Eu ia a conduzir. Era agradável. O movimento fazia‐me sentir bem. Eu não sabia para onde ia. Conduzia simplesmente. Um tédio havia‐se apoderado de mim — eu, que habitualmente nunca me entediava, tinha sido tomado pelo tédio. Nada do que me ocorria fazer parecia proporcionar‐me satisfação, por isso limitei‐me a fazer algo ao acaso. Sentei‐me no meu carro e comecei a conduzir, e num cruzamento onde era possível virar à direita ou à esquerda, virei à direita, e no cruzamento seguinte onde era possível virar à direita ou à esquerda, aí virei à esquerda e assim por diante continuei a conduzir. Por fim, já tinha avançado bastante por uma estrada florestal, onde os sulcos das rodas iam ficando cada vez mais fundos, quando me apercebi de que o carro estava a atolar‐se. Continuei a conduzir até que o carro ficou totalmente atolado. Tentei fazer marcha‐atrás, mas não consegui, então parei o carro. Desliguei o motor. Permaneci sentado dentro do carro. Bem, e agora aqui estou, pensei eu, agora aqui estou sentado, e senti‐me vazio, como se o tédio se tivesse transformado em vazio. Ou talvez numa espécie de ansiedade, pois senti como que um receio dentro de mim enquanto ali estava sentado a olhar em frente, vazio, como para dentro do nada. Para dentro do nada. Mas afinal o que estou para aqui a dizer, pensei eu. Ali à minha frente está a floresta, é só uma floresta, pensei eu. Portanto, esta minha súbita necessidade de conduzir acabara por empurrar‐me para uma floresta. E era todavia uma maneira de dizer, segundo a qual algo, alguma coisa conduzia a outro algo, a outra coisa, o que quer que isso pudesse significar.

Pedro Moura e Susa Monteiro juntam-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 21 de fevereiro, uma quarta-feira, pelas 21h00. Consigo trazem  "Mensagem", de Fernando Pessoa, numa edição da RTP/Levoir.

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Olhei para a floresta ali à minha frente. A floresta. Sim, árvores dispostas muito junto umas das outras, abetos, pinheiros. E por entre as árvores o solo escuro, que mais parecia húmus seco. Sentia‐me vazio. E depois esta ansiedade. De que tinha eu medo. Porque sen‐ tia eu medo. Tinha tanto medo que não conseguia nem me atrevia a sair do carro. E aqui terminava a estrada florestal por onde havia entrado, e onde me tinha atolado, era aqui sensivelmente que acabava o caminho. E provavelmente seria por isso que eu sentia esta ansiedade, por ter atolado o meu carro no fim de uma estrada florestal, e aqui, no fim desta estrada florestal, não havia espaço onde pudesse fazer a inversão de marcha. E não conseguia lembrar‐me de ter passado em algum lugar onde pudesse ter feito a inversão de marcha, desde que tinha começado a conduzir nesta estrada florestal. Mas seria possível. Sim, talvez fosse mesmo assim, pois se tivesse encontrado algum lugar onde pudesse ter feito a inversão de marcha, seguramente teria parado o carro e tê‐lo‐ia feito, uma vez que de modo algum eu diminuía o meu tédio a conduzir por uma estrada estreita através desta paisagem de colinas baixas, bem pelo contrário, só o aumentava. Mas eu não tinha passado por nenhum lugar onde pudesse ter feito a inversão de marcha, e provavelmente seria o que eu esperava que acontecesse a qualquer momento, sim, deparar com um lugar onde pudesse encostar o carro um pouco à berma, recuar um pouco, avançar de novo, repetir isso talvez umas quantas vezes, sim, até ter virado o carro por completo, obviamente, e poder conduzir de volta até à estrada principal, descendo a estrada florestal, e depois conduzir até qualquer lugar, mas que tipo de lugar, até um lugar onde houvesse gente, onde eu talvez pudesse comprar qualquer coisa para comer, por exemplo, uma salsicha em pão aquecido ou talvez, quem sabe, eu encontrasse um pequeno café ao longo da estrada principal onde pudesse parar e comprar o meu jantar. Havia essa possibilidade. E de repente ocorreu‐me que havia já vários dias, não conseguia lembrar‐me de quantos, que não jantava. Mas deve ser isso que acontece a todos os que, como eu, vivem sozinhos. Torna‐se como que uma tarefa fastidiosa cozinhar uma refeição só para si mesmo, e o que acaba por acontecer é que se agarra no que estiver mais à mão, uma fatia de pão, se houver pão em casa, e põe‐se uma coisa qualquer por cima, muitas vezes só maionese directamente sobre o pão e duas ou três rodelas de salsicha de cordeiro em cima. Mas afinal é nisso que deveria estar a pensar aqui sentado, como se não tivesse nada mais importante com que me preocupar. Mas então em que deveria pensar. E quão estúpido é fazer essa pergunta, pensar assim. Vim atolar o meu carro numa estrada florestal, onde não há vivalma, e não consigo libertá‐lo daqui, então isso significa que já tenho muito com que me manter ocupa‐ do, sim, ocupado, que é como quem diz, ocupado a tentar desatolar o carro. Porque o carro não pode simplesmente ficar aqui atolado tal como está. Isso é óbvio. Tão óbvio que até é estúpido pensar assim. Eu aqui de pé a olhar para o carro e o carro ali parado como que a olhar estupidamente para mim. Ou talvez seja eu que estou a olhar estupidamente para ele. E valha‐me Deus, que aspecto estúpido tem o carro atolado ali num montículo, que é assim que deverá chamar‐se, entre dois sulcos, mesmo no meio da estrada florestal, que se prolonga por mais uns escassos metros até terminar numa vereda que desaparece no interior da floresta. E afinal o que estava eu a fazer nesta estrada florestal. Porque decidi conduzir por aqui. Que raio de ideia foi essa. Por que razão o fiz. Nenhuma. Não houve nenhuma razão. E afinal porque decidi então conduzir por uma estrada florestal. Talvez por puro acaso. Sim, não se lhe poderá chamar outra coisa. Mas o acaso, afinal o que é. Não, deixemos isso, não posso começar com este tipo de pensamentos absurdos. Nunca levam a parte alguma. E o que tenho de fazer agora é libertar o meu carro, pois, é exactamente isso. E a seguir tenho de tentar fazer a inversão de marcha. Mas isso, sim, isso é só porque não passei por nenhum lugar onde pudesse ter feito a inversão de marcha do carro, porque se tivesse passado, teria feito a inversão de marcha já há muito tempo, pois conduzir por uma estrada florestal mais monótona do que esta é praticamente impensável. Apenas umas quantas colinas pouco acentuadas, e além disso a única coisa que vi foi uma quinta, uma pequena quinta abandonada, sim, deve ter sido abandonada, dado que diversas janelas da casa da quinta estavam entaipadas com tábuas de madeira de vários tipos. E a pintura da casa da quinta estava gasta e em mau estado, em alguns sítios havia desaparecido por completo. E metade do telhado do celeiro tinha abatido. É triste ver casas decadentes, casas negligenciadas. Casas com que ninguém se preocupa. E porque é que ninguém se preocupa com elas. Pois antes de ter começado a deteriorar‐se, essa casa já deve ter sido, sim, uma bela casa. Eu próprio gostaria de ter vivido numa casa como essa, ou seja, gostaria de ter vivido nessa casa por onde passei, mas isso teria de ter sido numa fase anterior da minha vida, quando era jovem, não agora. Evidentemente que não gostaria de ter vivido nessa casa no estado de decadência em que actualmente se encontrava. Pois agora não se podia viver nela, claro que não, nem pessoas nem, nem o quê. Animais, talvez. Sim, talvez animais de algum tipo se tivessem lá alojado e provavelmente a casa agora estivesse povoada de ratos. Quem sabe se também ratazanas não teriam começado a viver nessa casa. Ou, bem, não interessa.

Livro: "Uma brancura luminosa"

Autor: Jon Fosse

Editora: Cavalo de Ferro

Data de Lançamento: 19 de fevereiro de 2024

Preço: € 14,35

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De qualquer modo não havia pessoas na casa, isso é certo, e do que eu precisava agora era de uma pessoa, de alguém com um carro, ou, melhor ainda, com um tractor que pudesse rebocar o meu carro e desatolá‐lo. Mas na casa da quinta por onde eu havia passado não estava ninguém, isso era certo. E depois eu havia percorrido um longo troço sem ver mais nada além daquelas colinas, quando avistei uma cabana na parte de cima desta estrada florestal, que me pareceu suficientemente bem cuidada, mas que tinha as cortinas corridas por detrás das janelas, por isso também não havia gente nessa cabana, com certeza. E então, bem, eu teria de percorrer todo o caminho de volta até lá abaixo à estrada principal para encontrar alguém. E agora que penso nisso, eu também não tinha passado assim por tantas casas ao longo da estrada principal, esta região estava bastante desertificada, sim, desde o último cruzamento em que eu tinha virado à esquerda ou à direita, ou lá o que fosse. E será que eu de facto havia passado por algumas casas ao longo daquele último troço extenso que conduzi na estrada principal. Talvez sim. Talvez não. Em todo o caso, era um troço extenso, possivelmente a estrada principal iria terminar não muito longe dali, e eu teria tido de fazer a inversão de marcha logo ali, se não tivesse virado à esquerda e começado a subir esta estrada florestal. E será que havia casas algures ao longo da estrada principal. Não. De que eu me tivesse apercebido, não. Não, quer eu tivesse virado à direita ou virado à esquerda, mas eu também não estava muito preocupado em procurar casas. Casas não era o que eu tinha em mente, para ser sincero. Obviamente que isso não sig‐ nificava que eu não tivesse passado por uma casa ou outra. Claro que não. O mais provável é que eu tivesse passado por diversas casas. E nas casas por que devo ter passado certamente que viveria lá alguém. Pelo menos em algumas. Pois se não vivesse lá ninguém, então para que haveria ali uma estrada principal. É claro que tinha de haver casas ao longo da estrada principal pelas quais eu acabara de passar, bem, acabara de passar, é como quem diz, talvez tivesse passado anteriormente, antes de ter avistado uma espécie de estrada florestal, um caminho florestal, sim, e de ter virado à esquerda e ter começado a conduzir por este caminho acima. Mas o caminho de regresso até à estrada principal era longo para descer a pé, e quanto é que eu teria ainda de caminhar ao longo da estrada principal até finalmente encontrar uma casa. Não sei, boa pergunta. E depois, quando finalmente tivesse encontrado uma casa, não era certo que lá estivesse alguém, e mesmo que estivesse alguém em casa, bem, não havia a certeza de que tivesse carro, ou que a pessoa que tinha carro estivesse em casa. Mas quando se mora num lugar ermo como este será necessário ter carro. Ou talvez não. Antigamente ninguém tinha carro. E provavelmente passava por ali um autocarro. Podia acontecer que assim fosse. E com toda a probabilidade eu tinha passado por alguma pequena quinta, e aí tinham possivelmente um tractor, um pequeno tractor, talvez um tractor de duas rodas. E um tractor de duas rodas podia com toda a certeza rebocar facilmente o meu carro e libertá‐lo do malfadado montículo onde agora se encontrava atolado. Só que a estrada florestal até lá abaixo à estrada principal era longa e era provável, não, era mais do que certo, que eu teria uma grande distância a percorrer ao longo da estrada principal até encontrar a primeira casa. Talvez fosse preferível eu tentar uma vez mais desatolar o carro, acelerando para a frente e acelerando em marcha‐atrás. Para a frente, para trás. Uma vez e outra. Para a frente, para trás. E tentei fazê‐lo uma vez mais. Depois fico ali sentado a olhar em frente, mas era como se de certo modo eu não estivesse a olhar para nada, apenas permanecesse ali sentado. E passado um bocado acho que começou a nevar, de facto devo tê‐lo visto já há muito, mas demorou o seu tempo até que eu pensasse nisso, até que me apercebesse disso, mas tinha mesmo começado a nevar, não em grande quantidade, mas os leves flocos de neve iam caindo e flutuando vaporosos e eu ali sentado tentava seguir‐lhes a dança com o olhar, primeiro de um floco de neve, depois do seguinte, enquanto consigo seguir com o olhar um floco de neve sigo‐o, com os primeiros não era assim tão difícil, embora não conseguisse seguir um floco de neve por muito tempo, mas gradualmente e à medida que ia nevando cada vez com maior intensidade tornou‐se difícil, sim, impossível, então desisti de tentar fazê‐lo, e limitei‐me a permanecer sentado a olhar em frente e pensei que agora que tinha começado a nevar ainda era mais difícil desatolar o carro, se até aqui já tinha sido difícil, agora seria totalmente impossível. Logo, não havia outra coisa a fazer a não ser arranjar alguém que pudesse desatolá‐lo. Mas então eu não podia ficar simplesmente sentado no carro, tinha de sair e procurar alguém. Simplesmente, eu não sabia para onde haveria de ir para procurar alguém. A pequena quinta que eu tinha visto estava abandonada, e não havia ninguém na cabana que eu tinha avistado, e era longe para ir a pé até lá abaixo à estrada principal. E porque tinha eu conduzido até este sítio tão longínquo. Talvez porque me limitei a conduzir sem reflectir, sem pensar no quanto tinha realmente conduzido. Sim, provavelmente seria por isso. Mas agora... agora o quê. Sim, agora, a única coisa a fazer era encontrar alguém com um tractor ou com um carro que pudesse rebocar e desatolar o meu carro. Mas o problema era precisamente esse. Para onde haveria eu de ir para encontrar alguém. Tinha de voltar a descer até à estrada principal, e depois continuar a andar ao longo desta o que fosse preciso até chegar a uma casa onde houvesse alguém que tivesse um carro ou um tractor, e as pessoas que viviam num lugar tão inacessível como este tinham de ter carro.