“Quem nos viu ontem e quem nos vê hoje?”, pergunta um mulher desalojada. Poderá ser que lhe chamem sem-abrigo; sem tecto, sem domicílio. Dorme debaixo das estrelas da cidade, à sombra do sol dos turistas, embrulhada na autenticidade forjada que lhe pinta de surro o peito e ruboresce as bochechas. “Quem nos viu ontem e quem nos vê hoje?”, deitados nos cantos para dar a cama aos estrangeiros; postos a comer o plástico para dar a carne aos outros.

“Turismo” é uma crítica. Não, “Turismo” é um espelho: da gentrificação, da mudança, da mutação da cidade. A ágora é palco, a ágora sobe ao palco, para se enfeitar do kitsch, do very typical, enquanto as telas tornam todas as fachadas empenas cegas, escondendo a mudança que o barulho das obras apenas denuncia e de que os despejos, mais ou menos criminosos, são sintoma.

Até o teatro eles compram: para modernizar, internacionalizar, fazer marca, trazer mundo. Até nas salinas eles se põem a vender pizas, alimento decerto tradicionalmente tradicional, entre a salicórnia e os pássaros que hão de ter eles de se desviar dos aviões.

Esta é a cidade de "Turismo", peça escrita e encenada por Tiago Correia, da companhia A Turma, com consultoria artística e tradução de Regina Guimarães, numa co-produção do Teatro Municipal do Porto e do Cine-Teatro Louletano, que estreou no Teatro do Campo Alegre (uma das salas do teatro municipal portuense) em 2020.

Se fôssemos apenas reduzir a história a uma sinopse, diríamos que esta é a vida de um pedaço de cidade: é a história de uma jovem (Inês Curado) que quer vingar no teatro; a história da mãe doente (Romi Soares) e do filho polícia (José Eduardo Silva) que se mudam para os subúrbios para arrendar a casa no centro histórico; a história do investidor (Paulo Lajes) que comprou o teatro e quer comprar a casa, custe o que custar; a história do turista francês (André Júlio Teixeira) que vai lá passar a noite à casa, subarrendada pela jovem atriz; e a história de uma mulher (Claudia Lázaro) que é orago, vítima de um despejo criminoso, abandonada às sortes da própria mente.

Mas só isto não enchia 140 minutos. Tiago Correia navega nos cinzentos — porque também assim o é a realidade. Há propósitos (e interesses), intenções múltiplas que justificam a ação das personagens e que são, no fundo, o que põe a rodar as engrenagens de qualquer cidade burguesa contemporânea: o turismo que tudo move, tudo consome, e tudo alimenta.

A cidade deixa de ser comunidade, torna-se passagem/paisagem. "Isto é a p*** de uma Disneylândia, amigo", resume o investidor. A cidade em obra, em reconstrução, reavaliação, reatribuição do que deve ser — o mesmo estado em que estão as personagens, cujas ações destapam profundidades sucessivas, e ninguém é apenas o que é, misturando o certo e o errado para sobreviver.

Tiago ergueu “uma geografia, uma cidade plural”, que na súmula é “um conjunto de cidades”, do Porto, onde vive, a Loulé, por onde passou em residência artística na criação deste projeto.

Na técnica, Tiago Correia navega entre o cinema e o teatro. A criação de um ambiente sonoro, uma paisagem sónica que acompanha a ação, permite entrar no centro da cidade — qualquer cidade, pois os sons são indistintos o suficiente —, ser estremecido pelos aviões, abatido pela música abafada que vem dos bares, arrancado do sono pelas obras.

Mas talvez o aspeto visual mais marcante seja a partilha, quase meio por meio, da boca de cena com o ecrã. É como se estivesse diante de nós a ser rodado um filme em direto (a realização ao vivo está a cabo de Francisco Lobo), um longo plano que se enquadra nas personagens e nas cenas que nos quer obrigar a ver (mesmo se, fora do quadro, o mundo continue a decorrer).

Tiago fá-lo com rara mestria: o vídeo (engenho hoje comum no teatro) não serve apenas de adereço à cenografia, ou de metáfora/analogia com o texto. O vídeo detém um propósito narrativo, aproximando a ação, trazendo para destaque um ângulo invisível ao público, permitindo, assim, descortinar os detalhes (e, claro, é uma boa solução para incluir as legendas). Com o advento do cinema, com as câmaras a quebrarem a distância entre os atores e os destinatários, o mundo da representação conheceu uma mudança: os gestos tornam-se mais subtis, menos abertos, mais próximos. Aqui, encenador e realizador jogam com essa dicotomia, com esse paralelo cénico, para criar uma concorrência na história.

As premissas do projeto começam em 2017. E logo a equipa começou a ser montada: Ana Gormicho na cenografia; Rui Lima e Sérgio Martins na música original; Francisco Lobo na realização ao vivo; Sara Miro nos figurinos; Maria Pinto na produção executiva; e Rui Monteiro na luz. Antes sequer de partir para a escrita e para a pesquisa, Tiago juntou-se com os criativos para perceber aquilo que queriam dizer sobre este tema, "e de que forma essas referências de cada um se podiam transformar em questões cénicas", explica Tiago Correia, em entrevista ao SAPO24.

"De que forma íamos trabalhar o conceito plástico, o dispositivo cénico para reunir um conjunto de coisas de que íamos falando", indo buscar a cada área os tijolos para a construção do universo? Só depois surge o texto e, com ele, há que dar vida à história, tendo em conta as vontades e as possibilidades: "Não podemos fazer aquilo que queremos, temos de fazer aquilo que é possível", conta.

"É uma peça que exige muito espaço, com muitos espaços dramatúrgicos: há dois apartamentos, há uma praça, há um café nas salinas, há um aeroporto... Era impossível termos todos estes espaços de uma forma absolutamente realista e tivemos de desconstruir essa ideia. Pegámos no material das telas de construção, as redes que se colocam à volta dos edifícios, para criar este espaço de camadas — onde podia ser projetado vídeo e atrás das quais podíamos colocar estas personagens, como se vivessem numa espécie de gaiolas e estivessem sempre atrás das redes, sempre dentro de uma obra, como se toda a cidade fosse uma obra perpétua."

Assim, os subúrbios ficam recuados no palco (sendo a emoção das personagens aproximada pela câmara), "para criar essa ideia periférica", explica Tiago Correia. Nessa distância, atrás de todas as redes, vive o polícia, provavelmente a personagem com mais camadas. Mesmo se escondido pela transparência das telas, é nele que residem as opacidades narrativas — é ele o eixo das contradições (e das ligações).

Mas mesmo os lugares mais próximos do centro da cidade têm elementos que constroem a urbe contemporânea: os diálogos das personagens no apartamento são cortados pelas festas, pelos sunsets. Junto ao aeroporto, o turismo é interrompido pelos aviões. Tudo isto acontece em cena, de um modo que, não sendo ele mesmo um mecanismo da história, constrói de maneira sugestiva o cenário.

Isto faz com que a peça seja a interseção de meios, por isso, multimédia. Tiago conta que o objetivo é alcançado pela relação próxima com Francisco Lobo, mas também através da sua própria forma de trabalhar com os atores "que é até, em certos aspetos, um pouco anti-teatral." É, afinal, "uma busca de um relacionamento autêntico entre as personagens, que parte da psicologia do ator, que exige um envolvimento emocional do ator e que também é mais fácil de absorver num espaço pequeno, em que nós estamos perto dos atores, do que em grandes palcos."

"Portanto, aqui a ideia de termos uma câmara na cara dos atores durante o espetáculo também é uma forma de tentar manter esse intimismo — já que não podemos estar colados aos atores, que ao menos a imagem nos possa trazer mais perto, permita ver o suor deles, as lágrimas. Enfim, emoções subtis que no teatro são mais difíceis de ver e que normalmente têm de ser exageradas. Aqui não se trabalha nesse exagero, mas sim na subtileza das reações."

Não é, porém, a única razão para a imagem filmada ter tanta proeminência na cena. "Uma das grandes obsessões do turismo é a imagem, a recolha de imagem, às vezes como substituição da verdadeira conexão emocional com os sítios. Às vezes as pessoas vão a um sítio e em vez de o sentirem, fotografam-no e vão embora."

"Quando estava a escrever a peça, ainda estava a perceber como é que isto ia acabar. Tinha de acontecer alguma coisa, alguma coisa que nos abalasse, que nos deixasse a pensar sobre o que é isto. E a verdade é que foi nessa altura que aconteceu o incêndio no Bolhão — isso foi a 200 metros da minha casa e direcionou completamente a escrita da peça", admite Tiago.

A 31 de Janeiro de 2020, a casa esteve quase cheia no Teatro do Campo Alegre. Foi antes das denúncias de censura, foi antes da polémica e da atenção mediática. "Sentia-se na plateia, na forma como as pessoas estavam a reagir ao espetáculo e como reagiram no final, sentia-se muito a urgência de alguém fazer uma catarse de tudo isto. porque não havia um dia, e agora acho que está a voltar a acontecer, em que não houvesse uma conversa sobre uma situação de despejo, sobre alguém que está a mudar de casa porque a renda vai subir ou sobre não conseguir andar na rua, ou sobre ir a um café e darem-lhe o menu em inglês... Enfim. Havia uma necessidade de fazer uma catarse e eu sinto que este espetáculo, pelo menos para as pessoas que estavam ali, a fez."

Regressar ao Porto.

Estamos a poucas horas da re-estreia. Tiago leva-nos para um café recentemente aberto, à beira da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE, do Instituto Politécnico do Porto) onde estudou e onde agora repõe “Turismo”. Detrás do balcão chegam os sotaques franceses dos anfitriões desta esplanada de relva sintética no pátio de um prédio. É como se a ficção fosse bater de frente na realidade.

“Turismo" não é a história de uma cidade. É de várias. Mas é uma cidade que soa a Porto: “Eu vivo no Porto. Gosto de pegar nas coisas da forma mais pessoal possível. Tento encontrar a ferida que existe dentro de mim, na forma como eu me relaciono com essa temática, para poder falar das coisas de uma forma pessoal”, conta.

“A verdade é que assisti à transformação repentina da cidade do Porto com o turismo. Também muito aproveitei dessa renovação da cidade, da dinâmica que a cidade ganhou. Reconheço as coisas positivas. Criei este projeto quando comecei a ver aí nas ruas da cidade uma grande revolta — um bocadinho radical, até, com frases como "tourists go home [vão para casa, turistas] — e isso levou-me a pensar: calma, mas a culpa é dos turistas? Turistas somos todos.”

“De repente há aqui uma intolerância que se começa a criar com o estrangeiro e com o outro, que é preocupante. Podemos fazer nisto uma analogia com a crise dos refugiados, com a forma como os países rejeitam os refugiados, mas como desejam os turistas, pelo dinheiro que geram”, explica o dramaturgo. “Tudo isto me pareceu uma questão sensível, complexa e interessante para partir para uma coisa. Mas eu estava a escrever e no prédio ao lado — durante toda a escrita e durante a pesquisa —, estava um hotel a ser construído, portanto, um prédio a ser destruído desde as oito da manhã até às oito da noite, picaretas, um bocado a banda sonora que vai existindo na peça, são coisas que nós realmente reconhecemos desta vivência aqui no Porto.”

“Agora, não é só sobre o Porto. Nós somos do Porto e reconhecemos o Porto na peça, mas eu julgo que quem for de Faro reconhece Faro na peça. Eu também fiz pesquisa no Algarve, estive em residência artística em Loulé e andei a percorrer um bocadinho aquelas cidades e é uma situação completamente diferente, porque lá esta transformação radical do turismo já aconteceu há cinquenta anos. Mas, ainda assim, assiste-se neste momento em Faro a uma transformação radical.”

Assim, “aquela cidade é um conjunto de cidades, que podem ser cidades portuguesas, como podem ser cidades do sul da Europa, como Cagliari, ou Nápoles — a única diferença, desta cidade da peça, para cidades como Barcelona, Veneza, onde há um turismo massificado a uma outra escala, é que isto são cidades cujo fenómeno é mais recente e esta transformação está a ser vivida no momento e talvez ainda haja tempo para fazer alguma coisa. Essa é a diferença, porque se calhar em Barcelona e em Veneza pouca coisa se pode fazer.”

Mesmo se não é um espelho, o Porto encontrou-se na peça. E talvez tenha sido esse desconforto do encontro que levou a que a folha de sala, com um texto de Regina Guimarães, a não ser distribuída no teatro municipal e que o livro da peça (onde está o texto de Regina Guimarães na íntegra) não pudesse ser vendido à porta do Teatro do Campo Alegre.

Tiago Correia não esconde o desconforto de falar do "momento triste" que marcou a estreia do espetáculo, no início de 2020, no Teatro Municipal do Porto. Após a apresentação, Regina Guimarães denunciou aquilo a que chamou "censura", com a não distribuição da folha que normalmente acompanha e enquadra uma peça de teatro. A direção do Teatro disse que a decisão tinha o acordo do encenador — facto, porém, logo desmentido por Tiago Correia. Sucederam-se, depois, mais denúncias de ocultação ou pressões no setor cultural do Porto, que durante um mês estiveram mesmo presentes na discussão política da invicta.

"Foi um momento triste desta cidade, do teatro desta cidade. Foi um momento triste da minha vida. Quando julgamos que estamos a fazer o nosso trabalho, que temos uma missão, que a cultura é esse lugar, o lugar de colocar questões complexas, sem necessariamente ter resposta para elas. É um bocado triste que tudo isso tenha acontecido", diz agora ao SAPO24.

Tiago Guedes, o diretor do Teatro Municipal, viria mais tarde a admitir como um “erro” a não publicação do texto de Regina Guimarães. Mas o mal estar com “Turismo” não era apenas aquela nota de rodapé que questionava o conceito de “cidade líquida” do antigo vereador da cultura de Rui Moreira, Paulo Cunha e Silva (que morreu em 2015). Outras ações em torno do trabalho deram a entender um ambiente difícil.

Agora, numa sala diferente, a peça regressa. Passou uma pandemia, passaram umas eleições autárquicas. E passou uma polémica. A folha de sala, essa, vai lá estar. “Eu seria incapaz de censurar alguém da minha própria equipa, ou de concordar com uma censura a alguém da minha própria equipa”, diz Tiago Correia.

Regina Guimarães “encontrou na peça a realidade”, acrescenta Tiago. “A minha peça é uma ficção — ela encontrou o Porto; encontrou cidades portuguesas e em específico o Porto. E, portanto, naquele prefácio ela fez uma analogia com a cidade do Porto. Isso, para mim, só significa que o texto não é uma brincadeira; só me lisonjeia. É só uma opinião — e eu seria incapaz de lhe pedir que omitisse fosse o que fosse daquela folha de sala."

Na altura, a atenção dos jornalistas caiu em cima da polémica entre Tiago Guedes, Regina Guimarães e Tiago Correia (dias depois das duas récitas no Campo Alegre). Ninguém falou da gentrificação denunciada, dos despejos criminosos, dos incêndios aparentemente inexplicáveis em prédios do Centro Histórico e do "terrorismo psicológico" denunciado pelo próprio presidente da junta.

"Não é por acaso que essa oportunidade se perdeu. Foi muito inteligente desviar o foco do espetáculo para uma outra questão. Só se falou dessa outra questão e não sobre as questões complexas de que o espetáculo falava — e acho que isso foi muito inteligente", afirma Tiago Correia.

"Agora há uma oportunidade de se voltar a falar sobre o espetáculo, de se voltar a falar sobre a gentrificação, de se voltar a debater esta questão que é de facto a do espetáculo e não a da censura — esta obsessão, esta doença com o turismo, com a forma como as cidades se estão a transformar e como os habitantes estão a ser escorraçados."

Pouco mais de um mês após a estreia, os primeiros casos de covid-19 em Portugal esvaziaram as ruas. Os alojamentos locais ficaram vazios, as filas desapareceram da frente dos monumentos. Os tróleis calaram-se e os flashes das fotografias apagaram-se.

“Quando surgiu a pandemia, fiquei muito preocupado com este espetáculo, porque era o meu texto mais recente, o meu espetáculo mais recente e parecia que já se tinha transformado numa peça de época”, conta Tiago Correia. Era como se a peça fosse símbolo de “um momento da história do país e do mundo que nunca mais iria acontecer, que nunca mais iria voltar a ser aquilo; seria impossível, depois de uma pandemia mundial, não repensar aquilo que se está a fazer nas cidades e não perceber que uma pandemia não é uma ficção científica, uma catástrofe natural não é uma ficção científica, que qualquer coisa pode a acontecer e estas cidades ficarem desertas, sem habitantes e sem interesse nenhum.”

Hoje, porém, o turismo voltou com idêntica voracidade. Tiago confessa-se “bastante desiludido por não se ter aproveitado este tempo para construir alguma mudança.”

"Nada neste espetáculo é uma mensagem que é a minha opinião transmitida ao espectador. As personagens dão as suas opiniões, consoante aquelas que são as circunstâncias das suas vidas — e é por isso que elas são livres de dizerem aquilo que querem e dizerem coisas absurdas e de criar contradições na peça, que nos deixam até na dúvida se nos estamos a rir da coisa certa, se não somos nós também culpados pelo final triste deste espetáculo."

À saída do café, os rostos simpáticos atrás do balcão perguntam que entrevista era esta. Ali em cima, logo à noite, estreia uma peça, conta Tiago. O homem sorri e pergunta as horas. Domingo talvez lá vá.


“Turismo” está no Teatro Helena Sá e Costa, na rua da Alegria, no Porto, até ao próximo dia 10 de outubro, com três récitas: sexta e sábado às 21h e domingo às 17h. Os bilhetes normais têm um valor de 12 euros.

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