Depois de os Nirvana terem "rebentado" em 1991, a indústria musical passou a ter apenas uma coisa em mente: encontrar a próxima grande banda rock que, vinda do underground, conseguisse conquistar o mainstream com o mesmo sucesso que o trio de Aberdeen. A sua demanda levou a que as histórias de algumas dessas bandas tivessem uma continuação feliz, mas também fez com que muitas outras se desmoronassem. Não foi o caso dos Pavement. Aquando do lançamento de "Slanted and Enchanted", álbum de 1992 que depressa se tornou no amor de uma vida e é hoje considerado como um dos mais influentes do indie rock dos anos 90, o grupo de Stephen Malkmus era "apenas" objeto de culto. A sua chegada ao topo começou a fazer-se em 1994, com "Crooken Rain, Crooked Rain" e o relativo êxito que foi 'Cut Your Hair', que naquela altura conseguiu o destaque maior que uma banda da década poderia receber: ser insultada por Beavis e Butt-Head.
Só mais tarde, já em 1999, é que os Pavement se veriam forçados a colocar um ponto final nas suas aspirações de longevidade. A relação entre os membros do grupo deteriorou-se, a tal ponto que naquele que seria o seu último concerto de sempre, em Londres, Malkmus algemou-se ao microfone de forma a salientar «aquilo que significa estar numa banda». "Seria", porque os Pavement acabariam por regressar em 2009, quando aquilo a que os ingleses chamam de bad blood se dissipou e o mundo pôde voltar a escutar aquele rock melódico, rasgado, oriundo de uma América alternativa que nunca teve medo de ter medo de crescer.
Mais dez anos se passaram e a juventude continua toda ali. Não só a dos Pavement como a dos fãs acérrimos - e não parece existir nenhum fã da banda que não seja acérrimo - que marcaram presença no NOS Primavera Sound para um dos poucos concertos que o grupo irá dar nesta sua terceira encarnação. Numa autêntica viagem por uma máquina do tempo imaginária, e bem mais dispostos que da última vez que partilharam juntos um palco, os Pavement resgataram não só 'Cut Your Hair' como ainda a magnífica 'Grounded' (com a qual abriram o espetáculo), 'Gold Soundz' («esta canção é do caraças!», garantiram), 'Stereo', 'Fight This Generation' e 'Fin', a fechar, o ponto final ideal para um evento que não acontece muitas vezes nesta vida. Vinte e duas canções no total, menos que nos espetáculos imediatamente anteriores, mas isso pouco importa aos que os testemunharam. Talvez daqui a dez anos voltem a dar concertos. Para já deixaram muito boa gente de coração cheio.
Foi também nos anos 90 que Beck começou, tal qual os Pavement, a criar um certo estatuto enquanto artista de culto, com a folk de baixa fidelidade de "Golden Feelings" (1993) e "Stereopathetic Soulmanure" (1994). Porém, tudo mudou com "Mellow Gold": a culpa é de 'Loser', canção que lhe valeu um contrato com a DGC e a presença no top 10 de vendas da Billboard. Ainda hoje não conseguimos soletrar "anos 90" sem mencionar 'Loser' e a graciosa falta de auto-estima que existe num refrão que começa com soy un perdedor num castelhano com ligeiro sotaque, e que capturou como poucas a apatia e sentido de irresponsabilidade da Geração X - só o grunge, e nem sequer será todo o grunge, lhe poderá fazer frente nesse campo.
'Loser' fez-se ouvir, alto e bom som, tanto por parte de Beck como do público do NOS Primavera Sound neste que foi o primeiro concerto do norte-americano em Portugal desde 2008. Notava-se que muitos dos presentes já ansiavam pelo seu regresso, sem que o próprio tenha sido exceção. Não pelos elogios à cidade do Porto (que existiram), mas pela forma como apresentou a sua música em palco, num medley de canções cujo trabalho de corta-e-cola só encontra paralelo naqueles primeiros anos do hip-hop, em que Grandmaster Flash era Deus. Não que seja (apenas) o hip-hop a ditar os gostos e os caminhos de Beck: há que lhe gabar o ecletismo, misturando sem medos vários géneros musicais e sem qualquer tipo de vergonha (mas um tipo que se apresenta impecavelmente vestido de branco e com óculos de sol à noite só pode ser desavergonhado).
Com uma rapidez e energia impressionantes, e também com uma belíssima dose de esquizofrenia, Beck fez as delícias de quem esteve presente neste segundo dia de festival, que mal teve tempo para os aplausos da praxe entre canções, tal era a forma como de um tema se passava imediatamente para outro. Detetou-se 'Devil's Haircut', um trecho curtíssimo de 'Colors', viagens por uma Venice, Califórnia imaginária e uma versão de 'Everybody's Got to Learn Sometime', clássico dos Korgis presente na banda-sonora de "Eternal Sunshine of the Spotless Mind" (Beck fez menção ao filme e alguns cinéfilos presentes não esconderam o seu entusiasmo). Só durou uma hora, mas foi até ver o melhor concerto do NOS Primavera Sound. O adjetivo "extraordinário" parece pouco para o descrever.
King Krule foi extraordinário logo quando surgiu: 'Out Getting Ribs', single lançado quando o inglês era ainda um jovem imberbe de 16 anos e respondia por Zoo Kid, deixou meio mundo pasmado com a pureza daquela guitarra e daqueles versos, num tom poético atípico para a idade. De miúdo passou a rei, editou três álbuns e perdeu o estatuto de “artista a solo” para ganhar uma banda notável. A sua voz permanece idiossincrática, uma espécie de barítono anasalado emitido como se se estivesse nas tintas para quem o ouve, mesmo que à sua frente esteja uma legião de fãs confessos – que começaram por achar piada ao cãozinho fofo cuja fotografia colocou como fundo, em palco, e acabaram a derramar as lágrimas obrigatórias de 'Rock Bottom', canção sobre a luta de King Krule contra a depressão. Em mais uma passagem por Portugal (e, de véspera, atuou de surpresa no Ferro Bar, no Porto), King Krule não desiludiu. Iremos vê-lo por mais ocasiões.
Rina Sawayama seria talvez o nome mais fora do contexto deste segundo dia de NOS Primavera Sound. Não porque estejamos a falar de uma artista extremamente avant-garde, que faça aquele género de música a que só meia dúzia de iluminados acha graça, mas porque se trata de uma estrela pop em ascensão, talhada mais para as grandes arenas que para o palco quaternário de um festival. Isso pouco lhe importou. Perante uma quantidade considerável de fãs eufóricos, vários envergando a bandeira arco-íris (Rina não se esqueceu de fazer uma referência ao Mês do Orgulho LGBTQIA+), a japonesa foi desfilando boa parte dos temas que compõem "Sawayama", álbum de estreia editado em 2020, com destaque para o house de 'Comme Des Garçons' (aquela linha de baixo, nossa).
Acompanhada pela sua banda e por duas dançarinas, mostrou-se altamente faladora - e por vezes nem seria preciso, mas isso prova que se preocupa com a sua audiência -, fez-nos rir quando apresentou 'Akasaka Sad' como «uma canção depressiva, yay!», e tentou que os presentes se amassem um pouco mais, primeiro com o mantra «vou amar-me a mim mesmo» (que pediu que se repetisse), e depois com uma indicação para que disséssemos à pessoa imediatamente ao nosso lado que ela era «podre de boa» (mesmo que não a conhecêssemos, numa espécie de Tinder da vida real). Já merece claramente outros palcos.
Os Beach Bunny, apesar de terem nascido em 2015, também parecem habitar os anos 90. Munida de uma guitarra elétrica à qual foi puxando riffs a roçar o pop/punk, com laivos twee (podemos chamar-lhe "rock fofinho"), Lili Trifilio começou por pedir ao público que se agachasse para um posterior salto, dando um shot de energia a '6 Weeks', antes de deixar a dica: «se quiserem dançar, estão à vontade». Sim, às vezes dá vontade, mas os Beach Bunny são sobretudo daquelas bandas que se vê sentado enquanto se espera pelo cabeça de cartaz; demasiado inocentes para serem a melhor banda das nossas vidas, demasiado divertidos para poderem ser ignorados, sobretudo para quem vê no rock alternativo uma tábua de salvação. "Contemporaneidade" é uma palavra que não existe no seu dicionário. São arqueólogos do passado e, francamente, nem há grande mal nisso.
O NOS Primavera Sound termina este sábado, com concertos de Dry Cleaning, Khruangbin, Pabllo Vittar, Dinosaur Jr., Interpol, Earl Sweatshirt, Jawbox e Gorillaz, entre outros. Os bilhetes já se encontram esgotados.
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