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Angola. Hotel Cacimba. Janeiro, 18, 1965.

O ano do soldado Artur Lopes foi um curto janeiro.
Morreu hoje. Uma emboscada a pouco mais de duzentos metros daqui. Ia casar quando regressasse a São João da Pesqueira. Mais um funeral em vez de um casamento. Mais tristeza em vez de festa. Mais Portugal em vez de futuro.

Diário de campanha do capitão Mário Castelo

Salazar puxou ligeiramente a camisa de dormir para tirar os chinelos. Sentado na cama, agarrou o pequeno frasco na mesa de cabeceira e abriu a tampa. Deitou um comprimido amarelo na língua e engoliu. A noite podia ser uma interminável insónia. Sorriu ao pensar o que diriam as pessoas se soubessem que o presidente do Conselho, o grande pai dos portugueses, dormia com a ajuda de um ou dois calmantes todas as noites. «Uma vida de maçadas! Se soubessem como custa mandar!» Suspirou. Enfiou-se nos lençóis de flanela e tapou-se. A olhar para o teto, gesticulou um apressado «Pai, Filho, Espírito Santo, ámen», desligou a luz e fechou os olhos com mais pessimismo do que esperança.

Alternava as longas noites de insónia com um breve mas repetido pesadelo. Viajava num avião que aterrava em Luanda. Todos os passageiros saíam felizes menos ele, que ficava preso ao assento pelo cinto de segurança. As mãos tremiam ao tentar encontrar uma maneira de se soltar. Olhava pela janela e via uma mulher loira que lhe acenava com um sorriso. Ele queria responder, dizer «Olá», mas não conseguia. Continuava preso ao assento. De um momento para o outro, as luzes desligavam-se e tudo ficava escuro. Atrás de si, ouvia a voz familiar da sua governanta, Maria: «Eu não o avisei, senhor doutor?!» e, logo de seguida, o avião era invadido por galinhas e perus que marchavam ordeiramente e em silêncio. O único som que se ouvia era o da voz militar da governanta: «Ó senhor doutor, feche-me essa porta para os malditos bichos não fugirem!» E à porta, para tornar tudo ainda mais estranho, aparecia o general Humberto Delgado, rigorosamente fardado, que lhe gritava da porta: «Deixe a porta aberta, liberte os desgraçados dos bichos!»

Duas longas semanas de sonhos piores que insónias traziam Salazar preocupado. Por que demónio lhe aparecia aquela estranha cena de avião quase todas as noites? Ele que detesta essas geringonças e nunca pôs os pés em semelhante máquina. Era a maldita Guerra do Ultramar.

Não bastava que a guerra o trouxesse ocupado durante o dia. Agora, acordava-o à noite. «Uma vida de maçadas!» Voltou a fechar os olhos e suspirou, desanimado.

*

– Quantas?

– Umas cinquenta!

– Ena!

– Nas grandes cidades, sabes como é!

– E que tal?

– De um a dez? Oito!

Os olhos do cantor sorriram mais do que a sua boca ocupada por um cigarro moribundo.

– Vamos lá então... estou bem assim?

Patrício olhou de alto a baixo o cantor e sorriu.

– Até numa mesa de autópsia ficavas bem!

– Abre a porta, palhaço!

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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José de Oliveira passou a mão pelas ondas do cabelo levemente húmidas da brilhantina, verificou o hálito, atirou o cigarro ao chão e quando a porta se abriu começaram os gritos. Cinco dezenas de mulheres correram para o cantor. Uma amálgama de perfumes e suores encheu o ar. O cantor exibiu o seu melhor sorriso ensaiado e a todas estendeu a mão.

Perguntas, pedidos, declarações, suspiros, a tudo José de Oliveira sorria. Um autógrafo e um beijo era a ementa base destes encontros na porta de saída dos artistas depois de cada espetáculo. Mais atrás, afastado, discreto, invisível ao batalhão de mulheres que tentava conquistar a atenção do mais famoso cantor romântico da atualidade, Patrício limitava-se a seguir o olhar da vedeta e a registar os sinais que marcavam as suas preferências. Muitos anos de convívio entre os dois, a exaustiva repetição daquela cena bem ensaiada, tornavam desnecessários grandes gestos. Bastava um simples arquear do sobrolho, um breve movimento do dedo indicador ou qualquer outro sinal invisível ao mulherio que o cercava, mas anotado com precisão pelo seu lugar-tenente Patrício.

Minutos depois, esgotados os autógrafos, os beijinhos e alguns toques discretos na anatomia feminina, o cançonetista entrava no automóvel e partia lentamente. Patrício aproveitava a ordeira dispersão das mulheres para começar a sua caça. O primeiro alvo era sempre a mais velha, para não correr o risco de ser surpreendido por um pai ou namorado que aguardava à distância.

– Peço desculpa, mas o senhor José de Oliveira gostaria de a convidar para uma bebida no hotel. Para ele é muito importante conhecer bem as suas admiradoras!

As frases eram sempre curtas e certeiras. Um caçador experiente gasta poucas balas para acertar na presa. Um sorriso aberto servia de resposta. Dois dedos de conversa até chegarem ao automóvel e depois, sempre com generosos modos, Patrício conduzia a convidada ao hotel numa viagem de muitos silêncios e poucas dúvidas.

– Eu sou o Patrício...

– Adriana...

– Obrigado por ter aceitado o convite, Adriana!

Patrício entrou acompanhado no hotel e os dois subiram ao quarto do cantor. Para todos os efeitos, a mulher que o acompanhava era o seu par. Nada comprometia o bom nome do cançonetista. José de Oliveira abriu a porta enquanto trauteava um dos seus muitos êxitos. Patrício despediu-se com um delicado «Boa noite» e retirou-se para o seu quarto solitário. A noite seria igual a tantas outras. Ou assim pensava ele.

Quando, cerca de três horas mais tarde, José de Oliveira bateu com histeria na porta do seu quarto, Patrício levantou-se sobressaltado.

*

O fotógrafo nunca se cansava de admirar o pequeno milagre que se dava na câmara escura: numa folha branca de papel nascia uma imagem. Lentamente. Um cinzento quase invisível invadia aos poucos a folha e ganhava força até revelar de forma contrastada em diversos graus de preto a fotografia final. De certa forma, era um milagre. António retirou a fotografia da tina, deixou-a escorrer antes de a prender no fio que estava por cima da sua cabeça. Observou-a atentamente. Os olhos habituados a longas noites de vigília no escuro fixavam-se primeiro nos detalhes. Salazar esboçava um comedido sorriso. O fotógrafo conhecia-o bem. Aquele e todos os outros que o ditador, sempre com parcimónia, colocava nos lábios apenas na altura certa e no local indicado. Era um homem de poucos sorrisos e muitos pensamentos. Na foto que ainda secava, Salazar, acompanhado pelos ministros da Defesa e do Exército, apertava a mão às enfermeiras paraquedistas que iam partir para Angola. E aquele sorriso transportou-o ao passado.

António Gama recordou a primeira fotografia que revelou do ditador. Tinha sido enviado a Espanha, por um dos jornais onde colaborava, para acompanhar o encontro de Salazar com Franco. Ainda jovem, perto dos vinte anos, incorporara-se numa comitiva com outros fotógrafos portugueses, todos mais velhos e experientes. O seu feitio franco e jovial conquistou os colegas de profissão que o apadrinharam. Era setembro de 1950 e o fotógrafo nunca se tinha cruzado com o ditador português. Não tinha um especial gosto pela política nem por outras grandes questões nacionais. A sua paixão era a fotografia e era sobre ela que gostava de falar.

Livro: "Quando Voltámos a Acreditar no Amor"

Autor: Júlio Magalhães

Editora: Planeta

Data de Lançamento: junho de 2023

Preço: € 17,50

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António Gama era então um fotógrafo em início de carreira que trabalhava para vários jornais.

A paixão pela fotografia descobrira-a muito jovem quando um tio lhe deu uma velha máquina fotográfica. De início foi apenas a máquina, o objeto que o seduziu. Depois veio o fascínio pela fotografia. Perguntando aqui, vendo acolá, errando muitas vezes, António foi-se fazendo fotógrafo aos poucos nas redações dos jornais e nos estúdios de fotografia. Foi aprendiz de todos os que o deixaram espreitar o seu ofício de fotógrafo. Naqueles anos iniciais tudo era deslumbramento e descoberta. Para trás ficou o sonho do pai de o ver na escola comercial. Aos dezassete anos, o ofício de aprendiz de escriturário foi definitivamente trocado pela arte de fazer retratos.

Naquele longínquo dia de setembro de 1950, Salazar abraçou Franco enquanto os fotógrafos se acotovelavam para captar o gesto amigável dos dois ditadores. Trocadas as primeiras palavras e depois da pose para os retratos oficiais, Franco convidou Salazar a visitar uma pequena igreja medieval e os dois estadistas entraram para uma curta visita. Com as fotos feitas para aquela manhã, os fotógrafos aproveitaram para descansar num café ali próximo. António Gama seguiu o seu instinto e entrou na igreja onde já estavam Franco e Salazar. Num dos altares, estava uma toalha de linho bordada com motivos bíblicos.

António Gama reparou no olhar do ditador ao aproximar-se do altar. De imediato, o fotógrafo apontou a máquina e ficou à espera. Salazar, com o seu olhar treinado para os pormenores da vida doméstica, reparou que a toalha estava colocada do avesso e foi ele próprio, com as suas mãos, virar a toalha perante a surpresa de Franco e dos membros da comitiva que os acompanhavam, mas não de António Gama, que captou com a sua objetiva aquele momento para a posteridade.

O ditador reparou no fotógrafo. Os pormenores não lhe escapavam. António Gama afastou a máquina da cara e sorriu para Salazar, que lhe retribuiu com um leve sorriso nos lábios, mas com um olhar luminoso. Um fotógrafo jovem capaz de se antecipar ao seu gesto merecia a sua admiração. Foi assim que quebrou as barreiras do ditador e começou a colaborar com a Presidência do Conselho e a fotografar Salazar. Aos poucos tornou-se o fotógrafo favorito do ditador. António ficou surpreendido com o convite. Nunca tinha estado com o chefe do governo, não tinha uma opinião definida sobre ele e não conhecia ninguém ligado ao poder e ao partido único.

Passados mais de quinze anos, António revelava mais uma fotografia de Salazar.

Oito mulheres entre os vinte e os trinta anos, solteiras, sem cadastro e todas de boa formação moral e religiosa. Só assim podiam ser admitidas como enfermeiras paraquedistas. A todas Salazar sorria. E todas lhe retribuíam um sorriso nervoso. Todas, não. Aquela, a penúltima a contar da direita, ostenta uns lábios carnudos sérios, sem qualquer vestígio de sorriso.

O fotógrafo aproxima a cara do retrato e repara que o ditador aperta a mão a uma paraquedista, mas o seu olhar está fixo na que não está a sorrir. Mais do que a limitada lente da máquina fotográfica, os olhos de Salazar são poderosos instrumentos de leitura. Captam intenções, silêncios, omissões. Nada ou muito pouco escapa ao seu escrutínio.

O fotógrafo retira da tina uma segunda fotografia que prende com igual cuidado no fio de corda que atravessa a câmara escura. É a continuação da cena anterior no momento certo. Salazar aperta agora a mão à enfermeira que não sorri e, como que por reflexo, o fraco sorriso que o presidente do Conselho ostentava desapareceu. Permanece apenas o olhar penetrante do velho ditador. A enfermeira olha-o nos olhos, destemida.

Os quase quinze anos que levava como fotógrafo oficial de Salazar deram a António Gama a instintiva capacidade de ler as emoções do presidente do Conselho. Tal como ele, António ficou curioso: quem será aquela rapariga de boina verde que, ao contrário das outras, fechou o sorriso ao ditador? Olhando com mais atenção, António repara no rosto da mulher. É de uma beleza fora do vulgar.

*

Abriu a janela do quarto e acendeu um cigarro. Àquela hora da noite, a rua estava deserta. A chuva miudinha que insistia em cair tornava a noite ainda mais solitária. Catarina acabara de fechar a mala de viagem. Depois desviou os olhos para a farda que tinha vestida. Mesmo depois dos dois meses de treino na base militar de Tancos ainda não se habituara à sua nova vida. Há apenas um ano teria rido e bem alto, como era seu hábito, se alguma das suas amigas lhe dissesse que ia acabar por marchar para Angola como enfermeira paraquedista. Até então, a guerra colonial era algo que para ela ficava na longínqua África. No seu mundo cor-de-rosa e protegido de filha única do poderoso industrial Duarte Oliveira, Catarina vivia uma rebeldia confortável.

Aos vinte e cinco anos tinha a fama de «menina mimada insuportável». O rótulo não a incomodava, pelo contrário, dava-lhe um certo prazer, o mesmo que punha nas atitudes que escandalizavam os salões das casas mais chiques de Lisboa, como quando resolveu aparecer ao jantar da festa de anos de uma amiga, filha de um secretário de Estado, com umas justas e gastas calças de ganga.

Catarina tinha tanto de rebelde como de inteligente. Aprender sem- pre foi fácil. Revoltava-a o pouco que se ensinava, a falta de ambição que se exigia, sobretudo, às mulheres. Cedo tomou consciência do mundo em que vivia. Frequentou os melhores colégios, praticou os desportos aconselhados às «meninas» – equitação e ténis –, mas ao mesmo tempo tentou formar sem sucesso uma equipa de râguebi feminino.

– Quem é que lhe meteu essa ideia peregrina na cabeça? – perguntou-lhe, ainda em choque, o diretor do colégio.

– Li numa revista inglesa... – começou a responder, num tom provocador, Catarina.

– Ah, numa revista inglesa! – cortou-lhe a palavra de forma brusca o diretor. – Só porque o seu pai é quem é, é que não lhe coloco uma participação disciplinar. Deixe-se de coisas que não ficam bem a uma rapariga do seu estatuto. E é a última vez que a quero ver aqui à minha frente!

– Eu sei, disse-me o mesmo quando tentei organizar uma semana de voluntariado para ajudar as crianças que moram nas barracas.

– Estamos conversados, certo?! – ignorou-a com visível desconforto e mostrou-lhe a porta de saída com o braço esticado.

Aos dezoito anos, Catarina rejeitou um promissor pedido de casamento e resolveu, para grande desgosto do pai, tirar o curso de enfermagem.

– Enfermeira?! Você?!

– Enfermeira, eu, sim!

– A menina devia era casar! Fazer como a sua mãe e a sua avó antes dela. Deixe-se de sonhos rebeldes e faça uma coisa útil!

– Útil tal como procriar! Afinal é para isso que servem as mulheres, certo?

– Mas você não consegue ter uma conversa civilizada comigo?

– Estava a tentar ter quando lhe disse que vou tirar o curso de enfermagem!

– Ao menos, médica!

–São as enfermeiras que estão sempre mais próximas dos doentes... além disso, não ia ter paciência para um curso desses!

– A menina não sabe o que diz! – gritou-lhe o pai, irritado.

Mas sabia. Ao fim de três anos estava formada – com distinção –, trabalhava no serviço de cirurgia geral no Hospital de Santa Maria ao mesmo tempo que fazia voluntariado no bairro de barracas do Prior Velho. Impressionava-a a miséria que se entranhava como uma fatalidade nos moradores daquele bairro de casas de madeira e ruas de lama. Eram as jovens, muitas já mães aos dezasseis anos, que motivavam a ida, uma vez por semana, àquela improvisada aldeia às portas da capital. E foi ali, numa barraca de tábuas desengonçadas e húmidas, que a até então longínqua e desinteressante guerra colonial a apanhou.

*

Cardoso Aranha considerava-se um artesão.

Tal como um oleiro ou ourives, trabalhava com as mãos. Eles trabalhavam o barro, a prata, o ouro. Ele trabalhava os corpos. Eles criavam peças. Ele criava dor. Um par de mãos largas e dedos compridos era tudo o que precisava para esbofetear e esmurrar o preso que estava aos seus cuidados.

Foi na pequena padaria dos pais que o jovem Cardoso começou a treinar as mãos. Amassava, comprimia com os punhos a massa do pão, imitava os golpes que o pai ou a mãe infligiam ao pão saloio ou às carcaças. Agradados com o que viam o seu único filho fazer, os pais – gente vinda do Minho e habituada ao trabalho duro – acreditaram que tinham um herdeiro para a sua padaria Amares, nome da terra de onde tinham partido há mais de duas décadas. Mas o filho não quis seguir a arte dos pais. Feita a tropa – onde aperfeiçoou ainda mais o seu trabalho de mãos nas muitas cenas de pancadaria que protagonizou com outros recrutas –, Cardoso Aranha tentou a polícia política. As fracas habilitações académicas – uma quarta classe tímida e um competente curso de atirador no Exército – foram toleradas perante a extrema vontade do candidato em mostrar que podia ser útil nas sessões de interrogatório que marcavam o dia a dia da PIDE.

Desde o primeiro interrogatório – um motorista da Carris com contactos no Partido Comunista – que o novato agente da PIDE mostrou um talento pouco habitual para utilizar as mãos nos prisioneiros. Batia como quem amassava pão com golpes profundos, rápidos e repe- titivos. O desgraçado do motorista não aguentou mais do que vinte minutos. Com o nariz inchado e partido, assinou todas as folhas que o agente Cardoso lhe colocou na secretária.

– Lá fora são todos heróis, aqui não passam duns cobardolas! – disse sem olhar para o motorista enquanto limpava o sangue das mãos a uma toalha.

A tortura para ele não era um prazer. Era uma arte, uma forma artística de destruir física e psicologicamente os homens que tinha à sua mercê. Já por algumas vezes «interrogara» mulheres, mas não apreciava. Considerava-as demasiado frágeis e de forma instintiva não conseguia utilizar toda a força que tinha nas mãos. Chapadas, murros e cotoveladas não assentavam bem nas senhoras, mesmo que elas o merecessem.

– Não sei porque é que as mulheres se metem nestas alhadas! A política é uma coisa para homens! – interrogava-se sempre que lhe aparecia uma prisioneira pela frente. Mas isso tinha sido no início da sua carreira. Agora, passados mais de três anos, já só interrogava homens.

O agente da PIDE gostava de trabalhar durante a noite. Como era um homem de pouco sono e muita impaciência, Cardoso Aranha aproveitava as horas noturnas para adiantar serviço. Apreciava o silêncio dos corredores vazios, a atmosfera mal iluminada dos gabinetes.

Foi por isso que estranhou encontrar no longo corredor, àquelas horas, o inspetor Rosa Casaco, o seu grande modelo, e Casimiro Monteiro. Traziam caras de poucos amigos e entre eles caminhavam em silêncio. Tinha ouvido comentar que tinham ido a Espanha numa missão secreta.

– Inspetor... – disse Cardoso, esperando ter um pretexto para continuar a conversa.

– Agora não, Cardoso! – foram as palavras secas que saíram de Rosa Casaco.

O par de inspetores continuou a caminhada em silêncio até desaparecerem por detrás de uma porta. Cardoso ficou parado a olhá-los. E mais intrigado ficou quando, ao fundo do corredor, viu um apressado Barbieri Cardoso, o número dois da PIDE, entrar pela mesma porta.

– Aqui há gato! E dos cabeludos!

Meteu a mão no bolso do casaco e tirou o maço de Português Suave. Precisava de um cigarro naquela húmida e cansativa noite de fevereiro.

*

Salazar acordou como se deitara. Cansado. A manhã de fevereiro estava ainda escura e já ele se arrastava pelas salas de São Bento, perdido em pensamentos por mais uma noite passada com um pesadelo. O cheiro de café acabado de fazer levou-o à cozinha. A luz estava ligada.

Salazar suspirou, franziu as sobrancelhas e rodou o interruptor. A cozinha ficou na penumbra.

Maria entrou, vinda do jardim. Vinha cansada. A energia que sempre teve desde pequena parecia que se esgotava mais depressa a cada dia que passava. A governanta estranhou o escuro. Ao ver ali o senhor doutor assustou-se. Trazia na mão uma galinha ainda viva, que quase deixou escapar.

– Senhor presidente, já de pé? Passou-se alguma coisa?

– Não se passou nada, Maria. Apenas o sono que não apareceu.

– Não anda a dormir muito, como devia!

– É o sono que não aparece... mas o que me vai aparecer este mês é uma conta da eletricidade daquelas... a luz estava ligada aqui na cozinha e não estava cá ninguém!

– Desculpe, senhor doutor, fui só ali dar de comer às galinhas e aos perus.

– Pois... mas a luz ficou a contar! Esta casa sai-me cara, Maria.

– O senhor doutor podia deixar que lhe pagassem as contas da casa, afinal trabalha aqui tantas horas para governar o país.

– Governar um país é como governar uma casa, Maria. Ao menos levou os restos do pão de ontem?

– Isso nunca me esqueço, senhor doutor. Aqui na cozinha nada se desperdiça. Já devia saber como as coisas são.

– Já agora, não se esqueça mais logo de me mostrar a lista de coisas a comprar para a semana.

– Fique descansado!

Maria colocou a galinha em cima da bancada. Dominava com à-vontade os movimentos que o animal tentava fazer para se libertar.

– Esta noite vou-lhe fazer uma canja e uma galinha corada para o jantar!

Maria colocou a cabeça do animal sobre o mármore da bancada e segurou-a com experiência.

– O senhor presidente trabalha de mais. Deus me perdoe, mas às vezes acho que o país não o merece! – Com um gesto certeiro e frio, a governanta cortou o pescoço à galinha, que ficou por momentos a espernear. O sangue caía rápido para uma tigela e o animal parou finalmente de se mexer.

Salazar desviou o olhar.

– Vou para o meu escritório. – Salazar não gostava de ver sangue fosse de quem fosse. – Assim que puder leve-me um café forte.

– Vou já pedir à Isabel que lhe leve o café da manhã, senhor doutor. – Maria mudou o tom de voz para a impaciência. – Já cá devia estar, a rapariga! Sempre a mesma coisa.

– Não seja severa para a rapariga! Ainda só veio para Lisboa a semana passada.

Salazar saiu da cozinha.

– Já nem na província se arranjam raparigas de jeito!

*

Patrício agarrou a receita que o médico lhe entregou.

– Dois comprimidos por dia, durante uma semana, e ela que vá a uma consulta de cardiologia assim que puder! E agora é deixá-la dormir – limitou-se a explicar o velho médico. Sem dizer mais nada, fechou a mala, enfiou as três notas verdes de vinte escudos no bolso e saiu do quarto de Patrício sem uma palavra ou um aperto de mão. Na cama, Adriana dormia tranquilamente sob o efeito de um sedativo. Encostado à porta, Patrício suspirou de alívio.

Três horas antes, abrira a porta do seu quarto e a sua noite ficara perdida. José de Oliveira, em cuecas viradas do avesso, a transpirar por uma cara vermelha e sem palavras, puxou o amigo à pressa para o seu quarto de cama desfeita e lençóis pelo chão. A mulher estava nua, deitada imóvel na alcatifa.

– Achas que está morta?! – foi o que conseguiu dizer o cantor num tom medroso.

Patrício colocou-se de joelhos e tomou o pulso a Adriana. Também ele começou a suar ao sentir que nada fazia vibrar a veia que ele apalpava. Aproximou o ouvido da boca de Adriana e pareceu-lhe ouvir um som fraco.

– Ajuda-me... – pediu Patrício num tom brusco.

– A fazer o quê? – balbuciou ainda em choque o cançonetista.

– A metê-la na cama! – As palavras saíram de Patrício sem paciência. José, hesitante, aproximou-se e ajudou o amigo a colocar a mulher em cima da cama.

Patrício pôs dois dedos no pescoço para sentir movimento na carótida. Levou alguns segundos até sentir uma fraca corrente de vida a latejar.

– Então? Que achas?! – José de Oliveira tinha as pernas a tremer e a voz saía-lhe em tom de falsete.

Patrício continuava a tentar confirmar sinais de vida no corpo desnudo da mulher. Colocou duas almofadas debaixo da cabeça da mulher e tapou-lhe o corpo com um lençol.

– Diz qualquer coisa! – suplicou-lhe ainda mais em falsete o cantor.

– Tem calma, vai ficar tudo bem!

Agarrando no telefone, Patrício fez sinal ao amigo para que se calasse. Discou o zero, aguardou pelo sinal e depois marcou seis números. Deixou o olhar fixo no telefone enquanto esperava que uma voz cansada chegasse do outro lado da linha.

– Quem é? – A interrogação vinha acompanhada por um mau humor. – Doutor Bruno, é o Patrício!

José de Oliveira sentou-se na beira da cama e compôs o cabelo. O coração castigava-o batendo desalmadamente. «Olha que raio de coisa! O que me havia de acontecer! Logo a mim!» «Como é que me foi acontecer uma coisa destas? Nunca mais volto a meter-me numa destas! Acabou! Nunca mais! Juro, juro, juro!» Batia com a palma da mão na testa para flagelar a sua maldita perdição por mulheres que não conhecia de lado algum.

Patrício pousou o auscultador e respirou fundo.

– O médico já aí vem!

José de Oliveira regressou ao mundo real trazendo a reboque todo o seu egoísmo.

– Aqui?! Ao meu quarto?!

José de Oliveira abanou a cabeça num «nem pensar» prolongado.

– Não! Não a podemos ter aqui... não se pode saber que ela está no meu quarto... imagina que ela morre!

– Não vai morrer!

– Agora és médico?! Não, não, não! Nem pensar. Aqui não!

– E queres pô-la onde?! Lá em baixo na receção?!

– No teu quarto! Vai para o teu quarto! – José de Oliveira teve uma ideia.

– No meu quarto?!

– Ninguém te conhece, caramba! Que mal tem! Ela não vai morrer, pois não?! – José de Oliveira ainda duvidava.

– Não, não vai morrer, seja lá o que lhe tenhas feito! – Patrício envolveu a frase com um tom crítico.

– Eu?!

– Não, eu! – criticou Patrício.

– Mas eu não fiz nada! – Havia desespero na voz do cantor. – Estávamos os dois bem lançados na... na coisa... e de repente ela lança-me as mãos ao pescoço, começa a estrafegar-me e a perguntar se estou a gostar! Eh, pá, eu tiro logo as mãos dela, o que faltava agora era eu ficar sem voz... E pede-me para eu lhe apertar o pescoço... que ela gostava assim! Mas eu não fiz nada, que não gosto cá dessas coisas! Então ela crava-me as unhas nas costas com toda a força e desmaia! Assim, de um segundo para o outro!

– Deu-lhe um ataque? – perguntou Patrício.

– Sei lá... acho que sim... até pensei que tivesse morrido. Já ouvi histórias dessas, de mulheres e homens que morrem quando estão a coisar! Como é que eu havia de saber que ela tinha ataques ou um coração frágil?

– A sério, se soubesses como estou farto destas tuas aventuras!

– Já te disse que não fiz nada! – insistiu, em desespero, o cantor.

– Nunca fazes nada, mas o trabalho sobra sempre para mim! Lembras-te daquela que tomou comprimidos porque lhe disseste que não ias voltar a vê-la?!

José de Oliveira encolheu os ombros.

– Vamos lá então – suspirou Patrício. – Vê aí se o corredor está vazio!

– E ela não vai acordar e começar aos berros?

– Não me parece, no estado dela...

Vinte minutos depois, Adriana, semiconsciente, estava deitada no quarto de Patrício a ser observada por um médico cansado e de olhar acusador. Não houve perguntas nem explicações.

Assim que o médico saiu do quarto, José de Oliveira veio bater com uma delicadeza nervosa à porta de Patrício.

– Então?!

– Entra!

José de Oliveira entrou rápido e não perdeu tempo a fechar a porta.

Deu dois passos no quarto e parou a olhar a mulher.

– Que disse o médico?

– Vai ficar bem!

– Não vai dizer nada, certo?

– Não te preocupes! Isso está tratado!

– E ela?

– Dorme, o médico deu-lhe uma injeção.

– Não é isso – replicou com impaciência o cantor. – Achas que ela vai dizer que estava comigo?

– Dizer o quê?! A quem?! Não te preocupes! Ainda para mais se foi ela que desmaiou, como tu dizes...

– Foi! Se calhar não aguentou o meu ritmo! – José de Oliveira suspirou. – Mas se calhar é melhor dar-lhe um dinheirinho, não?

– Se quiseres, o dinheiro é teu!

– Falas tu com ela? – Mais do que um pedido, era uma decisão. Patrício encolheu os ombros num «sim» resignado.

– Vai-me sair cara esta noite. Caraças! Só a mim!

José de Oliveira deslizou para uma cadeira e sentou-se pesadamente.

– Estou de rastos! Doem-me os músculos todos do corpo! Só me apetece dormir dois dias seguidos!

– Hoje não vais dormir muito mais! Temos a reunião às onze horas no Estado-Maior do Exército!

– É hoje?!