"A única maneira que temos de nos internacionalizamos é transformarmos as nossas marcas mais próximas, mais portuguesas, as nossas obsessões. É a única solução para não nos transformarmos num produto anódino que podia ter sido feito ou escrito em qualquer sítio", defendeu.

Rui Cardoso Martins, com mais de duas décadas dedicadas à escrita, assinou o argumento de duas produções recentes que têm uma ambição internacional e tiveram já presença em festivais estrangeiros: a longa-metragem "A Herdade", de Tiago Guedes, estreada em Veneza e atualmente em cartaz nos cinemas portugueses, e a série televisiva "Sul", de Ivo M. Ferreira, apresentada em fevereiro em Berlim e que se estreou no passado fim de semana na RTP.

"A Herdade" atravessa quatro décadas da história recente de Portugal, da transição do Estado Novo para a democracia, a partir da narrativa de uma família latifundiária. "Sul", com os ingredientes de um drama policial, está impregnado pela crise económica que afetou o país no início da década.

Em fevereiro, em Berlim, Ivo M. Ferreira sublinhava à Lusa que a série "Sul", protagonizada por Adriano Luz e com argumento de Edgar Medina, Rui Cardoso Martins e Guilherme Mendonça, foi feita como um "filme 'noir' mediterrâneo, lisboeta". "Esse esquema e esse género acabam por encapuzar o retrato da cidade e do país, e é isso que lhe traz uma graça especial".

Já a longa-metragem "A Herdade", depois de Veneza passou no festival de Toronto, deu origem a uma série, coproduzida com a RTP e já adquirida pelo canal Arte France, e é candidata a uma nomeação para os Óscares.

"A dimensão internacional é muito evidente tanto num como noutro. A ideia sempre foi essa; conseguirmos tanto com o filme como com a série - como com as outras coisas que eventualmente iremos fazer - que tenha dimensão internacional. O truque é, e acho que é muito evidente nestes dois projetos, que são coisas muito portuguesas", sublinhou o escritor.

Para Rui Cardoso Martins, que esteve na fundação das Produções Fictícias, escreveu ficção para humor, teatro, crónicas e romance, nos últimos anos tem havido um maior investimento e maior exigência de qualidade na escrita de diálogos na ficção audiovisual.

O autor inclui ainda duas ideias na equação: "Portugal está a ser redescoberto" fora de portas, por via do turismo, da cultura, e uma "espécie de canibalização" da ficção portuguesa, por via das telenovelas, deu lugar a um maior apoio à produção por parte da RTP.

Enquanto "A Herdade" e "Sul" fazem o seu caminho no pequeno e grande ecrã, Rui Cardoso Martins desdobra-se nesse "ofício respeitável" da escrita literária para diferentes géneros, do qual fala com algum pudor.

"Estou a ser convidado para muitas coisas que não posso aceitar. Estou a trabalhar com muitos produtores ao mesmo tempo", admitiu. Está satisfeito com o volume considerável de trabalho, mas reconhece que o argumentista de ficção vive na sombra.

"Tenho sido mais argumentista, é também uma forma de literatura, não tenho dúvida e é importante que se comece a dar importância ao argumentista. (...) Para se chegar a um filme tem de haver uma pessoa uns meses antes a penar muito para conseguir criar aquelas personagens, aquelas situações", lembrou.

Disciplinado na gestão diária desse ofício, Rui Cardoso Martins recorre à metáfora desportiva para descrever o que faz, entre a maratona e a corrida de cem metros.

Atualmente, e em diferentes fases de produção, tem em mãos a série televisiva "Causa própria", com Edgar Medina, inspirada nas suas crónicas "Levante-se o réu", escreveu um argumento para João Canijo, outro para Fernando Vendrell, sobre José Cardoso Pires e sobre o livro "De profundis valsa lenta", e está a terminar uma peça, encomendada pelo Teatro Nacional D. Maria II, sobre jornalismo, a estrear-se em 2020.

"Em primeiro lugar sou um romancista. É pelo meu trabalho de romancista que outros trabalhos surgiram. Estou feliz porque estou a trabalhar nestas coisas. (...) O meu trabalho mais duro, mais intenso é o que faço sozinho. Cinema e televisão são trabalhos de equipa", explicou.

Escritor premiado, Rui Cardoso Martins estreou-se em 2006 com o romance "E se eu gostasse muito de morrer", ao qual se seguiram "Deixem passar o homem invisível" (Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, 2009), "Se fosse fácil era para os outros" (2012) e "O osso da borboleta" (2014).

Ainda sem data de edição, está a terminar o romance "As melhoras da morte", cujo universo remete para a estreia "E se eu gostasse muito de morrer".