Podíamos dizer que são actores iguais aos outros, mas não é verdade. Nasceram com síndrome de Down, "uma perturbação do desenvolvimento intelectual", como explica a psicóloga de neurodesenvolvimento Patrícia de Sousa. A decisão de criar um grupo de teatro só com jovens adultos com Trissomia 21 não foi pacífica sequer para as famílias, menos ainda para os defensores do politicamente correcto e da inclusão social. O SAPO24 foi conhecer os bastidores desta história e assistir aos ensaios de "A Última Lição", a peça que estreia hoje, a terceira que a companhia apresenta ao público.

Ainda não são 18 horas e o ensaio já está a decorrer na Act, na Lx Factory, a escola de actores que tem como rosto principal Patrícia Vasconcelos, e que em 2014 fez nascer este projecto em parceria com a Associação Pais 21, que junta mais de 900 famílias. É uma actividade pós-laboral, já que a maioria do grupo, com entre 22 e 34 anos, trabalha ou estuda.

Suspiram quando se fala sobre sexo. Riem-se, inquietam-se. O tema é difícil para qualquer adolescente e eles, rapazes e raparigas, já não são teenagers, mas foi agora que despertaram para estas questões. O teatro acaba por ser usado como terapia e esta peça em particular presta-se a isso: tem uma parte encenada e outra de improvisação. Às vezes o tema dá discussão para lá do aconselhável para uma sala que se espera cheia de público e é preciso colocar um travão: "As dúvidas vocês tiram depois uns com os outros", diz a actriz e encenadora Elizabete Pedreira para pôr um ponto final à algazarra. Pilar tem muitas. Henri diz que até ficou com calores e despe o pullover verde.

Têm as hormonas aos saltos, mas o sexo está longe de ser o tema mais quente da peça. O que está aqui em discussão, aquilo sobre o que todos querem que se fale sem tabus, é sobre Trissomia 21. "Eu detesto a Trissomia, não gosto de ser como sou. E não quero falar mais sobre isto", dispara Pilar, a mais velha de sete irmãos. A ideia é que cada um diga o que lhe vai na alma, sem guião. Mas no ensaio seguinte o discurso é outro: "A Trissomia 21 é um cromossoma a mais", começa a despejar Pilar, como se fosse uma enciclopédia. "Não", diz Elizabete. "Não queremos que digas o que é a Trissomia em termos clínicos, queremos que digas o que é a Trissomia 21 para ti, o que isso te faz sentir. Eu tenho hipertensão e não gosto nada, vou ter de tomar um comprimido até ao fim da vida". "Eu tenho velhice", diz Salmo Faria, professor e encenador. E todos dão uma gargalhada.

Muitas vezes os actores vão para casa e, no regresso, o seu discurso mudou. Ora porque são inconstantes, ora porque os pais e o seu instinto protector falaram mais alto: "Sexo nem pensar", "a Trissomia não é uma doença", "tu és igual aos outros". Têm a cabeça cheia de dogmas. E um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde.

Patrícia de Sousa, especialista em Trissomia e em Autismo, trabalha com alguns destes jovens adultos desde a pré-adolescência e há muito que desenvolve projectos com a Pais 21, assumindo que "o papel do psicólogo vai além do gabinete". Reconhece que "o terreno é movediço" e lembra as críticas daqueles que, mesmo na sua área, consideram que "juntar um grupo de jovens com síndrome de Down e "retirá-los" da sociedade é artificializar um contexto". Mas, contrapõe, "não aceitar a diferença não é ser inclusivo e esconder a realidade também não é ser verdadeiro, é ficcionar o real".

À medida que vão assistindo aos ensaios (são muito poucos os pais presentes, normalmente vêm apenas buscar os filhos), percebe-se que os pais vacilam entre o escandalizado e o divertido. A preocupação maior, descortinamos, é com aquilo que os outros possam pensar, sobretudo amigos próximos e avós, que vêem sempre estes netos como meninos pequeninos - "que não são". "Este é um processo de aprendizagem para todos", afirma Patrícia de Sousa. "Uma lição de vida".

"A Última Lição" não foi escolhida à toa. A peça é inspirada em "A Lição", de Eugène Ionesco", uma sátira ao ensino, combinada com a "A última lição de Marcelo", a aula que o presidente da República deu na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa para marcar o fim da sua carreira de professor, trazendo ainda para o palco três temas sérios inteiramente escolhidos pelos alunos: sexo, touradas e Trissomia 21. O resultado é uma comédia com momentos de muita seriedade.

"Queríamos saber que assuntos os inquietam. Ficaram estes três temas como poderiam ter ficado outros, mas era importante dar-lhes voz. De um modo geral, apoquenta-me que os pais os condicionem, quando a maior riqueza é o seu pensamento. Muitas vezes falamos em inclusão, queremos ser inclusivos, mas excluímo-los por não os deixar expressar-se", afirma Elizabete.

Noutra altura, Patrícia de Sousa reforça: "Estes processos cognitivos são de uma exigência extraordinária. Queríamos que o que vão dizer em palco espelhasse as conversas que têm quando estão fora de casa, quando falam entre si. Para isto também é preciso preparar a família". E vai mais longe: "Repare, eles começam a conhecer o corpo, querem mexer no corpo. Muitos pais, e estou a generalizar, não estou a falar deste grupo, preferem dizer que um jovem fez chichi a admitir que se masturbou", conta a psicóloga. "Claro que os pais não o fazem por mal, mas a condescendência é negativa. Esconder a realidade não ajuda, é preciso explicar".

E eles querem explicações. Isso é notório no "bate-boca", como diz Salmo, que muitas vezes se gera em cena. E também no que calam. Inês, a diva da peça, fala sobre tudo, mas passa o tema sexo com um ar de enfado. Calha bem na personagem que representa, mas a verdade é que o faz porque o assunto a incomoda.

Sexo é bom, não há direito de fazer sofrer os animais e ter Trissomia 21 não é um problema

Já Ana não tem papas na língua e explica tudo tintim por tintim. Basicamente, é a favor da felicidade. Sexo é bom, não há direito de fazer sofrer os animais e ter Trissomia 21 não é um problema. "O que quero provar com esta peça é que não sou superior a ninguém, mas também não sou inferior a ninguém", afirma sempre a sorrir e convicta das suas opiniões. Há um único assunto sobre o qual Ana, sportinguista ferrenha, se recusa a falar, e esse não é abordado na peça: Bruno de Carvalho.

Agora que descobriram os seus pares, estes jovens adultos querem mais. Estavam tão incluídos na sociedade que nem tinham dado conta de que havia gente igual a si, com a sua fisionomia, as suas dificuldades, os seus gostos e desgostos.

"Temos de admitir que este processo é de uma grande exigência para os pais. É um grupo heterogéneo e isso é muito interessante. Uns nunca tinham tido telemóvel, outros nunca tinham andado de transportes públicos, outros não se vestiam sozinhos. Agora todos se telefonam, escondem-se para andar aos beijos, vão de transportes públicos para os ensaios, divertem-se que nem uns doidos". Crescem os pais, crescem os filhos. "Se não lhes damos esta oportunidade, se não lhe proporcionamos momentos onde descobrem outros iguais a si, estamos a ser negligentes", assegura Patrícia de Sousa.

Por isso é tão importante ajudar a gerir as relações sociais. E, sempre que é preciso, Patrícia de Sousa está lá para dar apoio também aos pais e aos professores, mesmo não trabalhando individualmente com todos os jovens do grupo.

Se há alguma condescendência da sociedade em relação às pessoas com Trissomia 21, ela fica fora dos ensaios. No de hoje, Inês Alves - ou Inês Big, como é carinhosamente tratada para se distinguir de Inês Vigário, a diva - faz beicinho e até deita lágrimas por lhe terem cortado algumas deixas. Não que não as tivesse decorado, mas muitas vezes o improviso fala mais alto e o gesto de alguém sugere uma alteração de última hora que "vem mesmo a calhar". Desta vez tudo acabou em risota, mas nem sempre é assim. É preciso disciplina e se é necessário um ralhete, ele não se faz esperar.

A verdade é que um ensaio de duas horas por dia uma vez por semana não é o ideal para nenhuma companhia de teatro. Neste caso, porque são precisas aulas de terapia da fala ou de expressão corporal, por exemplo, menos ainda. Além disso é difícil juntar todos a horas e o cansaço vai-se acumulando – uns estudam no Instituto Politécnico de Santarém, outros têm os seus empregos: Afonso trabalha no Banco de Investimento Global, João Pedro e Henri na Starbucks, Ana é administrativa, Inês Vigário está na Schindler e Tiago na Fundação Champalimaud. Conciliar tudo nem sempre é fácil.

Salmo e Elizabete vão dando indicações aos actores: "Não, quando dizes isso não sais do teu lugar. Levantas-te e ficas" ou "Inês, és uma diva. Diz isso tudo com um ar enjoado, sem risinhos". Ao mesmo tempo, aproveitam cada sugestão válida dos alunos e tentam integrar as suas ideias no texto, que foi sendo alterado quase até à última semana. Foi assim que surgiu o papel de Marcelo Rebelo de Sousa, representado por João Pedro, fã incondicional do presidente da República. "Vamos mudando e usando criatividade deles".

Ao contrário de Salmo, que tem um mestrado na área da deficiência, Elizabete não tinha qualquer experiência na área quando foi desafiada por Patrícia Vasconcelos para participar neste projecto. "Cheguei à Act logo no início, em 2014, só com a minha formação de actriz, e ao fim de duas horas percebi que estava na minha praia. Trato-os tal e qual como trato quaisquer outros actores, nunca os vi como diferentes, como coitadinhos. Como qualquer pessoa, cada um tem as suas necessidades, cada um tem as suas especificidades. É assim com os profissionais também, cada um tem os seus pontos fortes e os seus pontos fracos, é preciso potenciar o que têm de melhor. Como sempre, quanto mais trabalhamos, mais aperfeiçoamos o nosso trabalho".

Elizabete é a "generala", mas uma generala "magnífica", com diz Ana. E confidente. "A vida deles é sempre intensa e dramática. É preciso saber ouvir e aconselhar", afirma. Esta é a terceira peça que o grupo apresenta ao público, depois de "Romeu e Julieta" e de "A Maior Flor do Mundo", uma adaptação do conto infantil de José Saramago. "E eu não tinha ideia do bem que isto lhes estava a fazer em termos de desenvolvimento cognitivo", surpreende-se Elizabete. Mas está. Tanto que já foi criado um segundo grupo, também na Act, de oito a nove adolescentes entre os 13 e os 16 anos de idade.

Salmo recorda que, "se os pais e as famílias querem que estes miúdos sejam aceites pela sociedade, têm de trabalhar para que eles sejam mais autónomos, têm de os deixar caminhar pelos seus pés". E lembra que os espectáculos ajudaram a tornar a companhia cada vez mais profissional, porque "tudo o que existia até então era uma espécie de peças de final de curso ou teatros amadores". Estes jovens actores sentem a diferença e o público também.

De resto, os pais destes jovens são verdadeiros D. Quixotes, muitas vezes a lutar contra moinhos de vento. Para as classes mais desfavorecidas as coisas são ainda pior. Patrícia de Sousa lembra que o Estado tem aqui um papel importante e devia pensar que, ao dar ferramentas a estas famílias e a estes jovens que lhes permitam ser mais autónomos, está a contribuir para que, mais tarde, eles façam os seus descontos e tornem o Estado mais robusto. Cerca de 20% da população tem problemas de neurodesenvolvimento. "A primeira preocupação devia ser ao nível da prevenção, mas, já que não é assim, se se investir desde a nascença, vamos dar-lhes competências, gerar mais emprego nas áreas sociais e os pais vão sentir-se mais acompanhados".

Parece simples, só que não. E há burocracias que ninguém entende. Por exemplo: para ter direito a um subsídio anual que pode rondar os 100 euros, todos os anos as famílias têm de apresentar um atestado médico a provar que aquela pessoa tem Trissomia 21. Quando é sabido que a Trissomia 21 não tem cura, é para o resto da vida.

Mas esta não é uma equipa fácil de abater. Nem pais, nem professores nem alunos. Nem mesmo quando, a menos de uma semana da estreia, são "obrigados" a improvisar um ensaio numa pequena sala no primeiro andar do Fórum Picoas porque o auditório está ocupado por uma empresa. Afinal, toda a vida improvisaram.

À saída, Rodrigo, "o professor", confidencia orgulhoso: "Esta é a primeira peça que apresentamos como profissionais". Que "A Última Lição" seja a primeira de muitas. Hoje, às 19 horas no Fórum Picoas e amanhã às 15 horas.