“Os Wu-Tang são para as crianças”. Estávamos em 1998 e Shawn Colvin acabava de vencer um Prémio Grammy para Canção do Ano, já depois dos Wu-Tang Clan terem perdido o de Álbum Rap do Ano para Puff Daddy. Ol' Dirty Bastard, rapper falecido em 2004, pai de filharada farta, subiu ao palco para reclamar da suposta infâmia, lançando uma tirada – essa tirada – que ficou para a história do hip-hop. “Os Wu-Tang são para as crianças”, talvez não seja assim tão verdade, ouve-se 'Shame On A Nigga' e pensa-se que talvez aquilo não seja a coisa mais educativa (quer dizer: dependendo do ponto de vista). Mas são para jovens, são para graúdos, são para quem gosta de um pouco de universo dentro do seu rap.

O universo é este: filmes de artes marciais, um lingo muito próprio, beats que deixam a cabeça à roda, os ideais da Five-Percent Nation, organização saída da Nação do Islão. Segundo os Five Percenters, cerca de 10% da população mundial pertence a uma elite que conhece o verdadeiro significado da existência e que procura, através do seu poder (obtido pelo dinheiro), subjugar outros 85%, descritos como “ignorantes, incivilizados, envenenados”. Os restantes 5% são eles próprios, fiéis seguidores de Deus – e tudo o que fazem é para Deus. Cash Rules Everything Around Me. Rula tanto que é deles o álbum mais caro da história, “Once Upon a Time in Shaolin”, do qual só existe uma cópia - hoje propriedade de uma entidade que se dedica à compra de NFTs -, e o qual só poderá ser comercializado em massa em 2103, quando já nem os Wu-Tang nem a maioria dos seus fãs forem vivos.

Os Wu-Tang são para as crianças e para Deus. Em “Chamber Music”, livro sobre o álbum de estreia do coletivo, e o seu mais aclamado álbum (e aquele que, grosso modo, arrastou uma multidão de crentes até ao Super Bock Super Rock), Will Ashon escreve que “apesar da violência, apesar de se vangloriarem das suas armas, apesar da maldade de muito do que dizem”, o efeito das letras dos Wu-Tang Clan “é limpo e puro, espiritual, estranhamente libertador: evocam um mundo onde acreditar em si próprios, acreditar em si próprios como se fossem Deus, e a única arma que têm para sobreviver”.

Mesmo com a morte de Ol' Dirty Bastard, em 2004, os Wu-Tang Clan sobreviveram. O coletivo perdeu um dos seus membros mais influentes, ganhou outro, Cappadonna, em 2007. Ênfase na palavra coletivo: mesmo tendo lançado trabalhos em nome próprio, alguns deles merecendo o seu próprio lugar no panteão do hip-hop, os Wu-Tang Clan só existem quando são como Legião, muitos. É isso que leva outros tantos a acarinhá-los como da primeira vez, é isso que os leva a vestir-se a rigor – o preto e o amarelo a predominar –, é isso que leva um fã, nas bilheteiras, a mostrar a quem passa um quadro do famoso “menino da lágrima”, adornado com o logótipo do grupo.

Não poupemos nas palavras: a presença dos Wu-Tang Clan em Portugal, território onde nunca atuaram, seria sempre um ato histórico, uma daquelas para contar aos filhos e netos. Houve quem viesse ao Super Bock Super Rock de propósito para ver o coletivo, houve até quem se dignasse a trabalhar no festival apenas e só porque os norte-americanos estavam no cartaz. Chega-se à Herdade do Cabeço da Flauta, seja qual for o meio escolhido, e a banda-sonora só pode ser “Enter The Wu-Tang (36 Chambers)”, disco que cumpre em novembro 30 anos de vida (ou, então, 'Shimmy Shimmy Ya', o grande single de Ol' Dirty Bastard a solo).

SBSR: Wu-Tang Clan
créditos: Francisco Cabrita/WorldAcademy

Centenas de braços no ar, as palmas das mãos abertas, os polegares mais ou menos entrelaçados formando o “W” de Wu-Tang Clan. A palavra feita poesia em movimento, refrães disparados da garganta. São os Wu-Tang Clan, para as crianças, e para todos os presentes feitos crianças, conscientes de que os norte-americanos chegaram a Portugal com 30 anos de atraso, já muito depois de terem sido reis do cenário hip-hop (o tempo e a evolução obrigaram-nos a ceder o trono, nos dias que correm, a Kendrick Lamar, a Kanye, ao trap) e de terem adornado paredes de quartos, discmans, as primeiras bafadas. “Quero contar-vos uma história...”, começou por dizer RZA, cabecilha do coletivo, rapper e produtor responsável pelo som que aqui se escutou hoje, homem para quem o sampling é uma ferramenta e não um modo fácil de se viver (“uso-o como uma paleta e não como uma fotocopiadora”, explicou, no passado).

E depois, já a banda que os acompanha se tinha ambientado ao palco, eis que surge 'Bring Da Ruckus', não tendo sido possível ficar parado; este era um concerto que merecia caos, sabiam-o os Wu-Tang Clan, sabia-o a nata do hip-hop tuga, extremamente representada no Meco (estava NBC, estava Regula, estava Allen Halloween, estava Sam the Kid, que atuara horas antes). 'Da Mystery of Chessboxin'' trouxe projeções de tabuleiros de xadrez a condizer, RZA a lançar champanhe para as filas da frente, numa empática ostentação – sim, gastamos dinheiro em coisas caras, mas é para ajudar os nossos amigos e a nossa família a passar um bom bocado. Tiger style: 'Wu-Tang Clan Ain't Nuthing Ta F' Wit', aquela melodia inicial, aquela batida, surge em todo o seu esplendor e leva à loucura cada cabeça, cada sentença.

O ambiente estava quente, e foi preciso chegar o manifesto ao mesmo tempo pró- e anti-capital que é 'C.R.E.A.M.', para que alguns chuviscos começassem a ameaçar os sorrisos do público do Super Bock Super Rock. “Malta que curte fumar erva, façam barulho!”, pediu RZA, e nem os cães-pisteiros que havia à porta do recinto conseguiram travar esta maré, o cheiro característico de coisas proibidas a serem aproximadas de um isqueiro. Ol' Dirty Bastard foi lembrado com 'Shimmy Shimmy Ya', oh, baby, I like it raw, e com 'Got Your Money', o rosto do soldado perdido a surgir nos ecrãs, rodeado de notas de dólar. OBD, as iniciais, GOD, as seguintes, ligando Ol' Dirty Bastard ao divino, mesmo que em vida não tenha sido o melhor dos seres humanos. 

“Quero poder voltar aos EUA e dizer às pessoas que os portugueses são os maiores!”, saraivada de gritos, somos todos muita bons, temos todos muito orgulho, e o grito final: Wu-Tang is forever. O universo dos Wu-Tang é para sempre, as canções dos Wu-Tang serão para sempre, o que se viveu esta noite no Super Bock Super Rock, e que só pecou por escasso – os norte-americanos atuaram menos de uma hora – será para sempre. É esta a força de um coletivo, é o que acontece quando nos juntamos e criamos algo muito maior do que qualquer indivíduo. Podem pensar no concerto dos Wu-Tang Clan como o acontecimento do ano. Mas também podem pensar nele como práxis.

Diziam-nos assim à entrada: não sei que sentido faz colocar Nile Rodgers a abrir para Wu-Tang Clan. Bem, respondemos, fará todo o sentido, certamente que todos os membros dos Wu-Tang serão fãs de Nile e da impressão digital e sonora que colocou numa série de êxitos da disco, da pop, da música negra em geral. Aterrando no Super Bock Super Rock com um verdadeiro ensemble de músicos, nomeadamente os Chic, o grupo que o deu a conhecer à indústria e que fez dele uma estrela, Nile Rodgers foi oscilando de canção magnífica para canção magnífica – e ele próprio fez questão de dizer ao público que eram magníficas, foi ele que as fez e, como salientou, já tem meia dúzia de Grammys no bolso.

O chamado braggadocio é comum no hip-hop, mas há que confessar: não esperávamos senti-lo tanto num concerto de Nile Rodgers. É verdade que se há alguém que se pode gabar é ele, tendo trabalhado com nomes como Madonna, David Bowie, Beyoncé, Diana Ross ou Daft Punk, artistas cujas canções fizeram parte de um alinhamento debitado em modo meio medley. O constante foco no “eu” - ao nosso lado, há quem questione se isto é um concerto ou uma entrevista de emprego – é que talvez fosse dispensável, porque desviou aquele que deveria ter sido o foco das atenções, a música, para aquele guitarrista impecavelmente vestido de branco. Poderemos, no entanto, encarar a sua presença como uma espécie de aula musical, que no final foi abrilhantada por GZA, dos Wu-Tang Clan, que entrou em palco para interpretar os versos de 'Rapper's Delight' (dos Sugarhill Gang, que foram buscar o instrumental a 'Good Times', dos Chic), vestindo uma camisola do Sporting.

No final, um thank you Portugal surge nos ecrãs, raro momento de humildade num espetáculo que serviu para se ter a noção de quem manda realmente na música: quem sabe compor uma excelente linha de baixo.

SBSR: The 1975
The 1975 @ Super Bock Super Bock - 14/07/2023 créditos: Rita Duarte/WorldAcademy

Mal entram os The 1975 em palco e escutam-se dezenas de gritos esganiçados, resistentes de um dia que não era bem o seu, apesar de naquela base musical também existir muito funk. Os britânicos, que têm no vocalista Matty Healy um pequeno dínamo, trouxeram ao Super Bock Super Rock as melodias cintilantes de canções como 'Oh Caroline', com o músico (bata branca, cigarro na boca, nenhumas referências à sua relação com Taylor Swift ou às coisas menos positivas que já disse e fez no passado) a trocar várias vezes de guitarra, a fletir os joelhos em dança, a arriscar no piano, a trocar olhares consigo mesmo num dos ecrãs laterais. Para alguns, os 1975 são um significado, o que dá ânimo a esta coisa chamada vida. Para outros, que não aproveitaram a debandada geral sentida após Wu-Tang Clan, são um bocejo. Um longo, longo bocejo.

Por vezes emocionada com a resposta que estava a obter do público, Caroline Polachek levou ao Palco Pull & Bear (empresa que levou ao festival, não roupas, mas carrinhos de choque) as canções do seu mais recente trabalho, “Desire, I Want to Turn Into You”, o seu quarto álbum de originais. Um relógio em contagem descrescente desaguou em 'Welcome to My Island', pontuada com um “muito obrigada!” em muito bom português. Seguindo à risca o alinhamento do disco, Polachek encantou com o taratata... inicial de 'Pretty In Possible', a prova de que o trip-hop ainda tem força em 2023, com a fofice de 'Bunny Is a Rider' e com a guitarra meio espanhola de 'Sunset', antes de trazer drum n' bass e “uma canção de amor”, 'Door', a finalizar um espetáculo que teria sido excecionalmente melhor fora da descarga emocional que ainda se sentia com Wu-Tang Clan. A norte-americana é, porem, de ouro: aproveite-se enquanto a ainda podemos ver em palcos secundários.

O Super Bock Super Rock termina este domingo, com concertos de Steve Lacy, Pinkpantheress ou Parov Stelar, entre outros.