Se há 50 anos alguém dissesse a Ercidia que um dia ia viver em Portugal, no Algarve, na cidade de Lagos, e que ia estar à frente de um estaleiro naval, provavelmente não acreditaria.

Ao mesmo tempo, é difícil passear na marginal da cidade algarvia de Lagos, no caminho que a ribeira de Bensafrim faz até tocar o mar, olhar para aquelas filas de embarcações, suspensas sobre o alcatrão à espera de serem devolvidas ao oceano, com os mastros a romper pelo céu e a desenhar uma floresta despida de folhagem, onde se ouvem apenas os cabos a baterem no ferro e o som das gaivotas, e imaginar que um dia nada daquilo existia. Que aquela era, há poucas décadas, uma zona pantanosa à mercê da disposição das marés da ribeira.

Estes dois quadros, o das voltas que uma vida dá e o das raízes que criamos, que fundamos, unir-se-ão mais à frente. Por agora será, no entanto, importante dizer que esta é uma história que podia ser adjetivada de várias formas. Podia ser uma história de um casal de retornados, mas não é só isso. Podia ser a história das lágrimas e suor de uma mulher que ficou viúva, com um estaleiro nas mãos e três filhos, mas não é só isso. Podia ser uma história feminista, do sucesso de uma mulher no mundo dos negócios, mas não é só isso.

Esta é a história de Ercidia e de um estaleiro chamado Sopromar. É a história de Lagos, mas não só. É também a história da Sandra, do Pedro e do João. E do outro João, o senhor João. É a história do Zé Marques e do Luís Mário. É sobre como vamos parar a sítios que nunca imaginámos, é sobre cair e levantar, é sobre superação e sobre o mar, aquele que observamos e aquele que está dentro de nós.

I

Começamos em Angola, país para onde Ercidia foi com apenas três meses de idade, terra onde aprendeu a andar e viveu até aos 23 anos, até a revolução a devolver a Portugal em agosto de 1975.

Conta que na altura, Angola era “um país já muito desenvolvido”, “onde as pessoas não tinham dificuldades” e a “vinha dava duas vezes num ano”. “Não era preciso nem cultivar, nem cavar muito porque as coisas davam por natureza”, relembra. O povo angolano, esse, recorda-o com saudade pela generosidade, às cidades pelo avanço que levavam em relação às portuguesas, “já com grandes estradas, cinemas ao ar livre… coisas maravilhosas”.

A vinda para Portugal é “um choque muito grande”. Recorda-se do carro que trouxe, um Ford Ton XL, que mal passava nas estradas estreitinhas de São Martinho de Valbom, em Braga, a terra do seu marido, que conheceu e com quem casou em África.

“Eu tinha vindo com o meu sogro, o meu cunhado e os meus três filhos. Foi muito complicado. Não havia luz, a água era da fonte e ainda assim nós éramos dos poucos com água em casa. Foi complicado aprender a viver uma vida que nunca tinha vivido”, recorda.

No norte também nunca lhe faltou nada, “havia fartura, broa, vinho, o que a terra dava”, mas a realidade era outra, “numa aldeia onde havia meia dúzia de casas e onde toda a gente se conhecia”.

No entanto, nada disso foi impedimento para Ercidia se adaptar, uma mulher que diz que nunca gostou de ficar para trás. Conta que se sentava à mesa e comia a broa com as malgas de vinho, descalçou-se e trabalhou a terra. “Recordo-me do dia em que a minha mãe voltou de África e me veio buscar. Estava descalça e com roupas com que ela nunca me tinha visto. Assim que me viu disse: "Ai, a minha filha! Ai, como tu estás", como quem diz "já não te conheço”.

João, o seu marido, chegaria só em novembro de 75. Foi buscar a família e mudaram-se para uma aldeia perto de Aveiro, “para uma casa cor-de-rosa que lá está”. “Lembro-me que fazia muito frio e que ele esteve em Aveiro apenas dois ou três dias. Partiu para o Algarve, onde sabia que havia pessoas com quem tinha trabalhado em África, onde tinha abastecido embarcações e feito trabalhos de mecânico. Havia gente em Portimão à espera dele. Assim que chega lá, liga-me: ‘mulher, arranjei terra para vivermos. Estou em Portimão, já tirei a camisa em janeiro. Já estou a trabalhar’. O homem chega a Portimão de manhã e passado umas horas já tem trabalho”, ri-se.

João foi para Angola ter com o pai aos 13 anos de idade. “O meu sogro tinha uma tasca, mas tinha-se oferecido como voluntário para o mato e o João ficou com uma família. De repente começa a trabalhar. Com 16 anos, estava a pagar um terreno a uma empresa chamada Pastorinha. Com 16 anos já tinha um terreno! Era um indivíduo terrível para o negócio. Na tropa, nas viagens, trazia pássaros, vendia pássaros, fazia cintos... Lá tínhamos terrenos, tínhamos uma vida… a única coisa que me faltava ter foi quase um avião”, brinca Ercidia

Tudo o que João ganhava em Angola, ficava em Angola, “nunca aceitou mandar dinheiro para Portugal”, lembra Ercidia. “Recordo-me de uma vez ele ter na mão uma nota portuguesa e de dizer ‘não quero isto no meu bolso’ e despachou a nota. Quando voltámos, vivemos de algum dinheiro que trouxemos e dos 500 escudos que recebíamos.

II

Com o marido instalado, Ercidia “pegou nos miúdos e em algumas coisas que tinha trazido de Angola” e foi para o Algarve numa carrinha de caixa aberta. “Foi uma viagem horrível, não se podia parar, nem para comer. O condutor só dizia: ‘nunca na minha vida fiz uma viagem tão grande’”.

Chegados a Portimão, com os três filhos, a Sandra, o Pedro e o João, juntaram-se ao pai e alugaram uma casa na Infante D. Henrique. “Naquela época ninguém queria alugar a casa a retornados, éramos vistos como cães, mas um senhor aceitou alugar-nos a casa. Eram três contos de renda, muito dinheiro para a altura e que nós não tínhamos. O que é que o João faz? Havia um rapaz que tinha vindo de Angola também, com uma embarcação de pesca, e dispensámos-lhe um quarto, o apartamento era grande, tinha seis assoalhadas. Partilhámos essa casa durante muito tempo e foi muito complicado. Os miúdos habituados a andar fora, agora num apartamento, eu sem carro porque o deixei no norte com a minha mãe para ela fazer feiras…”.

Ao mesmo tempo que a família procurava adaptar-se, João fazia-se em casa. Montou uma oficina e com a ajuda de um professor da escola industrial de Portimão montou negócio. “Trabalhava de dia e à noite ia para a escola industrial fazer peças para no outro dia ter material para trabalhar”.

Fazendo jus à descrição de “homem danado para o negócio”, feita por Ercidia, João aproveita uma oportunidade a poucos quilómetros de distância para a construção de um estaleiro em Lagos. Na cidade vizinha, “nas marés vazias”, constrói uma rampa com sulipas para fazer subir embarcações de pesca. “Na altura era só pesca, começou a meter uma pessoa, depois meteu outra, em meados dos anos 80 ele já tinha 11 pessoas a trabalhar para ele”.

Ouvir hoje falar do “senhor João”, do “patrão”, do “marido”, é como ouvir falar de uma lenda. A proximidade com que os funcionários que hoje trabalham na Sopromar, o Luís Mário e o Zé Marques, o recordam é como quem fala de família: um homem rígido para quem “trabalho era trabalho e conhaque era conhaque”, mas que não descurava nem uma coisa nem outra. De Ercidia, as palavras são de um homem muito à frente do seu tempo.

João parece um mito, o herói de um livro. Um homem de passagens literárias que muito jovem partiu para outro país, conseguiu muito com trabalho árduo, perdeu muito como retornado para o seu país e não baixou os braços.

III

“Problema: aquele espaço, em Lagos, era a título precário e o João, teimoso que nem cornos, em vez de fazer uma construção simples, faz as oficinas em alvenaria. Para a obra pedimos três mil contos ao banco, dos quais 1500 ao Banco Pinto & Sotto Mayor e 1500 contos ao CIFRE [Comissão Interministerial de Financiamento a Retornados]. Ele começa a montar aquilo e o construtor não lhe acaba a obra. É enganado. O João ficou tão fulo que um dia, no trajeto Lagos-Portimão, apanha o homem numa travessa da Infante D. Henrique, que ele tinha lá ido fazer uma obra. O João ia matando-o. Deu-lhe tanta porrada, tanta porrada que abriu-lhe a cabeça de uma ponta à outra. Só parou quando ele disse 'Ai João que tu matas-me'. Aí ele ficou completamente desarmado e largou-o”, conta Ercidia.

A queixa do empreiteiro à polícia é apenas o início. João é chamado a tribunal e, para ficar com o cadastro limpo, vê-se obrigado a perdoar a dívida ao homem pela agressão. Ao mesmo tempo, a Junta Autónoma dos Portos tapa-lhe a entrada do estaleiro, impedindo a rampa com a qual eram puxadas as embarcações. Era preciso que o estaleiro saísse dali para que pudesse ser construída uma marina.

Os entraves à atividade do estaleiro fizeram com que João tivesse um esgotamento. Ercidia conta que “a Junta deu-lhe o espaço onde existe hoje a Sopromar, mas queriam que ele deitasse tudo abaixo, e João dizia assim: 'como é que eu posso deitar isto abaixo se eu tenho dinheiro pedido ao banco, se eu tenho famílias aqui a trabalhar? Vocês vão-me deixando fazer o estaleiro lá no outro sítio e eu vou gradualmente deitando tudo abaixo’. Mas nunca ninguém o ouviu”.

Da casa em Portimão saía Ercidia com os filhos todos os dias para o estaleiro para ajudar. A Sandra, em cima de um banco, ajudava a cozinhar, o Pedro e o João ajudavam o pai no que podiam e sabiam. Ercidia, para além de tomar conta dos filhos, passa também a cozinhar para o café em Ferragudo que o marido tinha aberto em sociedade. Salvou-lhe o facto de, no norte, a mãe já ter conseguido comprar uma carrinha e de ter o velho carro consigo.

“Fazia comida em casa, levava-a para o café e aquilo desaparecia tudo, que eu tinha mão para a cozinha. Cozinhava desde os meus nove anos! Fazia coisas que as pessoas não estavam habituadas a comer, mão de vaca com grão, feijoada, dobrada. Tudo pratos do norte. Nós tínhamos um sócio, que era o António, e ele dizia: "Dona Ercidia, a comida acabou". E eu tinha que ir à praça outra vez a correr, comprar mais comida para fazer e levar para lá”, conta.

Financeiramente as coisas estavam melhores, o estaleiro, impedido de tratar de barcos, virava-se para a carpintaria, serviços de torneiro e construção civil. João não desistia, nem de Lagos, nem do sonho do seu estaleiro naval, só o adiava. “Nós na altura fazíamos tudo, fazíamos reparações no porto de pesca, trabalhávamos para a cooperativa agrícola, para charruas, betoneiras, encher aqueles dentes das máquinas v600. Tudo o que era máquinas e motores ia tudo lá. Eu via, sempre atenta, o meu marido a fazer os trabalhos”.

 "Este estaleiro nunca se há de fechar, nem que a minha companhia tenha de ser um bêbado. Trago um garrafão de vinho e ele fica aqui à minha beira. Jamais vou fechar isto".

 

IV

“Tínhamos 12 mil contos, quando ele morreu, em 89. Na altura era muito dinheiro. A gente não fazíamos vida, era trabalho e convivíamos uns com os outros. Bebíamos coca-cola, fazíamos o catembo com o vinho e fazíamos o café com a água e gelo. Não comíamos nem queijo nem manteiga, comíamos margarina. Os miúdos é que comiam queijo e bifes. Nós comíamos sardinhas albardadas e cavalas, que era o peixe mais barato, e aquela carne de terceira. Queríamos juntar algum dinheiro para se fazer aqui uma coisa como deve ser, sempre a pensar em Lagos”, conta-nos.

Mas o entrave burocrático arrastou-se. João começou a ser bastante pressionado para demolir o estaleiro e para o construir noutro local. Ao esgotamento somava-se um aneurisma, identificado há cerca de 10 anos. Durante essa década salvam-lhe as viagens que fazia ao norte, para a casa da sogra, onde descansava. Ele nunca ia desistir, conta Ercidia, “um dia ele disse-me assim: 'este estaleiro nunca se há de fechar, nem que a minha companhia tenha de ser um bêbado. Trago um garrafão de vinho e ele fica aqui à minha beira. Jamais vou fechar isto'".

“Quando ele começou a adoecer, comecei a vir para aqui ajudá-lo. Tínhamos comprado a Azur, uma loja que vendia uma série de parafusos e material. Mas entretanto ele começou a piorar. Ao mesmo tempo, a rapariga que estava aqui a trabalhar no escritório sai e eu vou para ali. Eu só sabia cozinhar, não sabia fazer faturas, não sabia fazer nada. Nem sabia o que era um tubo, o que era um parafuso, nem que roscas... Eles hoje vêm-me procurar para perguntar 'Dona Ercidia, que parafuso é este?’. Tenho tudo na minha cabeça, porque eu tive que aprender. Vou para o escritório, tinha 30 anos, menos talvez, tudo o que era vendido a metro eu vendia ao quilo e ficava tão revoltada. O João dizia-me 'deixa lá mulher, hoje perde-se, amanhã ganha-se. Não tenhas problema nenhum'”.

Ercidia começa a ser obrigada a assumir as rédeas do negócio à medida que João fica cada vez mais em baixo. “Os médicos diziam que já não havia nada a fazer, mas ele nunca deixou de trabalhar. Até que chegou uma altura em que ele passava já muito tempo na cama, já mal comia e eu tinha de fazer tudo. Cozinhava, fazia compras, tinha de ir buscar o material em Portimão, tinha que faturar, tinha que vender e tinha os meus filhos. Hoje digo: como é que é possível eu ter aguentado aquilo que aguentei. Mas é possível quando a gente ama e quando alguém é algo assim para nós”, diz, revivendo a memória.

Hoje, agradece aos funcionários que nunca a abandonaram, que estiveram sempre ao seu lado a trabalhar pela noite fora.

"Tenho dois rótulos, um é de retornada, outro é de viúva. Horrível, são dois rótulos que não se vêm, mas que estão na alma”.

 

V

O inevitável acabaria por acontecer. “Há uma altura que o João resolve ir para cima, para o norte. Era perto do 27 de outubro, o que calhava bem porque era feriado em Lagos e nós íamos ter com ele lá acima. Eu sempre fui positiva. O João pegou no carro e eu pedi-lhe que fosse telefonando. A Sandra teve um pressentimento e disse 'mãe, não deixes o pai ir sozinho'. O João, o meu filho, acabou por ir com ele… É engraçado que todos os meus netos têm o nome João, ou no princípio ou logo a seguir. Todos eles quiseram meter o nome do avô aos filhos”, sorri.

Um mês antes, João tinha passado a quota dele de Ferragudo para o nome da mulher, “ele já tinha qualquer coisa na cabeça”, diz Ercidia. Uma semana antes de ir, antes do início da aulas, terá dito a um dos filhos 'sê um homem, toma conta da tua mãe e dos teus irmãos'. Numa das prometidas chamadas, Ercidia perguntou ao marido se havia alguma coisa que precisa-se de saber sobre o negócio - "aquilo não estava a andar a 50%, estava 15. Mas para mim o importante era que não parasse" - ao que ele terá respondido, pouco mais do que "o que me vale és tu".

Parecia anunciado aquele sábado em que ligaram a Ercidia para ir para cima, que do alto do seu positivismo jamais pensou que seria para enterrar o marido.

“Quando chego a casa da minha mãe... vejo gravatas, vejo muita gente. Bloqueei. Não o vi mais. O meu filho, o João, é que apanhou tudo, a moeda, as cautelas, as cartas. As canetas com que ele escreveu... quando ele fez tudo o que fez pensou 'esta desgraçada vai ser condenada por isto'. Não é justo, mas mesmo assim houve muito falatório. Diziam que eu tinha amantes, que o meu filho João estava doente e que eu não lhe dava dinheiro para se curar. Mas eu consegui superar isso. Tudo. Tenho dois rótulos, um é de retornada, outro é de viúva. Horrível, são dois rótulos que não se vêm, mas que estão na alma”.

“Voltamos para baixo na segunda-feira. Chovia tanto e a minha Sandra disse-me:'Ó, mãe, tu sabes que o pai gostava de dormir com o barulho da chuva'... devia ter morrido aqui, em Lagos'”, suspira.

“Nada disto seria possível se eu não tivesse bons filhos. Tive de descer à idade deles muitas vezes. Saía com eles, eles nunca me deixaram. Se não fosse os meus filhos serem aquilo que são, se não tivessem enveredado pelo caminho do trabalho, nada disto era possível. Sem eles eu não tinha conseguido caminhar”.

 

VI

Poucos dias depois, estão em Lagos a pisar o exato local onde hoje é a Sopromar, o sonho de João. Numa quase reunião informal com o então presidente da Junta Autónoma dos Portos, Ercidia jura que não teve papas na língua e disse-lhe: "vocês mataram o meu marido".

Dali a poucos dias reúne-se com a Junta, pela primeira vez sentada no lugar que há poucos meses era ocupado pelo marido. "Neste momento, nesta cadeira, quem está sentada sou eu. Aqui nesta cadeira muitas vezes esteve o meu marido e vocês nunca o ouviram. Eu quero-vos pedir que me deixem trabalhar porque eu vou conseguir. Mas vocês têm de me deixar trabalhar", pede.

Finalmente, deixaram.

Aqui começa a nascer a história da Sopromar que se conhece hoje. Ainda houve muito suor, trabalho e lágrimas, mas a partir daqui o peso era mais leve, com os filhos e Ercidia a concretizarem o sonho do pai e marido.

“Nada disto seria possível se eu não tivesse bons filhos. Tive de descer à idade deles muitas vezes. Saía com eles, eles nunca me deixaram. Se não fosse os meus filhos serem aquilo que são, se não tivessem enveredado pelo caminho do trabalho, nada disto era possível. Sem eles eu não tinha conseguido caminhar”.

A obra nasce assim, sem projeto, feito a partir do desenho do pai de Hugo, o namorado da filha de Ercidia.

A construção da marina de Lagos dá um grande impulso financeiro ao estaleiro. “Começámos a fazer a serralharia aqui destas obras, eu acordava às seis da manhã para cortar material para adiantar o trabalho, para que quando eles chegassem começassem a soldar, a Sandra a fazer cavilhas ao torno, um senhor de Portimão a dizer-lhe como é que ela fazia, o João a soldar, o Pedro a cortar material... A Marina de Lagos, mesmo o edifício da administração, passou-nos tudo pelas mãos. Aquelas guardas da ponte, foi tudo feito por nós. Então o que é que nós fazíamos? Fazíamos tudo com um trator, nós não tínhamos máquinas, então fazíamos uns tubos na terra e com breu, um produto que se põe nos tubos e que depois se dá calor para vergar, e depois com um trator fazer os moldes para fazer aquele trabalho que ali está”, conta.

VII

Há 30 anos, no ano em que João morreu, Sandra começou a namorar com um rapaz chamado Hugo. A viver em Lisboa, pouco tempo demorou até que começasse a vir ao Algarve nos fins de semana para ajudar na empresa, “programas, orçamentos…”.

“Tive a sorte de conhecer o meu sogro quando era miúdo. O meu pai era amigo do meu sogro e nós estivemos juntos várias vezes quando ele era vivo. Depois de ele ter falecido, mais ou menos um ano depois, comecei a namorar com a Sandra, que é hoje a minha esposa. E foi até hoje”, conta-nos Hugo.

Para Ercidia, Hugo torna-se um filho. "Ele encontra aqui um porto de abrigo e como não tem a dor do crescimento consegue ter uma visão diferente. Consegue tomar decisões de gestão que alavancam a empresa muito para a frente”, conta.

Hugo sempre teve uma paixão por barcos, confessa. Mas nada sabia de reparação naval. “Tive de aprender tudo, sobretudo o inglês técnico, que tem nomes muito específicos. Foi começar do zero e comprar uma série de livros todos em inglês e começar a estudar. E resultou”, diz.

créditos: Rodrigo Moreira Rato | Madremedia

O que a Sopromar era e é não tem comparação, sobretudo em termos de dimensão. “Era um estaleiro pequenino com cerca de seis ou sete funcionários. Hoje tem 65 aqui e mais 20 em Lisboa. É uma realidade um bocadinho diferente e tem vindo a crescer sempre ao longo dos anos, o que nem sempre é fácil. Sobretudo, quanto mais crescemos, mais difícil é ter um crescimento que se veja. Mas obriga-nos a estar sempre atentos, a criar mais condições, mais espaço. É uma luta diária. Não só minha, mas da Sandra, do Pedro…”, explica.

Ercidia decide, então, entregar parte da quota da empresa a Hugo. Coincidência das coincidências, a escritura fica marcada para o dia 14, data em que João faleceu, “dia em que coisas boas nos acontecem”, diz Ercidia.

VIII

Uma boa história, de altos e baixos, tem de ter uma boa história de amor. Esta tem duas, separadas por 14 anos.

Um dia, Ercidia recebeu uma chamada da marina de Lagos, perguntavam-lhe se conhecia alguém do mergulho. Sem nenhum contacto conhecido, perguntou ao genro, que lhe indicou uma empresa de Sines para a qual Ercidia liga para saber se querem ficar com o trabalho.

“Eu tinha a rampa para fazer e pensei: vou ajudá-los agora e eles, mais tarde, vão-me ajudar a mim. Fornecemos-lhes ali um espaço para eles terem o equipamento, fornecemos-lhes o oxigénio e o gás para eles cortarem o material e assim foi. Eles trabalhavam, iam guardar o equipamento e a obra foi feita por eles. Durante vários anos fui telefonando para a empresa, na altura era o Zé Manel que estava à frente, para saber quando é que me podiam vir fazer a rampa. Nós tínhamos um apartamento que tinha valorizado e finalmente tínhamos dinheiro para a pagar!”, sorri Ercidia.

Um dia, Zé Manel vai até à Sopromar para construir a rampa, que ficaria pronta em janeiro de 2000. “Ele sabia que eu estava sozinha e tentou, mas eu estava fechada completamente ao mundo. E ele como é um indivíduo tímido não voltou a tentar mais. E na reta final, depois da rampa feita e paga, deu-me o clique e fui eu que avancei, com 47 anos”, diz Ercidia entre sorrisos.

Um novo amor foi também um novo renascer. Duro no início, perante os filhos, foi conquistando o espaço na família e ficando. Hoje, esse amor pôs Ercidia a andar de Harley Davidson e Zé Manel também na Sopromar, a gerir o parqueamento.

IX

Hoje olha-se para a Sopromar e não se pode sequer imaginar que isto aconteceu. Parece um pequeno império que sempre esteve ali, com os barcos erguidos, de vento em poupa, com um restaurante entre as instalações, uma loja de produtos náuticos e ainda alguns quartos para os clientes com reparações mais demoradas ou que possam impedir que este pernoite na embarcação.

“A diferença é como do dia para à noite”, diz Sandra, que se lembra perfeitamente do tempo em que não ter aulas era vir para o estaleiro fazer comida e ajudar a mãe.

créditos: Rodrigo Moreira Rato | Madremedia

Hoje, olha para tudo isto e sabe o que sempre moveu a família: o “continuar o sonho dele [de João], a nossa alegria, o nosso sonho, foi fazer aquilo que não o deixaram fazer”. “Uma pessoa que veio de África, que perdeu tudo, que veio para cá com uma mão à frente e outra atrás, que pede um financiamento, constrói, passado três meses daquilo estar tudo construído e começar a andar, dizem-lhe que é para fechar, que vão construir uma marina... foram duas facadas que levou... Um homem de guerra, de trabalho, um lutador, que vem com três filhos e uma mulher, dizerem-lhe que é tudo para deitar abaixo, para destruir... é duro. É cruel”, recorda.

“As pessoas chegam aqui e já veem este mundo e acham que foi tudo muito fácil e nós que construímos isto tudo do início... nós aqui inicialmente fizemos o muro, levantámos paredes, rebocámos... uma pessoa fez de tudo. Eu acho que o meu pai está orgulhoso. E este crescimento não é fácil. É uma batalha diária, levar este barco para a frente, e é um grande barco que temos nas mãos. Muita força, muita união, muita garra, muita orientação”, confessa.

X

“Quem vive à beira do mar tem uma mente, brutalmente, acima. A gente vê o mar, tem tranquilidade. O mar ajudou-me muito, muitos banhos de inverno, que eu ia correr e transpirava muito, tomava banho e depois ia para o estaleiro. O mar transmite uma paz, uma tranquilidade... quem mora à beira do mar pode-se dar por feliz porque tem aqui ao lado uma coisa forte”, conta Ercidia.

O mar esse, não lhe entra só pelo olhos dentro. “O meu pai em Angola foi prospetor da DIAMANG e em Portugal foi uma pessoa que tinha uma ervanária. Escutei muitas coisas que ele me disse. A minha tendência é para procurar as coisas naturais. Há cinco anos, fui ao doutor Manuel Pinto Coelho e ele diz-me que eu tenho de beber água do mar. O Zé Manel quando vai levar uma embarcação a Portimão ou a Vila Real apanha-me os garrafões de água, eles ficam em minha casa, num garrafão escuro todos tapados e bebo água do mar, um litro do mar. Eu bebo aquilo e sinto-me com uma força poderosa, estou cheia de minerais... e de plástico! Falam todos dos microplásticos, mas não me constipo, não tenho problemas de saúde...".

Ercidia é uma força da natureza, alimenta-se do mar e ainda das palavras que o marido lhe deixou, sobre "a grande criança e a grande mulher que foste a meu lado". Hoje, se perguntarem por Ercidia, ela estará quase de certeza no estaleiro, onde tem casa, a sorrir — ela que, conta, nunca deixou de sorrir e dançar, mesmo nos momentos mais difíceis — e ouvi-la-ão falar de outro Portugal, de outra África e de outra cidade de Lagos. E de outro mundo, de um em que se carregam sonhos às costas, sonhos que só são possíveis com muito trabalho e amor, sempre amor.

Poderíamos escrever mais dez capítulos, contar a história da parcela de praia que passaram a gerir após a morte de João, de como compraram as espreguiçadeiras e gaivotas com parte do dinheiro da herança do pai, porque não tinham mais. Como o João, o filho, ganhava o verão no Vai-Vém, um barco tão característico da cidade de Lagos e que, antes de existir a ponte pedonal junto ao edifício da administração da marina, fazia a travessia entre o centro e a zona das praias através da Ribeira de Bensafrim. Podíamos contar a história dos barcos que um dia ali chegaram, daqueles mais pequenos, que fizeram viagens quase milagrosas entre continentes. Mas corríamos o risco de desvirtuar, fugir desta ideia do cair e do reerguer, essa força motriz, a origem de tudo isto.

créditos: Rodrigo Moreira Rato | Madremedia