UM
Eu não estava com o Finny naquela noite de agosto, mas a minha imaginação gravou a cena a ferro em brasa na minha mente, pelo que a sinto como uma recordação.
Estava a chover, claro, e ele ia com a namorada, Sylvie Whitehouse, a deslizar pela chuva no carro vermelho que o pai lhe tinha dado pelo seu décimo sexto aniversário. Daí a poucas semanas, o Finny ia fazer dezanove anos.
Estavam a discutir. Nunca ninguém diz sobre o que discutiam. Na opinião das outras pessoas, isso não é importante para a história. O que essas pessoas não sabem é que existe outra história. A história que espreita sob e entre os factos da que elas veem. O que elas não sabem, a causa da discussão, é fundamental para a minha história.
Consigo ver tudo. A estrada escorregadia por causa da água e as luzes rotativas das ambulâncias e dos carros da polícia a cortar a escuridão da noite, a avisar quem passava: a catástrofe aconteceu, conduzam devagar. Vejo a Sylvie sentada de lado, com as pernas de fora do carro da polícia, a tamborilar com os pés no pavimento molhado enquanto fala. Não consigo ouvi-la, mas vejo-‑a dizer-lhes o motivo da discussão e sei, sei, sei. Se ele estivesse comigo, tudo teria sido diferente.
Vejo-os no carro antes do acidente: a chuva intensa, o mundo e o pavimento, tão molhado e escorregadio como se tivesse sido oleado para a sua passagem. Eles deslizam na noite, lamentavelmente juntos, e discutem. O Finny tem a testa franzida. Não está a pensar na chuva, nem no carro, nem na estrada molhada debaixo das rodas. Está a pensar na discussão com a Sylvie. Está a pensar no motivo da discussão, e o carro derrapa bruscamente para a direita, arrancando-o aos seus pensamentos com um sobressalto. Imagino que a Sylvie grita, depois ele tenta corrigir a trajetória, mas exagera e vira demasiado o volante.
O Finny tem o cinto de segurança posto. Não tem nada que se censurar. O mesmo não acontece com a Sylvie. Quando ocorre o impacto, ela é projetada através do para-brisas para a escuridão da noite e, contra todas as probabilidades, miraculosamente, só sofre pequenos cortes nos braços e no rosto. Embora seja verdade, é difícil imaginar, tão difícil que nem eu consigo conjurar essa imagem. A única coisa que vejo é o momento seguinte, o momento em que ela fica suspensa no ar, como se não tivesse peso, com os braços a agitar‑se em câmara lenta, o cabelo, ligeiramente ensanguentado e, agora, molhado pela chuva, a ondular atrás de si como o de uma sereia, a boca arredondada no O de um grito de pânico, a noite, escura e chuvosa, a contorná-la numa silhueta perfeita.
A Sylvie volta subitamente à terra. Bate no pavimento com um baque sonoro e fica inconsciente.
Jaz no pavimento, inerte. O Finny não tem um arranhão. Respira pesadamente e olha para a noite com um misto de choque e fascínio. É o seu momento de suspensão, como se não tivesse peso. A sua mente está vazia. Não sente nada, não pensa em nada; existe, perfeito e incólume. Nem sequer ouve a chuva.
Fica, sussurro-lhe. Fica no carro. Fica neste momento.
Mas claro que ele não o faz.
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