles que vão todos os anos “lá fora”. E foram eles que se juntaram para cantar o tema de Cláudia Pascoal e Isaura. A imprensa nacional não foi fazer a festa. Talvez a tenham feito nos seus lugares, talvez a façam numa próxima vez.
O apoio não chega só por parte de cada conterrâneo. Fez-se silêncio no momento em que SuRie, do Reino Unido, é interrompida por uma falha de segurança e consequente invasão de palco. A sala congelou na expectativa do que aconteceria a seguir. Assim que a intérprete de “Storm” recuperou o microfone e resgatou a atuação, as palmas da sala foram todas para ela.
Ficámos, por razões de espaço, sentados ao lado de um grupo alemão. Ainda a música da Sérvia ia a meio e já se preparam para o seu momento. Tiram o casaco e colocam a bandeira nas costas. Rumam à outra ponta da sala onde estava, talvez, a maior representação nacional do espaço (a par da espanhola). Muitas bandeiras no ar, é a vez de Michael Schutle (o “Ed Sheeran alemão”). A título de curiosidade, entre os meios alemães estava uma rádio que só passa música das várias edições do Festival da Eurovisão, vinte e quatro horas por dia.
A noite prossegue ao ritmo de Mikolas Josef, o da mochila nas costas. O mesmo que nos ensaios se magoou e quase colocou em risco a sua participação. Motivos de sobra para o grupo de jornalistas do país vibrar a cada movimento mais arriscado do seu intérprete. Correu tudo bem.
À hora que Jessica Mauboy subiu a palco já era dia no seu país. A australiana filha de pai indonésio, carregava consigo um país que vibra há muitos mais anos com a Eurovisão do que aqueles que participa. Desde 2015 no festival, a Austrália nunca ganhou, mas também não falhou uma final. E a sua vitória carregava uma esperança de que a edição do próximo ano pudesse ser novamente em Portugal. Isto porque, dizem as regras, o país enquanto convidado da EBU (União Europeia de Radiodifusão) não pode acolher o evento e por isso teria de escolher um europeu para ser o anfitrião. Para lhe dar apoio estava uma mesa inteira de jornalistas que até um mini kanguru trouxeram (de peluche, veja as fotos em cima).
Apontados como um dos favoritos à vitória, seguiu-se França. A dupla Madame Monsieur trouxe à Eurovisão o drama dos refugiados que todos os dias tentam atravessar o Mediterrâneo em busca de uma outra vida, melhor, na Europa. “Mercy” recebe o nome de uma bebé nigeriana que nasceu num barco de resgate. A canção sobre amor e esperança foi entoada em uníssono pela comitiva de jornalistas do país. Nem o movimento dos braços que acompanha o refrão faltou.
Na vez da Finlândia encontrámos um jornalista polaco a apoiar Saara Aalto. Lá porque o seu país ficou pela segunda semifinal, isso não quer dizer que a sua voz não possa juntar-se à dos vários finlandeses que tentam espantar todos os monstros das votações.
Uns mais discretos que outros, mas nem por isso ausentes, cada grupo de jornalistas aguardava a vez dos seus representantes para parar tudo o que estava a fazer e durante três minutos, o máximo que cada música pode ter, fixar os olhos nos ecrãs. Caso também da Holanda e da Irlanda, este último com um jornalista a vestir literalmente as cores do país.
Chegou a vez de Israel e mesmo que alguém estivesse totalmente abstraído no seu trabalho, não conseguiria deixar escapar o momento dos israelitas. Novamente na frente do ecrã, bandeiras em riste, a festa fez-se ao som da voz de Netta. “Cululoo, cululoo” gritava-se. Pouco depois e mesas ao lado, a sala pegava fogo. Nem o avançar da hora o impedia. Bandeiras do Chipre e da Grécia (Elani Foureira é albanesa, mas nos anos noventa emigrou com a família para a Grécia), coreografia capilar em linha (fica melhor em inglês, “hairography”), jornalistas em cima das cadeiras e siga para bingo: “ayeayeaey”.
A ronda fecha com a Itália e “Non Mi Avete Fatto Niente”. E pouco importa a afinação que a responsabilidade ali não é chegar à nota certa, a escala vai da emoção à comoção.
As votações abrem e há quem aproveite para ir fumar ou apanhar ar. O nervosismo aumenta e começam a fazer-se as primeiras previsões. Nunca numa final da Eurovisão a vitória esteve tão em aberto até aos últimos minutos.
Terminou, tempo de pousar os telefones. Das capitais dos 43 países desta edição começam a ouvir-se as palavras mágicas. “12 pontos vão para...”. Áustria, Alemanha, França Itália, Chipre, Israel, Suécia... Só não vão para Portugal. Fazem-se as primeiras contas. Refila-se por um país não lhes ter atribuído a pontuação que esperavam, promete-se vingança na edição seguinte.
Há movimentações na sala, dos que querem estar perto do grupo de jornalistas do país vencedor. A festa será lá. A pontuação do júri nacional diz que é a Áustria. César Sampson que tem em sua representação na sala de imprensa uma réplica em cartão, começa a ser rodeado de câmaras e iPhones prontos a entrar em direto. Os jornalistas austríacos já quase cantam vitória. Mas depois televoto e tudo muda.
Há uma correria para a outra ponta da sala, a que antes já tinha cantado em cima de cadeiras e agora quase que sobe às mesas (ou trepa paredes). Já poucos olham para o que estão, ou deviam estar a fazer. Apontam-se agora os holofotes para Israel e Chipre, será um deles. Faltam atribuir os pontos do público e já só há dois países na corrida, o próximo a ser anunciado terá conquistado prata, porque o primeiro lugar no pódio fica para o fim. Faz-se silêncio até Daniela Ruah dizer as seis letras: C-y-p-r-u-s (Chipre). Netta é a grande vencedora, os 12 pontos são dela, Israel acolherá a próxima edição.
Só uma parte da sala assistiu ao momento em que Salvador Sobral, que antes já tinha subido novamente ao palco de uma final da Eurovisão para cantar “Amar pelos Dois” com Caetano Veloso, entrega o microfone de cristal à cantora de 25 anos. O momento era de festa e voltou-se a ouvir “Toy”. Vinte anos depois da israelita Dana Internacional fazer história como a primeira Drag Queen a vencer o festival, o país volta a ganhar a Eurovisão (esta é a quarta vez).
Quando perguntámos a um jornalista israelita, visivelmente emocionado, o que sentia a resposta só podia mesmo ser aquela: “baka-mhm-baka-mhm-baka-mhm”.
A imprensa de vinte e cinco países, os restantes da final, publica a notícia que não quer dar. Já há um vencedor e não são eles. Ainda há uma conferência de imprensa antes de fechar, mas já não é só de euforia e entusiasmo que vive a grande sala. É, sobretudo, de balanços. Para o ano há mais, provavelmente em Jerusalém. Assim Netta o disse ainda em palco, assim Benjamin Netanyahu assegurou no Twitter.
Lisboa despede-se do Festival no fundo da tabela. O jardim não deu flores, mas Portugal colocou todos a bordo. Ahoy, Eurovisão!
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