Há já algum tempo que o rock e o hip-hop, e em especial os fãs de um e de outro, andam de costas voltadas. Mas nem sempre foi assim. Relembremos os primeiros anos do hip-hop enquanto género musical: os Blondie, grupo de punks que descobriu o glamour da new wave e o hedonismo do disco, conheceram um dia o grafitter Fab Five Freddy e, através dele, as festas hip-hop e as novas linguagens do Bronx – o que acabou por desembocar em “Rapture”, a primeira canção onde se ouve rap a chegar ao número um da tabela de vendas dos Estados Unidos. Os Clash, punks até ao tutano, andaram em digressão por esse mesmo país no início dos anos 80, e levaram consigo os Furious Five de Grandmaster Flash – e inspiraram-se no hip-hop para criar “The Magnificent Seven”. Os Beastie Boys nasceram no punk hardcore, mas virar-se-iam para o hip-hop pouco depois. E nem as grandes estrelas rock ficaram indiferentes à “cena”: os Aerosmith acabariam a colaborar com os Run-D.M.C. para uma nova versão de “Walk This Way”.
Eram outros tempos, em que parecia possível fazer tudo, juntar o que quer que fosse numa caldeirada multicultural, multiétnica e multisonora. Eram tempos pós-punk, a energia deste último aliada à inventividade, ao sem-receio da criação. Eram tempos em que ninguém discutia se algo que leva “rock” no nome pode albergar em si artistas de hip-hop, em que o rap e o sampling eram apenas uma outra forma de olhar para o rock n' roll – que, mais que um género estanque e resumido a guitarra-baixo-bateria, é um estado de espírito absoluto. O hip-hop mudou o mundo, mas também foi o mundo – elétrico, juvenil – que criou o hip-hop. E foram esses dois lados, de uma só moeda, que ajudaram a criar Tricky.
Nascido no bairro de Knowle West, no sul de Bristol (Inglaterra), Tricky teve a sorte de se deparar, em tenra idade, com o punk e o hip-hop justamente quando estes estavam a aparecer. Criado pela avó – a mãe morreu quando ele tinha 4 anos, o pai sempre foi ausente –, a sua infância não teve, no entanto, qualquer espécie de “sorte”; quem nasce num bairro problemático acaba muitas vezes engolido por uma vida de crime, e Tricky, nome de baptismo Adrian Nicholas Matthews Thaws, não foi uma nobre excepção. Aos 17 anos, acabou na prisão após comprar notas falsas de 50 libras a um amigo que se revelou também ele falso, já que contou o caso à polícia. O músico abordaria este momento menos positivo de forma mordaz, anos mais tarde: «o meu tempo na prisão foi muito bom. Nunca mais lá voltarei».
Não voltou, felizmente. Porque, se o tivesse feito, provavelmente hoje não falaríamos de álbuns como "Maxinquaye" (1995) ou "Knowle West Boy"(2008). E, quem sabe, também não falaríamos dos Massive Attack, grupo que conheceu ainda nos seus primórdios e do qual fez parte durante alguns anos. A sua voz ecoa no magnífico "Blue Lines", álbum que deu a conhecer os Massive Attack ao mundo, editado em 1991. E também em "Protection", de 1994, onde se encontram duas das canções mais celebradas pelos fãs do grupo britânico: “Eurochild” e “Karmacoma”. Em 1995, estreou-se finalmente a solo e, desde então, criou um corpus de trabalho invejável, tal como a sua lista de colaborações: Chuck D, Björk (com quem teve um breve romance), Neneh Cherry, Beyoncé, PJ Harvey, Grace Jones, Yoko Ono e Red Hot Chili Peppers são só alguns exemplos.
"Maxinquaye" é ainda hoje o seu álbum mais conhecido e presença regular em listas dos melhores álbuns de sempre. O álbum é Tricky no seu melhor: partindo do rap, do hip-hop e de algum dub, estilo de música jamaicano com raízes no reggae, o músico criou uma obra que pertence a todos os géneros, e ao mesmo tempo a nenhum. Habita no seu próprio mundo, rodeado pela narcose do dub, pela energia do rock e do punk e pela lírica do hip-hop. Os críticos chamaram-lhe trip-hop, e englobaram-no nessa grande caixa juntamente com os Massive Attack e os Portishead. Mas não lhe chamem isso (e nem aos outros dois). Primeiro, porque Tricky detestou esse rótulo desde o primeiro dia; segundo, porque na verdade ele é melhor descrito como “idiossincrático”. Não houve nem haverá quase ninguém que soe ao que Tricky faz, e especialmente que soe a "Maxinquaye", onde uma das melhores faixas até é uma versão: “Black Steel”, tema original dos Public Enemy, que é aqui transformado em punk rock negro e (ainda mais) furioso, ajudado pela belíssima voz de Martina Topley-Bird, que viria a ser mãe de um dos filhos do músico.
Depois de "Maxinquaye" chegaria "Nearly God", álbum que foi lançado também com esse pseudónimo e que contou com um vasto leque de colaborações – e, em especial, com uma versão fantástica de “Tattoo”, de Siouxsie & The Banshees, uma das grandes influências do músico. Tricky nunca teve medo de dizer de onde vinha, mas recusou-se quase sempre a dizer para onde iria; quando se pensava que o músico iria manter a fórmula original, eis que surge "Pre-Millenium Tension", no final de 1996, um álbum que queria que fosse «absolutamente punk». E, dois anos depois, "Angels With Dirty Faces", já com elementos jungle, género que deu origem ao drum n' bass.
Como o hip-hop em geral, Tricky absorveu de tudo e nunca se permitiu acomodar-se. Quer em termos sonoros, quer em termos de estilo. Por várias vezes se insurgiu contra a forma como era representado nos media, já que o facto de ser negro e ter crescido num bairro pobre levava a um estereótipo comum: Tricky representado como um rufia, zangado com a sociedade, qual rapper americano típico. Passou a adotar um ar mais sereno, e brincou até com o seu próprio género e sexualidade, vestindo-se de mulher na capa de "Maxinquaye". Foi queer dentro da cena rap muitos anos antes de se falar sequer num movimento desse tipo – e muitos anos antes da Internet ajudar a quebrar essas barreiras.
"Ununiform", o seu novo disco, editado em 2017, insere-se num contexto mais negro e eletrónico, como uma espécie de resposta ao R&B do século XXI – há quem o tenha comparado aos conterrâneos The xx, por exemplo, que tão bem sabem navegar essa ténue linha entre a pop e o clubbing. Será com ele que regressa a Portugal, mais de vinte anos após a estreia no Coliseu dos Recreios, para dois concertos em Lisboa e Porto, que serão respetivamente o 13º e o 14º de Tricky no nosso país. O que esperar? Nada em especial, e tudo em particular. É impossível fazer previsões quando há um artista que se move tão bem por entre os diversos ramos da música. Só há um como Tricky, certamente.
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