Em "Ruído Branco", Baumbach adapta o romance homónimo de Don DeLillo (1985) e dá-nos uma sátira social que, embora se situe anos 80, espelha a realidade e o zeitgeist dos nossos dias. Seguindo as pisadas do romance e obedecendo à sua estrutura de três partes, o realizador monta praticamente três filmes num. Temos uma parte inicial que satiriza o mundo académico, outra que evoca a comédia dos filmes dos desastres e ainda um segmento que revela uma grande aventura familiar. A colar as histórias desta comédia existencialista está a ideia da morte, ou, melhor, o medo de morrer.
No primeiro ato, ou primeiro filme, ficamos a conhecer os Gladney, que vivem nos subúrbios de uma cidade universitária no midwest americano. A família é composta por Jack (Adam Driver), Babette (Greta Gerwig) e os seus quatro filhos (de casamentos anteriores, apenas um é de ambos). E nestes minutos que funcionam de case-study ao que se vai e de introdução às personagens, além das dinâmicas energéticas intelectuais à mesa, percebemos que Jack Gladney é um professor-referência a nível nacional quando a matéria se centra em Hitler, e Babette, além de cuidar da família, ajuda os idosos de um lar a manterem-se em forma através de aulas de ioga e ginástica.
E é aqui que nos apercebemos e vemos duas coisas importantes: 1) que algo não está bem com a mulher do protagonista (afinal anda a tomar um misterioso comprimido que ninguém sabe muito bem o que é, de onde vem e para que serve); 2) a obsessão da sociedade moderna por gente famosa, através da cena que coloca Jack e o seu colega professor Murray Siskind (Don Cheadle) numa aula em forma de peça de teatro, em que o dueto ensina a importância de Hitler e de Elvis Presley na história contemporânea através das relações destes com as suas mães (uma das melhores do filme).
Finda a aula, dá-se então a transição para o segundo ato, que vai mergulhar diretamente num filme de desastres dos anos 80 como se estivéssemos perante uma história contada por Spielberg (influência clara e propositada). Na sua origem, um acidente: um camião chocou com um comboio e provocou um "Evento Tóxico Aéreo" sob a forma de uma monstruosa nuvem negra que paira nos céus da cidade, que entra em desgoverno completo. As estradas ficam entupidas por carros em fuga, os media dão notícias que desmentem cinco minutos depois, a sociedade fica virada do avesso, as hélices dos helicópteros causam surdina.
No entanto, não obstante todas as contrariedades e caos, os nossos heróis lá sobrevivem à catástrofe ambiental que afetou a região. E o terceiro ato, ou o terceiro filme, dá uma guinada de 180º na aventura familiar que colocou o professor e pai a conduzir em direção ao sítio certo enquanto fugiam da referida nuvem tóxica, e tenta responder às questões que colocou no primeiro, nomeadamente aquilo que aflige o casal Gladney: o seu medo da morte e o misterioso comprimido. No fim, já a rolar os créditos finais e terminada a road trip familiar apocalíptica, há uma coreografia que vale a pena assistir até ao fim. É dentro de um supermercado, há muita gente a dançar e há uma música nova (‘New Body Rhumba’) dos LCD Soundsystem.
O romance de Don DeLillo explora a vida familiar dos anos 80, em que os subúrbios americanos viviam à mercê dos "ruídos" comuns da sociedade daquela época (excesso de consumo, medos, fobias, receio do futuro num mundo incerto). Publicado originalmente em 1985, mantém-se fresco e atual, uma vez que os temas expostos (excesso de informação, a dependência generalizada de produtos farmacêuticos, o fascínio por celebridades e ícones da cultura pop, a validação das teorias da conspiração, a crise ambiental) não mudaram assim tanto.
Mas muitos consideram este clássico pós-moderno da literatura americana "infilmável". Um artigo da The Ringer ajuda a perceber porquê e explica que é difícil de arranjar uma componente visual que consiga captar e rivalizar com a qualidade de escrita de DeLillo, normalmente carregada de um humor difícil de transpor num ecrã. É um estilo muito próprio, estilizado, cujos "belos e estranhos parágrafos" misturam detalhes e descrições com "frases curtas e declarativas". Ou seja, fácil de interpretar e imaginar para quem lê, difícil para adaptar a quem quer passar essa mesma ideia numa imagem. No entanto, isso não impediu Noah Baumbach de tentar.
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