Os homens sonham. Porventura desses sonhos nascem obras, assim o escreveu Pessoa, um homem que sonhava muito e dessas oníricas experiências se geraram múltiplas obras. Os homens sonham. E enquanto sonham desenham os futuros que querem, e os passados que desejam. Os homens sonham.
Thomas Webb é um desses. Um desses que sonham - só não sabe com o quê. Tem apenas a certeza de que a vida que leva é aborrecida, triste, perdida. Atolada. Uma vida sem alma, tal qual a cidade onde vive: Nova Iorque, urbe vendida, vilipendiada, perdida. Atolada.
Desenhe-se, então, um paralelismo entre a gentrificação e demais processos geográficos e a chegada à idade adulta de um miúdo de 25 anos (pode discutir-se se com um quarto de século vivido o título ainda se aplica, mas deixemos tal demanda para outra ocasião).
Vamos ao Tom. O Thomas é filho de pais bem-sucedidos, acabou de sair da universidade; é inteligente, só usa óculos quando dá jeito. Gosta de uma rapariga: a Mimi. Uma mulher belíssima, de 22 anos. Mas a Mimi tem namorado. Só gosta do Tom como amigo.
É por isso que sofre. O rapaz, branco, da classe média nova-iorquina, tem problemas em saber quem é e é rejeitado pela rapariga de quem gosta por ser “demasiado bom”. Por bom entenda-se boa pessoa, inocente. “Não és como eles”, atira-lhe Mimi a dada altura.
A premissa não é inédita. Mais, o realizador, Marc Webb, esteve por trás de 500 Dias com Summer, onde Joseph Gordon-Levitt interpreta o bom rapaz, rejeitado pela miúda belíssima que só dele gostava de vez em quando. As mulheres hão de ser umas criaturas terríveis.
Aqui, porém, Webb entra num outro caminho. Vai mais atrás, constrói uma história no estilo a que a literatura chama Bildungsroman, que em alemão significa qualquer coisa como “romance da construção”. História da montagem do homem que era criança. É desses momentos que o menino inocente se faz homem. Omem, com O grande.
Para se fazer homem, Tom decide dormir com a amante do pai.
Diz ele que tem uma vida aborrecida. É mesmo isto que lhe vai dizer Jeff Bridges, ou melhor, WF, o escritor alcoólatra e frustrado, “que não move massas, mas também não quer saber”.
E há que ter em conta este Jeff Bridges. É ele o dono do fio de prumo que nos desenha a história. O filme mete-se por uma meta-narrativa, isto é, conta a história da história que está a contar. Enreda a coisa de tal modo que às tantas estamos a ver a história que o filme conta a ser contada pelo próprio filme antes mesmo de acontecer no filme.
Não chega, porém, a ser confuso. Talvez porque não está assim tão longe de descortinar, logo que se apanhem as primeiras pistas. A crítica não tem sido agradável. Aqui deste lado, porém, achamos que: “cumpre”. Serve aquilo a que se propõe.
É uma abordagem ingénua à gentrificação e aos problemas sociais das grandes metrópoles. Tem toques disso, mas não o explora. E perpetua aquele amor cinematográfico por rapazes brancos da classe média com problemas interiores - The Art of Getting By, It’s Kind of a Funny Story, The Perks of Being a Wallflower... São filmes que cumprem aquilo que prometem. Mas não fazem aquilo que podiam. E por isso têm um sabor de repetição, de vangloriação do privilégio alheado de que estes jovens gozam sem dar conta - são um infinito transpor de J. D. Salinger para o grande ecrã.
Ainda nesta senda dos rapazes com problemas, há um trabalho britânico, com uma fantástica banda sonora de Alex Turner, dos Arctic Monkeys, que aborda a coisa de outra forma. Chama-se Submarine e, para quem aprecia esses tais Bildungsroman, é uma boa história, vista de uma interessante perspetiva, que fica aqui como nota de rodapé.
Com o único rapaz vivo de Nova Iorque, temos Simon & Garfunkel, mas não temos a profundidade merecida. Thomas é uma personagem oca. Poderá ser que o objetivo é que seja o espetador a entrar por ela dentro, mas a presunção não é o melhor tapete de entrada.
Não deixa de ser um bom filme para ver (gravado em película, consegue mostrar uma cidade mais deprimida que as personagens), mas não é o melhor filme para pensar. E no mundo em que os problemas que ali passam ganham dimensões importantes, talvez fosse mais interessante ponderar causas e efeitos e não tanto pairar sobre os peitorais de Callum Turner.
Tome-se como exemplo a decisão - que aliás Owen Gleiberman, da ‘Variety’, sublinha - de ir viver para uma parte desfavorecida de Nova Iorque. Thomas fá-lo porque pode. Pode passar os dias sem trabalhar, a perseguir uma mulher, a pensar e a discutir com o vizinho alcoólico. Pode fazê-lo porque o pai é rico. E isso fá-lo parecer um pouco hipócrita quando o vemos a criticar o desaparecimento da boémia intelectual nova iorquina.
Criticar. Por falar em criticar. É um ponto pertinente. O filme aparece como uma crítica à usurpação da alma. A alta cultura substituída pela fast food. Tudo isso vem numa caixinha, entregue como se este fosse uma obra proveniente ou herdeira dessa vida. Porém, a crítica da vida real, deita no chão toda e qualquer tentativa que Loeb ou Webb façam de tornar este filme numa ode ao intelecto. Se a culpa é da “elite crítica” que escrevinha nos jornais (como este, este, este ou ainda este, por exemplo, que o compara a um remake, do The Graduate, de 1967) as suas opiniões sobre o trabalho dos outros, ou se a culpa está num risível falhanço do filme, não cabe a este texto decidir.
Oscar Wilde escreveu que “a maturidade não passa de um longo percurso durante o qual se diz o que não deveria dizer-se. É isso precisamente a arte da conversação”, mas não é a conversar que Tom resolve o adultério do pai. Antes prefere ir para a cama com a amante, respondendo mais aos fulgores de uma adolescência arrastada que às racionalidades que a eventual paixão por Mimi ou o eventual paradigma queirosiano das promiscuidades familiares antevejam.
A ideia há de ser a de, por um lado, vingar-se do pai, que trai a mãe, uma mulher fragilizada; mas também a de mostrar a Mimi que, se ela não quer, há quem queira - nem que seja a amante do próprio pai.
A história que o não ia ser
O título não foi traduzido. É o nome de uma música dos norte-americanos Simon & Garfunkel; música profundamente sombria, que traduz na perfeição o ambiente de uma história que esteve para não ser.
É que o autor, Allan Loeb, estava prestes a desistir do sonho de ser argumentista quando o texto de "The Only Living Boy in New York" lhe chegou à mente - ou pelo menos assim descreve o processo.
O dinheiro, explica, estava a acabar e esta era a última aposta. “Se esta ideia não resultasse, percebi que ia abandonar este negócio”, lembra o argumentista nas notas de produção. “Queria que fosse uma carta de amor a Nova Iorque, um retrato da cidade que aprendi a amar enquanto a visitava nos anos 1970 e 80, a Nova Iorque inundada em arte, música e literatura.”
A aposta funcionou e a história chegou aos produtores Albert Berger e Ron Yerxa, que estiveram por trás de Little Miss Sunshine e Nebraska; obras que igualmente retratam uma procura, um percurso de descoberta, seja do interior de cada um, seja do seu lugar na família. E é nisto que culmina "The Only Living Boy in New York". Os meios, sórdidos, talvez justifiquem os fins.
Depois, Marc Webb pegou na batuta e o resultado está à vista. Callum Turner assume o papel de Thomas Webb, assumindo um equilíbrio interessante. Esta personagem não podia ser interpretada por um ator demasiado juvenil, sob pena de a relação com Kate Beckinsale ganhar todo um outro significado.
Com 27 anos, Turner é legalmente ideal para o papel, embora do ponto de vista mais realista da história, talvez não seja o tipo perfeito para vestir a pele do rapaz demasiado bom para ser amado (existem vastos fóruns na Internet dedicados a estes jovens que não encontram o amor por serem demasiado perfeitos. As mulheres, essas vis adoradoras de bad boys, não sabem o que perdem quando atiram cavalheiros para a friendzone, a caixinha onde guardam os rapazes que são muito bons amigos, mas não giros o suficiente para ser namorados - ou assim eles pensam).
Ressalve-se o sarcasmo do anterior parágrafo. Já que talvez seja precisamente esse o caminho que o filme não procura. Um miúdo que só pensa nele e não pergunta aquilo que está a fazer de errado para que a Mimi não goste dele talvez esteja a ser um bocadinho hipócrita. Porém, se a porta nos é aberta, em parte alguma dos 88 minutos do filme somos convidados a entrar (podemos invadir casa alheia, mas sempre falta um contexto).
Neste mesmo mundo polulam uma esplêndida Kate Beckinsale no papel de Johanna, a exótica londrina com problemas paternais que interpreta a amante. Pierce Brosnan, o mal sucedido escritor que se tornou no bem-sucedido editor enquanto corta os sonhos do filho que quer ser escritor (e que, munido de ressentimentos, não tem problemas em dormir com a amante do pai - sim, julgo ser pertinente sublinhar isto várias vezes). E depois há Cynthia Nixon, a mãe, uma artista frustrada, frágil, depressiva. Perdida. Assombrada pelo passado que vai encobrindo - até que ele se põe escancarado diante de todos, acabando por desiludir todas as ténues linhas literárias que pudessemos estar mentalmente a desenhar.
A unir o cimento, Jeff Bridges. O escritor de que já falámos, que segura as pontas da história e no-la vai contando, em diálogos que parecem profundos. A existência de um narrador num filme raramente é bom presságio, porém, numa história que se deita na cama com a literatura, com os livros e com todos os dramalhões possíveis, a voz cumpre, sobressaindo como alínea desse contrato de suspensão da descrença, que teimosamente todas as outras personagens não querem seguir.
A voz de Bridges cumpre enquanto se funde com a névoa sonolenta de uma Nova Iorque submetida aos males do mundo moderno, que fecha lojas tradicionais para abrir cadeias internacionais, que deita ao lixo a alta cultura para deixar entrar brindes turísticos, que põe os naturais na rua para acomodar os de fora.
A discussão é longa. Mas não é neste filme que está. Porque aqui importa um miúdo a dormir com a amante do pai. O resto está no campo da figuração e do cenário.
The Only Living Boy in New York chega esta quinta-feira às salas de cinema portuguesas.
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