Penso muito na morte; é o meu trabalho. Refiro-me, especificamente, à forma como a morte acontece. Sobre se é verdade ou mentira. Sobre quando podemos ter a certeza, e quando as margens são esbatidas, e o que se perde na memória ou no mal-entendido.

Penso no meu trabalho, que é pegar nos factos de um caso e organizá-los numa história, sem elaborar ou exagerar, e em como essa história deve convencer o júri a acreditar na minha versão dos acontecimentos. Sou muito convincente. Sou boa a contar histórias.

Mas tenho de pensar bem sobre por onde começar com esta história, porque o início não é o acidente, apesar de me ter parecido que sim. O lobo já estava nos meus calcanhares, a planear o seu próximo passo, enquanto eu caminhava, distraída, pela floresta.
Ele tinha esperado durante muito tempo e agora estava pronto.

2019

1

Penso muito na morte, mas não estava a pensar nela no dia em que veio ao meu encontro. Estava demasiado ocupada a correr por Ludgate Hill acima, desviando-me dos guarda-chuvas das outras pessoas, para que não me inundassem com a chuva gelada de outubro quando chocassem com o meu. A chuva era uma maldição por duas razões: odiava ter os pés molhados e, de outra forma, estaria a esconder-me atrás dos maiores óculos de sol que tinha.

Não estava apenas molhada: estava atrasada, o que era o maior pecado de todos para uma advogada. O meu orientador tinha-me dito isso mesmo no meu primeiro dia. Podes ter de ir para o tribunal desprevenida, doente, de ressaca, stressada ou mesmo infeliz, mas, por amor de Deus, chega lá a horas. Toda esta situação deixou-me furiosa comigo mesma. Sabia que não devia causar problemas a mim própria sem motivo, tirando o facto de ter ficado acordada até muito tarde na noite anterior.

Não entrei pela porta giratória de vidro fumado do Tribunal Penal Central, também conhecido como «Old Bailey». Em vez disso, atravessei a rua a correr para um pequeno café apinhado de gente. Um homem careca e de pescoço largo estava sentado ao fundo, a ler um jornal. Olhou para cima e assobiou.

— Meu Deus, miss Lewis. O que te aconteceu?

João Pedro Vala junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 21 de março, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz "Campo Pequeno", o seu último livro, editado pela Quetzal.

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— Deitei-me tarde. — Estacionei a minha mala de rodas ao lado da mesa e concentrei-me em dobrar o meu guarda-chuva para não ter de o olhar nos olhos.

— Não foi a melhor preparação para hoje, pois não, Ingrid?

A desaprovação transparecia em todas as consoantes, mais acentuada pelo seu sotaque, que continuava a ser de Glasgow, apesar dos trinta anos em Londres. Como ele era procurador e era a razão pela qual eu estava a trabalhar, não consegui fazer uma piada sobre o assunto.

— Eu fico bem.

— Claro que sim. — Sorriu. — Estou só a brincar. Bebe um café e recupera o fôlego.

— Queres que traga também para ti?

— Café com leite, dois cubos de açúcar. — Voltou ao seu jornal com um sorriso que ainda lhe suavizava os cantos da boca e eu dirigi-me ao balcão para pedir. Admirei bastante a forma como ele tinha conseguido que eu lhe pagasse um café. Era um pequeno gesto tendo em conta que Niall Hyde me possibilitara pagar a renda desse mês, e do mês anterior. Além disso, eu sabia o que os diretores do escritório diriam se o irritasse. O que era bom para mim era bom para o escritório, e se eu fizesse um inimigo de um dos advogados de defesa mais bem-sucedidos da zona, faria mais vinte entre os meus colegas.

Os advogados tinham uma forma de trabalhar que era confusa para quem estava de fora, mas que se baseava em séculos de tradição. Éramos trabalhadores independentes, teoricamente independentes uns dos outros, mas a maior parte de nós juntava os seus recursos num conjunto de escritórios que se assemelhava mais a um clube do que a um escritório partilhado. A desvantagem era que o que afetava um de nós no escritório podia afetar todos. Cada grupo tinha diretores que dirigiam os advogados como benignos e arrogantes chefes de gangue, distribuindo os casos e o trabalho como bem entendiam. Se chateasse os diretores, acabaria numa série interminável de primeiras aparições em tribunais de primeira instância em toda a zona de South East London, em vez de prosseguir com a pequena e agradável prática que me levava ao Bailey numa terça-feira de manhã. Há sete anos que exercia esta profissão, depois de me ter licenciado em Direito, de ter frequentado a escola da Ordem dos Advogados durante um ano e de outro ano como orientanda, e começava finalmente a sentir que estava a apanhar-lhe o jeito. O meu rendimento continuava a ser muito variável e, na maior parte das vezes, se fizesse as contas, o que ganhava não chegava nem perto do salário mínimo. Mas eu adorava. Valia a pena, era um desafio e, por vezes, era até inspirador.

E eu gostava quando ganhava.

— Então e foi o quê, uma separação?

Empurrei o café dele sobre a mesa e sentei-me.

— Sim, mas não foi comigo. O namorado de há três anos da minha melhor amiga deu-lhe com os pés.

— Ai sim? — O sarcasmo revestia as palavras. — E a solução foi vinho tinto?

— Entre outras coisas.

— Não aprendeste a não fazer misturas?

— Pelos vistos — respondi, lamentosamente. — Mas vou estar bem no tribunal.

— Claro que sim. — Piscou-me o olho, os seus olhos arregalados de diversão. — Experimentaste curar a ressaca com álcool?

— Não, e não o vou fazer. Nunca mais bebo.

Isso fê-lo rir e bebemos o nosso café em perfeita amizade. Era rotina de Hyde dirigir-se ao café de manhã e um fluxo constante de advogados vir saudá-lo. Entre as interrupções, certificava-me de que sabia exatamente o que Hyde queria conseguir para o seu cliente naquela manhã. Tratava-se de uma audiência preliminar, completamente rotineira, em que um homem se ia declarar inocente de uma tentativa de homicídio. Um jogo sexual que correu mal, segundo ele; longos minutos de estrangulamento, segundo a acusação, que tinha provas médicas de hematomas e vasos sanguíneos rompidos para o apoiar. Eu tinha-o conhecido, olhado para os seus olhos arregalados e honestos e ouvido o toque de sinceridade na sua voz, e tínhamos provas de um site de encontros sobre as preferências sexuais declaradas da sua namorada, que incluíam asfixia erótica e bondage. Uma discussão após o sexo, uma falsa acusação de violência para se vingar: aconteceu.

Livro: “The Killing Kind” – Os Que Matam”

Autor: Jane Casey

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 29 de fevereiro de 2024

Preço: € 24,90

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— Mas aconteceu neste caso? — tinha a minha melhor amiga, Adele, perguntado às duas da manhã, ao que eu encolhi os ombros.

— A história dele é que sim. As provas não o contradizem. — Mas ele feriu-a.

— Com o consentimento dela, diz ele.

— Não podes ter a certeza disso.

— A questão é que a acusação não pode provar o contrário.

A Adele serviu-se de mais vinho, entornando um pouco para o lado.

— Ups. Não sei como consegues viver contigo mesma, a contar mentiras por estes sacanas.

As pessoas que não eram advogados preocupavam-se muito mais com inocentes e culpados do que nós. Separávamo-nos das questões de moralidade porque tínhamos de o fazer. Toda a gente merecia uma defesa decente ou não se poderia fazer justiça. Aceitávamos o trabalho que nos era oferecido sem hesitação, porque essa era a regra cab-rank*; não escolhíamos os casos que se ade- quavam aos nossos gostos pessoais ou à nossa moralidade. Éramos profissionais e educados, e dávamos o nosso melhor, e a maior parte de nós habituou-se rapidamente a isso. O sistema funcionava para todos ou não funcionava para ninguém.

— Não sei se é mentira — expliquei-lhe, pacientemente. — Cabe ao júri decidir. Presumo que não seja culpado, a não ser que me diga que o fez, e nesse caso tenho de o aconselhar a declarar-se culpado. Até lá, ele tem direito à melhor defesa possível. Se, mesmo assim, for condenado, pelo menos sei que testei o caso da acusação.

— E se ele o tiver feito, mas tu convenceres o júri do contrário? — Então, a acusação não fez bem o seu trabalho e eu sim.

— Há vezes — comentou a Adele, meio distraída — em que já não pareces nada tu.

Au!

— Faz parte do meu trabalho — argumentei. — É preciso manter alguma distância entre nós e o trabalho, senão enlouquecemos.

— Não estou a falar — disse a Adele — de trabalho. — Estou a falar de... tudo. — Fez um gesto vago à sua volta.

E não achas que tenho boas razões para estar diferente?

Não o disse em voz alta.

— Maldisposta — disse a Adele, e eu pensei tratar-se de mais um comentário sobre mim, até ela se virar para o lado e começar a arfar.

O Old Bailey era um dos poucos tribunais que ainda tinha vestiários separados para advogados do sexo masculino e feminino, e o vestiário feminino era um lugar seguro em todos os sentidos. Fechei a porta atrás de mim e procurei na divisão pessoas conhecidas, reconhecendo um par de advogadas que já tinha enfrentado antes. Uma jovem mulher no canto era uma das pupilas do meu escritório. Neste momento, o seu rosto estava tão branco como a folha de papel que vibrava nas suas mãos. Nervos de principiante, diagnostiquei, e sorri-lhe. Ela retribuiu com um sorriso algo hesitante.

Eu própria tinha de vestir o traje de tribunal: era profundamente tradicional e pouco prático. Apertei as faixas engomadas à volta do pescoço, depois coloquei uma toga preta larga por cima do meu fato preto e da minha camisa branca. O toque final foi a peruca de crina de cavalo, que exigia um cabelo bem arranjado por baixo, de modo que todos vissem apenas uma pitada de dourado claro por baixo dos caracóis cinzentos e ásperos. Tinha herdado o cabelo louro do meu pai dinamarquês, Jens, e os olhos azul-acinzentados, mas as maçãs do rosto, as sobrancelhas arqueadas e o apelido pertenciam todos à minha mãe. Adotara o nome dela depois de se terem divorciado, por uma questão de lealdade e porque tornava a vida mais simples, uma vez que vivia com ela.

Estava concentrada em prender o cabelo num carrapito apertado, com a boca cheia de ganchos, quando uma mulher entrou a correr no vestiário, movendo-se rapidamente apesar dos saltos terrivelmente altos. Belinda Grey, uma das mulheres mais perspicazes que eu alguma vez conhecera, 35 anos e a caminho de uma carreira deslumbrante. Fui sua assistente num julgamento de violação quatro anos antes e tinha sido ao mesmo tempo aterrador e estimulante. O mundo era pequeno e eu encontrava-a com frequência suficiente para nos aproximarmos da amizade, embora eu sempre a venerasse como uma heroína. Ela era magra como um palito e glamorosa, com um brilho de riqueza e confiança. O seu fato ajustava-se ao corpo como se tivesse sido feito para ela, o que era de facto uma possibi- lidade. Eu optei por sapatos rasos para poder chegar rapidamente aos sítios e por roupas de trabalho que beiravam o desleixo, de tão simples que eram. Já não gostava de chamar a atenção. A Belinda divertia-se com isso.

Ela estava ao telefone, como habitualmente.

— Não, ele precisa do equipamento desportivo para jogar à bola. Depois da escola. — Uma nota de irritação. — A previsão é que a chuva pare à hora do almoço, por isso escrevi-o no frigorífico, Michael, portanto, se não viste... — Parou para me acenar e dizer olá com os lábios. Sorri de volta. — Bem, estava lá. Sim, estava. Chegaste a verificar? Tu... — Olhou para o ecrã e abanou a cabeça. — Pronto. Desligou-me a chamada na cara.

— Como está o Michael? — perguntei.

— Farto. Estamos entre amas e ele está a gastar as férias anuais a ser um marido dono de casa.

— E não gosta?

— É péssimo nisso. O Archie anda a fazer-lhe a vida negra, como só um miúdo de 5 anos consegue. E, entretanto, o mundo da publicidade parece estar a sobreviver sem o Michael.

Sorri de orelha a orelha.

— Que frustrante.

— Pois, exatamente. Seria de esperar que fingissem sentir a falta dele, só para serem simpáticos. — Olhou para o relógio. — Claro que é suposto eu estar em dois sítios ao mesmo tempo. O juiz insistiu para que eu viesse hoje a esta audiência, que é sobretudo para ele me dar uma tareia, apesar de eu ter uma conferência no escritório às onze. E esta chuva. Vou parecer uma coisa que o gato vomitou se não parar.

Eu sabia que o escritório de advogados dela, Garter Buildings, ficava a dez minutos a pé do Old Bailey, pois ficava mesmo em frente ao meu.

— Não tens guarda-chuva?

— Não o encontrei antes de sair. — Revirou os olhos. — A empregada despediu-se na semana passada, e ainda bem, porque tenho a certeza de que partia coisas deliberadamente quando estava chateada connosco, o que acontecia a toda a hora. De qualquer forma, a casa está um caos total e absoluto. Estou espantada por ter conseguido encontrar sapatos a condizer.

Acabei de espetar os alfinetes na bola de cabelo que estava enrolada na minha nuca.

— Podes ficar com o meu guarda-chuva, se quiseres.

Os seus olhos iluminaram-se por um instante, mas depois abanou a cabeça.

— Não posso aceitar.

— Toma lá. Não tenho nenhum sítio importante para estar e a minha audiência ainda vai demorar um pouco. No entanto, se estiveres enganada quanto às previsões meteorológicas, não ficarei contente.

— Ingrid, és um anjo. — Pegou no guarda-chuva. — Não me vou esquecer disto.

Eu não tinha ilusões; ela continuaria a aproveitar todas as oportunidades para me dar uma joelhada se estivéssemos em lados opostos num julgamento. Contudo, não fazia mal nenhum ter alguém como a Belinda Grey do meu lado. E eu gostava dela, apesar da sua língua mordaz, da reputação aterradora e da espantosa rotação de pessoal doméstico.

A Belinda tinha-se ido embora e eu voltei a olhar para o meu reflexo, verificando os pormenores: o meu cabelo estava liso e cuidado. A maquilhagem era suficiente para disfarçar os olhos encovados de ressaca que me tinham saudado nessa manhã, mas não mais do que isso. As fitas estavam bem assentes, o vestido estava imaculado e não havia demasiada camisa branca à mostra. Respirei fundo e soltei o ar lentamente. A audiência era simples, como eu tinha dito, mas havia sempre uma onda de nervosismo no meu estômago antes de entrar no tribunal. Não podia tomar nada como garantido, e o dia em que o fizesse seria o dia em que tudo correria mal.

Não havia sinal da Belinda ou do meu guarda-chuva quando voltei ao vestiário, mas a chuva tinha parado. A minha audiência tinha corrido bem e o Niall Hyde tinha ficado suficientemente satisfeito para me dar uma palmadinha no ombro no fim.

— Bom trabalho, miúda. Vemo-nos em breve.

Os últimos vestígios da minha ressaca tinham mesmo desaparecido no brilho da satisfação. Quando saí do edifício do tribunal, ou tentei sair, estava a dar passos firmes. O segurança idoso encontrava- -se encostado à porta, a olhar para o trânsito que subia a rua em fila indiana.

— O que se passa?

— Um acidente em Ludgate Circus. Um peão ficou debaixo de um camião.

— Meu Deus — exclamei, de forma inadequada. — Estava...?

— Penso que foi fatal. Aconteceu há algum tempo e o trânsito tem estado assim desde então. Pelo que ouvi dizer, o engarrafamento vai até Holborn e Aldwych.

Estremeci.

— Nunca arrisco atravessar essa estrada.

— Pois, faz bem. Acontece todos os anos. A chuva não terá ajudado. — Abanou a cabeça, os seus olhos lacrimejavam. — Hoje em dia anda tudo cheio de pressa, essa é que é essa.

Fiz que sim com a cabeça, sem ter muito a acrescentar e com pressa porque tinha um caso para preparar para o dia seguinte. Passei pelo trânsito parado, pensando no trabalho, enquanto saía do Old Bailey para Ludgate Hill. Olhei de relance para o imponente pórtico da catedral de Wren, porque qual era o sentido de viver em Londres se não pudesse acenar à grandeza clássica de St. Paul’s quando passava por lá. Depois, desci em direção a Ludgate Circus, a um ritmo acelerado, calculando o desvio que teria de fazer se a rua ainda estivesse fechada. Havia uma multidão de curiosos no passeio. Por causa da inclinação da colina, tinha uma visão privilegiada do camião parado no meio do cruzamento e da tenda que estava encostada à sua frente, escondendo sabe Deus o quê. Já havia processado uma morte por condução perigosa e aprendera o suficiente sobre o funcionamento do local do crime para conseguir perceber o que se estava a passar. Havia um cordão de isolamento, formado por agentes da polícia da cidade de Londres, de rosto sombrio, que se estendia à volta de todo o cruzamento, e agentes com casacos fluorescentes a medir distâncias e a tirar fotografias. Círculos de tinta de spray indicavam onde as provas tinham caído na faixa de rodagem. Um acidente fatal, como o segurança tinha pensado. Alguém não iria para casa nessa noite. Nunca mais voltaria a casa.

A realidade estava a fazer um bom trabalho a destruir a minha boa disposição. Contornei o cordão de segurança, dirigindo-me para Blackfriars, onde poderia atravessar...

Parei de repente.

Um círculo de tinta tinha-me chamado a atenção. Encontrava-se a uns seis metros à frente do camião, no meio da estrada. Estava pintado à volta de um sapato que tinha caído de lado. O couro envernizado estava cheio de arranhões, mas ainda era reconhecível como o mesmo sapato que a Belinda trazia calçado antes. Salto alto. Biqueira pontiaguda.

Não havia como negar.

2

— Então foi uma das últimas pessoas a falar com ela antes do incidente, correto?

— Devo ter sido, acho eu. Não posso ter a certeza. — Incidente era uma palavra tão útil para a agente usar, pensei. Não era um acidente, definitivamente, mas também não implicava que tivesse sido deliberado. A agente da Polícia de Londres parecia ser o tipo de mulher que empregava as palavras com cuidado. Tinha, talvez, 50 anos, olhos azuis brilhantes e uma madeixa de cabelo grisalho cortado quase até ao couro cabeludo na parte de trás e nos lados. Parecia ser macio como veludo.

Concentra-te.

Engoli em seco e enfiei as mãos entre os joelhos, sabendo que estava a aproveitar todas as oportunidades para me distrair da conversa, porque não queria pensar na pobre Belinda, no seu marido devastado e no filho pequeno que não conseguia perceber porque é que a mamã não vinha para casa. Haviam passado dois dias desde a sua morte e eu tinha-me esforçado por não pensar nela. Agora que era suposto estar a pensar nela, arranjava desculpas para fazer tudo menos isso.

Acho que foi culpa minha. Tinha as palavras presas na garganta. Não as podia dizer em voz alta. Nem o conseguia admitir a mim mesma.

Os diretores deixaram-me usar uma das salas de reuniões do escritório para a minha entrevista com a agente da polícia, e era um espaço neutro e confortável, desprovido de qualquer interesse, à exceção de uma lareira antiga, numa das paredes, e da janela saliente com chumbo que denunciava a idade do edifício. O conjunto de escritórios a que eu pertencia situava-se no Inner Temple, num edi- fício que rangia com a idade e a sobrelotação. A sala de reuniões era clinicamente limpa e arrumada. A maior parte das outras salas estava encoberta pela maré de detritos que se espalhava pelos espaços onde os advogados trabalhavam — processos antigos, caixas imensas cheias de dossiês, sacos, caixotes para documentos confidenciais, togas penduradas nas traseiras das portas, sapatos pontapeados debaixo das secretárias, restos de um almoço da semana anterior, uma impressora que tinha deixado de funcionar há alguns meses. Era vergonhoso e caótico, mas eu preferia-o aos estofos creme e ao tapete cor de cevada de bom gosto da sala de reuniões. Os meus olhos percorreram o ambiente que me rodeava, sem encontrar nada de interessante, além do rosto atento e concentrado em frente ao meu.

— Diria que a conhecia bem? — perguntou a agente.

— Trabalhei com ela apenas uma vez, mas demo-nos bem. — Engoli em seco. — Uma vez jantei em casa dela, após um julgamento. O Michael, alto e magro, a servir champanhe com uma mão generosa, na casa de tetos altos em Richmond que tinha comprado a dinheiro depois de vender a sua agência. O Archie, então um bebé de pijama, com os dedos dos pés cor-de-rosa como camarões bebés, enroscando-se no joelho da mãe e recusando-se a ir para a cama, embora mal conseguisse levantar a cabeça de cansaço. A Belinda a rir, feliz porque tinha vencido.

— Teria reparado se ela estivesse perturbada na segunda-feira? — Sim. — Pensei um momento na questão. — Ela estava nervosa, mas estava a tentar fazer centenas de coisas ao mesmo tempo. Estava sempre a trabalhar a grande velocidade.

— Mas parecia normal.

— Estava a ter um mau dia — disse eu, com hesitação. — Mas nada fora do normal. Não quero que fique com a impressão errada.

— Diga-me apenas a sua impressão. — A agente sorriu tranquilizadoramente. Era a agente Alison Buswell, da principal equipa de investigação encarregada de descobrir o que tinha levado à morte de Belinda. O condutor do camião seria acusado de condução perigosa ou descuidada, partindo do princípio de que tinha passado no teste de alcoolemia no local. A condução perigosa implicava uma pena pesada. Era um caso sério e, apesar de a agente Buswell parecer descontraída, senti que estava à espera de atacar qualquer coisa que eu dissesse que pudesse ajudar.

— Não me pareceu que estivesse com tendências suicidas — declarei, finalmente. — Mas estava... distraída. E com pressa. Podia estar preocupada quando atravessou a estrada. — Se foi um acidente.

— Ela disse mais alguma coisa?

— Que ia enfrentar um juiz e que tinha de estar de volta ao seu escritório às onze. — Olhei involuntariamente pela janela, para o outro lado do Temple, onde o Garter Buildings se erguia num terraço vitoriano que tinha a simetria ordenada de livros numa prateleira.

— Ela estava chateada com o juiz?

— Não.

— Mesmo?

Encolhi os ombros.

— Faz parte do trabalho. Estamos a representar todos os envolvidos na acusação ou na defesa. Se alguém faz asneira, o juiz descarrega em nós. Ninguém gosta de se meter em sarilhos, mas aprende-se a lidar com isso. Pode descobrir diante de quem ela estava...

— Eu falei com ele. — A agente Buswell voltou a sorrir, desta vez com uma pitada de complacência que, suponho, ela merecia. — Ele disse que tinham conseguido chegar a uma solução que funcionava para todas as partes e que não a tinha censurado.

Os outros advogados do caso confirmaram-no. Ela estava bem-disposta quando saiu.

— Ainda estava a chover?

— Porque é que pergunta?

— Só estava a tentar perceber o que lhe aconteceu. — Engoli em seco. — Ela tinha-se esquecido do guarda-chuva e eu dei-lhe o meu. — Ah. Sim, estava a chover. Ela tinha um guarda-chuva. Imaginei-a a descer a colina, apressada, de cabeça baixa, com
o meu guarda-chuva brilhante e característico a protegê-la da chuva. Teria escondido o seu rosto, sugerindo ao mundo que a mulher que se tinha apressado a entrar no tribunal debaixo daquele guarda-chuva tinha voltado a sair.

— Posso ver as imagens de videovigilância?

A agente Buswell parecia surpreendida, mas a sua voz manteve-se firme quando falou.

— Acho que não seria apropriado.

— Quero ver o que aconteceu.

— Porquê?

— É só que... Estas questões são a sua maneira de me perguntar se ela podia ter entrado deliberadamente no meio do trânsito, não são? Portanto, há razões para pensar que o condutor não fez nada de errado. Está a concentrar-se mais no comportamento dela do que se ele tivesse passado um sinal vermelho. Quero saber as circunstâncias. O passeio estava movimentado? Ela estava a correr, ou a ser descuidada porque estava distraída com alguma coisa? Há algo neste caso que a faça questionar se foi um acidente ou se foi deliberado?

A agente Buswell fechou o bloco de notas e pousou a caneta sobre ele com determinação.

— Tudo boas perguntas. Mas não são perguntas para si.

— Eu sei. Mas...

— Tem sido muito prestável. É uma boa testemunha, como seria de esperar. Também esperava que tentasse trazer a sua experiência profissional para este caso, como é natural. Mas acontece que não vai tratar deste caso se ele chegar a tribunal. Não precisa de saber mais nada sobre o assunto e aconselho-a a não tentar descobrir por- menores que eu não lhe tenha mencionado. Só seria angustiante para si ver a videovigilância ou as imagens do local. O que lhe aconteceu foi muito traumático, fisicamente.

— Compreendo. — Posso imaginar o que acontece quando um peão é atropelado por um camião articulado, acreditem ou não.

A agente Buswell afastou-se da mesa e cruzou os braços.

— Não eram muito chegadas, pois não? Um julgamento, há uns anos, um jantar em casa dela. Mas parece profundamente transtornada com a sua morte.

— É trágico. — Apertei os lábios.

— Claro que sim. Mas não é a sua tragédia, pois não?

Desta vez, não. Guardei as palavras, porque tragédia era uma afirmação ousada e ela ia querer saber se eu podia confirmá-la, e eu não estava preparada para isso.

— É difícil de explicar, mas tenho algumas preocupações de que talvez... se foi deliberado... talvez ela não fosse o alvo pretendido. Talvez fosse suposto ser eu. A agente Buswell ergueu as sobrancelhas.

— Porque é que pensaria isso?

— O guarda-chuva. É tão brilhante e característico, pode ter levado alguém a pensar que era eu. Estávamos vestidas de forma semelhante para um dia no tribunal. Alguém pode ter-se enganado.

— Alguém? — Ela parecia estupefacta. — Quem?

— Há alguns anos, tive um cliente que... passou dos limites. Tornou-se um grande incómodo.

— Em que sentido?

— Incomodou-me durante algum tempo, até que se aborreceu. — E desde então tenho estado à espera de que volte.

A minha interlocutora voltou a abrir o bloco de notas, com visível relutância.

— Qual é o nome dele?

— John Webster. — Esperava que as paredes desabassem, que as janelas se estilhaçassem, mas a sala estava silenciosa, à exceção do movimento da caneta da agente Buswell na página.

— O que queria ele, uma relação consigo?

— Não da forma que possa imaginar. Ele não é motivado pelas mesmas coisas que as pessoas normais. O sexo não significa muito para ele, pelo que sei. — Engoli em seco. — Ele gosta do medo. Gosta de manipular os seus alvos. Sentiu-se atraído por mim porque queria ver o que seria preciso para me quebrar. Eu era confiante, suponho, e... feliz. Ele viu-me como um desafio.

— E ele entrou em contacto consigo recentemente?

— Tem estado na prisão. Nada relacionado comigo. Foi condenado por uma pequena fraude, é assim que ganha a vida, penso eu, mas desta vez foi apanhado. Cumpriu nove meses. O agente de liberdade condicional disse-me que ele estava livre. — Engoli em seco. — Eu tinha uma ordem de afastamento, mas expirou em setembro.

— Pode ser prolongada. Ele ameaçou-a?

— Não recentemente. Mas... — parei de falar. O que eu queria dizer era que ele sempre foi uma ameaça para mim, escondido em cada sombra e atrás de cada porta. Mas isso parecia uma loucura.

— Ameaçou-a no passado?

— Sim.

— Acha que ele é capaz de matar?

Quase me ri.

— Sei que é.

— Sabe onde ele vive?

— Agora já não.

— Verei se o consigo localizar.

— É provável que o agente de liberdade condicional o possa encontrar por si.

— Verei o que posso fazer. — Voltou a fechar o bloco de notas.

— E posso ver as imagens?

— Não creio que seja apropriado. Está a pedir-me que lhe deixe ver a morte de uma mulher, porque lhe emprestou um guarda-chuva e outrora atraiu alguma atenção indesejada. Seria uma invasão imperdoável da privacidade da família.

— Compreendo. — A minha cara estava corada; a agente não tinha poupado nas palavras. — Mas não está a tratar isto como um simples acidente, pois não?

Queria que dissesse que não, mas ela fez uma careta.

— Não tenho a certeza. Admito que, neste momento, há uma série de coisas que não são claras. Não estou convencida de que tenhamos a história completa do que aconteceu na segunda-feira. — Voltou a inclinar-se para mim, com os olhos fixos nos meus. O efeito era hipnótico, concebido para me deixar num estado de calma. — E até estar satisfeita, não vou desistir.

* No direito inglês (e noutros países que adotam esta regra), a regra cab-rank consiste na obrigação de um advogado aceitar qualquer trabalho num domínio em que se declare competente para exercer, num tribunal em que compareça habitualmente e segundo os seus honorários habituais. [N. do T.]