Na história da Cinderela, a aspirante a princesa vê-se forçada a regressar a casa antes que soe a meia-noite, hora em que os feitiços se quebram e ela volta a ser uma normalíssima doméstica. Na história do NOS Primavera Sound, o feitiço quebrou-se pelas 2h30 da madrugada, a poucos instantes de os Gorillaz terminarem a mágica 'Clint Eastwood'; num segundo estávamos a ouvir a melódica de Damon Albarn, e no outro mais nenhum som jorrou do palco, sem que tenha sido dada qualquer explicação para o sucedido. Apesar disso, para trás ficou não um sapatinho de cristal, mas as memórias proporcionadas pelo espetáculo daquela que era a atração principal da edição deste ano, não só pelo seu peso histórico como pelo facto de esta ser apenas a segunda vez que os Gorillaz visitaram Portugal (alguém se recorda do concerto em Belém?).

Para uma geração inteira, os Gorillaz são a banda. Naquele ido ano de 2001, quando a MTV e a VIVA eram uma porta de entrada para o maravilhoso mundo da música, foram muitos os que ficaram fascinados com os vídeos de 'Clint Eastwood', 'Rock the House' ou '19-2000', não só por causa da música – aquela estranha fusão entre rock, hip-hop, punk, eletrónica, música latina, dub e sabe-se lá o que mais – como também pela bonecada. Fascinados, porque quando se é criança todos os desenhos animados são bons. Dizer que os Gorillaz são, mais que outra coisa, uma banda para miúdos não é ofendê-los: é colocá-los no mais importante dos patamares, o dos fazedores de bom gosto musical, influencers antes dessa palavra existir sequer nos dicionários. Do seu caldeirão saiu a vontade posterior de ir ouvir muitas outras coisas, dos De La Soul aos próprios Blur, dos Happy Mondays a MF Doom. E só estamos a fazer referências aos dois primeiros discos...

O festival esgotou para os acolher. E Damon Albarn, espetáculo dentro do espetáculo, e que impediu os fotojornalistas presentes de o fotografar, não fez por menos: cantou, tocou uma panóplia de instrumentos (guitarra acústica, piano e a supracitada melódica à cabeça), desceu por várias vezes para junto do público e aparentou estar tão feliz na cidade do Porto como em 2021, quando o seu Chelsea venceu a Liga dos Campeões no Estádio do Dragão. E, ainda assim, conseguiu não ser o centro total das atenções, que ora eram dirigidas para a banda que o acompanhou (um baixista endiabrado, um baterista coeso e um incrível coro gospel), ora o eram para os verdadeiros Gorillaz, os bonecos animados a que Albarn e Hewlett deram vida. Para não falar da quantidade de estrelas de luxo que subiram ao palco como convidados: Beck (em 'The Valley of the Pagans'), Fatoumata Diawara ('Désolé') e Little Simz ('Garage Palace'), para enumerar algumas.

O punk de 'M1 A1', logo a abrir, deixou antever boas coisas. Ao longo de uma hora e meia certinhas, aqueles que cresceram com eles não sentiram o desgaste acumulado ao longo de três dias de festival, deixando-se embalar por 'Tomorrow Comes Today', cantando o refrão absurdo de '19-2000' ou erguendo os braços em direção ao infinito, rindo às gargalhadas com 'Feel Good Inc.'. 'O Green World', que começou com Albarn sozinho ao piano, foi um dos mais bonitos momentos de um concerto que ainda andou pela mui infantil 'On Melancholy Hill', pela (hoje em dia problemática) 'Kids With Guns', pelo thriller EDM de 'Stylo' ou por 'Rhinestone Eyes', 'Andromeda', 'Dirty Harry' (o coro de crianças transformado em desenho) e 'Clint Eastwood' – cujo único problema foi aquele final abrupto. Se isso acabou por estragar uma coisa quase perfeita? Sim, mas quando se é fã a sério todos os concertos são perfeitos.

Desses, teve-os também Pabllo Vittar. Poucos minutos antes do início do espetáculo já se iam ouvindo os gritos de "Pabllo! Pabllo!", da parte de quem ignorou os Dinosaur Jr. para marcar presença nas grades do Palco Super Bock, de forma a testemunhar a vinda da cantora brasileira ao NOS Primavera Sound. Quando por fim começa, com os dançarinos a subir primeiro, seguidos por um curtíssimo vídeo de apresentação, a loucura torna-se generalizada. Estamos a falar, no fim de contas, de um dos grandes fenómenos do Brasil do século XXI, drag queen que é um ícone da comunidade LGBTQ+ e um espinho encravado na garganta de Jair Bolsonaro, dado o apoio demonstrado a Lula da Silva; foi, por exemplo, alvo de um processo em tribunal por ter erguido uma bandeira com o rosto do agora candidato e anterior presidente, durante a sua atuação na edição brasileira do festival Lollapalooza.

Existe a ideia de que o NOS Primavera Sound é sobretudo um festival para a música dita "alternativa", que nessa definição significa toda e qualquer banda independente do rock do presente e do passado. J Balvin, há uns anos, provou que essa ideia estava errada. O NOS Primavera Sound é um festival musicalmente inclusivo, onde num curto espaço de tempo, caminhando entre palcos, podemos apanhar o rock dos Dinosaur Jr., o R&B jazzístico de Jamila Woods e o hip-hop de Little Simz. Ou o brega em esteróides de Pabllo Vittar, que encheu o Palco Super Bock, e não apenas de membros da "sua" comunidade. 

Durante uma hora e pouco foram, naturalmente, eles o público-alvo da sua atuação, que só pecou pelo recurso excessivo a back vocals (alguém tem que lhe dizer: tens voz, canta!) e pela muita ocupação de tempos mortos com a dança, ainda que compreendamos que isso é essencial num espetáculo pop. Trilingue – foi versando em português, inglês e espanhol –, Pablo Vittar desfilou (a palavra não é inocente, já que falamos de uma aspirante a diva) temas como 'Bandida', 'Parabéns' ou 'Sua Cara', incluindo pelo meio uma versão de 'Lean On', essa grande canção dos Major Lazer com DJ Snake. Os que foram pela curiosidade podem ter ficado desapontados, já que faltou, muito resumidamente, um elemento diferenciador de uma Ivete Sangalo. Quem beija o chão que ela pisa terá saído dali a pensar ter visto um dos melhores concertos da sua vida.

Começamos a ouvir 'Mirrorful' e quase não acreditamos que tanta gente tenha ignorado os Jawbox para ver mais um concerto dos Interpol em Portugal. Nos anos 90, o grupo foi mais um dos que beneficiou com "Nevermind", assinando pela Atlantic em 1993 e lançando "For Your Own Special Sweetheart", sem saberem que esse seria o seu canto do cisne – uma história transversal a muitos, como lembrámos ainda ontem, ao falar dos Pavement. 1997 assistiu à sua separação, 2009 viu-os reunirem-se brevemente, e 2019 voltou a contar com eles, até que a pandemia lhes estragou os planos. Uma banda azarada, portanto, e que manteve essa má estrela no Palco Binance, com o rebentar de uma tarola. Mas colocamos tudo isso de parte e o que temos à nossa frente é uma banda rock fenomenal, quase metálica, sem que isto seja uma referência ao heavy metal e sim à forma como os instrumentos parecem chocar uns com os outros, numa cacofonia que entusiasma e anima como se estivéssemos perante um daqueles segredos extremamente bem guardados a que só os eleitos têm acesso. 'Reel', com o aviso prévio de J. Robbins de que deixou «a voz no Primavera de Barcelona», foi praticamente exemplo disso. Há que citar Lucas, 8:8: Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça.

Falámos dos Dinosaur Jr. e, no seu regresso ao festival, os norte-americanos tiveram um daqueles azares que acontece a muito bom artista: conseguiram chegar à cidade do Porto, mas os seus instrumentos não tiveram a mesma sorte. Com recurso a bateria, guitarra e baixo emprestados, o trio deu o concerto possível, num registo mais baixo, em termos de volume, daquilo a que o palco principal do NOS Primavera Sound nos habituou este ano. Foi bom escutar 'I Ain't', tema retirado do seu último álbum ("Sweep It Into Space", 2021), e sentirmo-nos uma vez mais os slackers que somos sempre que escutamos a mestria de J Mascis. Ou, pelo menos, até os amplificadores rebentarem. Vá lá que Lou Barlow manteve o sentido de humor: «é o nosso dia de sorte, estamos no Porto!». De facto não dá para se ser triste nesta cidade.

Isso é algo que ninguém diria ao ver pela primeira vez os Dry Cleaning, que sofrem do mesmo problema que apoquenta inúmeras bandas rock independentes: parecem tão aborrecidos com a sua própria existência que, por seu turno, arriscam aborrecer-nos também. O que lhes vale, para além do ar de metaleiros (notável a camisola de Neurosis envergada pelo guitarrista, mais notável tê-lo feito sob um calor abrasador), é o seu pós-punk de média velocidade sobre o qual Florence Shaw vai debitando versos abstratos, entre o canto e a spoken word – como em 'Unsmart Lady'. 'Strong Feelings' foi dedicada a um Pedro em específico («não é para os outros Pedros», frisou), e 'More Big Birds' serviu para homenagear Paula Rego, «uma lenda». Mas nem a ausência de joie de vivre impediu Florence de exibir um largo sorriso perante os muitos aplausos do público, a dada altura, o que é prova de que o ennui vende e é saudável. Ao que parece.