Corria um tempo que não era este, num país que não era aqui, e as guitarras gritaram a primeira vida. Nos anos 50 do século passado, uma revolução musical coincidiu com uma literária, fundindo-se a poesia melancólica de gente com pressa de viver às notas disparadas pelos instrumentos em melodias com pressa de se reinventar.

Agora, ameaça chover. A tarde não está para brincadeiras meteorológicas e a cidade, incauta da calamidade e da iminente emergência de declaração eminente, corre o seu rodopio de quinta-feira. Diante da estrada molhada, o Rivoli, no centro do Porto, ergue-se como um penedo abandonado no oceano.

Hão de ser assim os pesadelos de um técnico de som: três dezenas de microfones montados num palco, 26 ligados, outros apenas a adensar a floresta. Os atores navegam entre os tripés e os cabos, pegam neles e repõem-nos, num bailado metido a reinventar uma qualquer ópera clássica.

Hoje é dia de ensaio, últimos preparativos para retomar uma estreia adiada em março. No Grande Auditório, o ensaio vai repetindo as cenas. Acertam-se os tempos, encenam-se as entradas. Um tempo antes, um tempo depois. Máscaras na cara quando Gonçalo Amorim, o encenador, invade o palco a sugerir mudanças.

Paulo Furtado — mais conhecido por Legendary Tigerman — volta a juntar-se a Gonçalo Amorim, diretor artístico do Teatro Experimental do Porto, desta vez para aquilo que o camaleónico nome do rock nacional descreve como "uma experiência poético-musical".

Estro/Watts — Poesia da idade do Rock é inspirado na obra Estro in Watts, de João Menezes, que traduz e põe em texto as letras do rock norte-americano das décadas de 1950 a 1980. A peça conta com interpretação de Ana Brandão, Diana Narciso, Filipe Rocha, Hugo Inácio, Íris Cayatte, Pedro Almendra, Pedro Galiza e Susie Filipe.

"Um concerto não é, de certeza", descreve Gonçalo Amorim. "É um espetáculo de teatro, talvez mais aproximado da ópera — mas quando muito uma ópera contemporânea; ópera no sentido das narrativas. Um concerto também transporta uma narrativa, mas aqui a missão é um bocadinho maior do que a palavra de um artista, a experiência é para lá do universo de um autor que está a dar um concerto, há uma reunião de textos, uma quantidade de textos, que fazem parte de temas de uma geração".

"A história que se está aqui a contar assume contornos de ópera ou teatro, porque estamos a reunir uma data de temas que são universais e pertencem também a uma geração específica", diz ainda Gonçalo. "Claro que ainda ressoam agora, mas é isso que está a ser invocado — como às vezes se faz nos espetáculos de ópera".

Estro/Watts é uma fusão. Um quarto de peça de teatro, outro de ópera, outro ainda de musical, e reservemos na mesma um quarto de concerto, não fosse a explosão elétrica de um combo de rock, com os chutos no bombo a rasgar o torpor pandémico, fascinante despertador para se ouvir nos bancos de um auditório.

Esse é, aliás, um dos pontos interessantes da viagem: sentir, nem que por um bocado, a atmosfera vedada de um concerto. Poderá ser que o futuro assim se vá resumindo, nos dias do futuro desta doença, disciplinados bamboleares sentados ao som da rebelde explosão, com as guitarras aos gritos, as baquetas aos tiros e os baixos nos seus quentes gemidos, a combinar as formas e a cavar no corpo o estremecimento.

É difícil definir o que ali vai em cena. Assim, a meio dos ensaios na véspera da estreia, esta sexta-feira, no Rivoli, Paulo Furtado e Gonçalo Amorim sentaram-se nas escadas que dão para o palco e puseram-se a pensar numa descrição, em conversa com o SAPO24.

Quanta pandemia cabe nesta experiência?

Paulo Furtado (PF) - Este foi o primeiro espetáculo a ser adiado pelo Rivoli. Estávamos numa terça-feira, para estrear numa sexta, em março. Ontem estávamos a falar sobre isto: o espetáculo ficou quase como que hibernado. De repente, quando abrimos os acertos e os apontamentos, saiu de lá exatamente como se tivesse sido posto num frigorífico durante meio ano e quando o tiramos está mais ou menos como o tínhamos deixado.

Continuamos quase como se não houvesse este período da pandemia — isto é em relação à estrutura do espetáculo, ao modo como ele funciona; claro que houve coisas a ser aperfeiçoadas, mas já estávamos muito próximos da estreia.

Agora, acho que há coisas — como tu [jornalista] sentiste — que ressoam em nós de uma maneira bastante diferente. Há palavras que ouvimos e com que nos relacionamos de uma maneira que não acontecia antes da pandemia. Acho que isso vai acontecer às pessoas que vêm ver o espetáculo: claramente porque também aconteceu connosco enquanto criadores. É uma camada que o espetáculo não tinha e agora passa a ter.

Gonçalo Amorim (GA) - Não se anda a ouvir concertos ao vivo, é raríssimo e nos próximos tempos se calhar também não se vão ouvir. E já não és a primeira pessoa que diz "uau, eu sentia falta desta eletricidade" — para dar conta também do nome, "watts".

créditos: JOSE CALDEIRA/DR

Qual é a base desta experiência?

GA - É uma antologia chamada Estro in watts, feita ali pelo João Menezes Ferreira, que é aquele senhor que está ali no telemóvel [João está de pé, parado a meio do corredor central do Grande Auditório, vazio, a olhar para o ecrã], e é um livro com 800 páginas, que não é um best-off, é um olhar depurado sobre uma geração, que é a dele, ainda por cima, o que faz com que ele tenha um ponto de vista sobre estes autores e sobre os textos que escolheu.

Um dos principais aspetos é serem textos dos autores enquanto jovens, são textos de juventude destes autores — a Patti Smith, o Bob Dylan, David Bowie, por aí fora —, e nós, perante esse calhamaço começámos, de forma colaborativa, coletiva, trazendo para a mesa de ensaios e em residência artística, junto com os autores, fizemos uma primeira triagem de cem poemas, escolhidos por todos, trabalhámos a sério cinquenta deles e agora são só 36 — e alguns já nem sequer a letra têm, porque o nosso ponto de partida era a extração da melodia e o foco total na palavra, e a certa altura começámos a sentir que precisávamos de algumas âncoras que resituassem o espetador na temática que estamos a trabalhar.

PF - Tivemos de ter alguma liberdade de, ao mesmo tempo que se respeita esta herança e estas palavras, ter a capacidade de pôr tudo a zero e recomeçar. Retirámos tudo o que havia de musical e tratámos estas palavras como poesia pura. Depois, alguns voltámos a vestir, noutros criámos ambiências e sonoridades que não evocam as canções, mas que nos ajudam a compreender as palavras ou a sentir o que está relacionado com elas.

Noutros momentos, como o Gonçalo disse, estamos muito próximos do original. Como no "Peace Factory", da Patti Smith, ou "Diamonds in my windshield", do Tom Waits, também estamos muito próximos do original, ou temos uma referência muito próxima.

E há aqui uma ponte também entre a beat generation e esta primeira geração do rock, que para nós também foi uma grande influência: esta coisa do ritmo da palavra e da palavra que não é propriamente musicada mas pode ter um ritmo e pode ter uma cadência, um beat — daí o nome! —, acho que foi também uma coisa muito importante na construção deste espetáculo.

Há aqui uma reconstrução do que já era uma reconstrução. O João Menezes despiu as letras da música e agora vocês voltam a pôr-lhes a roupa...

GA - O impulso principal foi: que bons poemas estão aqui. Como é que nos dedicamos a eles? Independentemente de gostarmos mais ou menos de cada um daqueles autores, ou mais ou menos das músicas — algumas das músicas nem as conhecíamos, na verdade, fomos ouvi-las. O primeiro motor foi a qualidade poética.

PF - E emocional, o modo como ressoava.

GA - Sim. Não é muito académica esta questão, acho que é isso que o Paulo está a dizer. Não é uma coisa académica do género "ah, que bem poema, tão bem construído" — ao deixarmos a equipa escolher, foi mesmo a pedir que as pessoas... Porque isto, boa ou má poesia não se sabe bem o que é. Acho que é a forma como interfere no teu caminho. E nós deixámos que aqueles poemas interferissem na equipa e a partir daí é que os trabalhámos. Depois, claro, teve de haver um conceito.

Quando uma pessoa do teatro decide trabalhar com uma da música — e o motor é a poesia, sabendo que essa poesia vem do rock —, procura-se que temperatura, que narrativa sonora, então, suporta isto. Uma coisa decidida desde o início foi tentar que a melodia esteja apartada deste trabalho.

PF - Depois foi necessário repor esses códigos também, para que o público consiga não estar sempre em águas pantanosas, sem saber exatamente onde está. Por alguma razão se calhar a tua primeira pergunta foi "o que é que eu vi?", porque isto são muitas coisas e há momentos em que é necessário ter de repente uma espécie de farol que diz "estou aqui".

Paulo Furtado e Gonçalo Amorim créditos: DR / Luisa Sequeira

Como se processa essa fusão entre um homem do teatro e um homem do rock?

PF - Nenhum de nós é propriamente uno numa coisa. Já é a quarta vez que trabalhamos juntos — a convite do Gonçalo — e se calhar esta é a mais colaborativo. Diria que, obviamente, a encenação para mim é do Gonçalo, mas há uma grande parte colaborativo entre nós, e há uma parte também muito importante dos atores, muito essencial no modo como chegámos a este conjunto final de poemas e até ao modo como de repente ouvimos estas palavras em português e eu neste momento já não penso a quem é que elas pertencem; sei que elas pertencem a cada um dos atores: e isso é um trabalho enorme e é a base onde é possível depois trabalhar tudo o resto.

Mas foi muito simples. Ambos conhecemos e relacionamo-nos muito bem com esta época e com esta poesia e foi um processo também muito entusiasmaste de mergulhar muito mais profundamente do que alguma vez tínhamos mergulhado nestas palavras e nesta eletricidade e força, que, mesmo retirando todo lado punk de algumas coisas que são sonoramente super agressivas, às vezes parece que estas palavras ainda ressoam mais fortes e mais violentas sem tudo isso: parecem mais claras.

GA - Para mim é difícil estar em projetos em que não sinta que esteja a aprender, ou que aquilo realmente está de alguma maneira a transformar-me e agitar-me. Este é um daqueles processos em que voltou a acontecer isso: voltou a acontecer pesquisa — e às vezes até forço um bocadinho isso, que o coletivo, na pesquisa, esteja realmente a construir um território ainda maior, uma constelação ainda maior a acrescentar às várias constelações que já existem.

Vejo muito os processos criativos não como linhas, mas como constelações onde juntas as coisas e algumas estrelas se estão a apagar e voltam a acender porque voltaste a ativar aquela zona que já andava um bocadinho esquecida porque entretanto foste para outras... Nesse aspeto, pensar em teatro ou rock, não senti propriamente dificuldade — não sei, é como estar a conhecer de novo coisas e ativar outras que estavam escondidas, ou que estavam apagadas.

E estes poemas acabaram por se juntar numa narrativa coesa, ou são uma sucessão de histórias?

GA - São ilhas temáticas. A construção narrativa, embora os temas saltem de poema para poema, é sensorial. Aliás, nós fizemos mesmo dramaturgia sensorial, organizámos os poemas no chão e íamos fotografando, numa dramaturgia gráfica: sabemos mais ou menos os temas, sabemos de que falam e, depois, de forma muito gráfica e sensorial, fomos relacionando-os, primeiro por ilhas, mas depois, também, por sonoridades ou pela maneira como o ator dizia aquele poema, e então ele saltava de sítio; fomos reorganizando poemas ao longo do processo.

É uma dramaturgia gráfica e sensorial, que às vezes até se aproxima da dança, da forma como a dança contemporânea, ou mesmo um concerto, alinha — o alinhamento de um concerto tem também esse lado sensorial, não é, de como e que vou progredir [Paulo concorda].

Aqui fomos dialogando um bocadinho entre a forma como às vezes componho os espetáculos e a forma como o Paulo alinha um concerto, que progressão dinâmica quer.

PF - E depois acho que, obviamente, há linhas que são criadas de uma maneira diferente para cada pessoa que está a ver: algumas que provavelmente com que contamos e esperamos que apareçam e outras que são totalmente inusitadas e que são ligações que tu fazes pelo modo que tudo isto ecoa em ti.

GA - Trabalhar em teatro, que é um trabalho constante com textos e com temáticas, permitiu-nos também organizar os textos nessas ilhas — como a guerra no Vietname ou o amor, a fúria de viver, a morte, working class hero [herói da classe operária], todas estas questões do privado e do público, da praça e do banco da carruagem do metropolitano, as manifestações pelos direitos civis e a pessoa com o walkman acabadinho de aparecer nos anos 1980, no seu banco do metropolitano, ou a escrever um poema.

Esses universos temáticos ajudam a criar um imaginário — ainda hoje o João Menezes Ferreira trouxe um sobre o sexo do Andy Warhol e da Factory, para estimular visualmente os atores e para que não saiamos do universo onde estamos e saibamos do que estamos a falar.

PF - Uma conclusão a que chegámos também e que tem a ver com algumas das perguntas que fizeste é que estas palavras para nós e cada vez mais ressoam tão frescas quanto se tivessem sido escritas ontem. Mesmo por causa do momento que atravessamos agora, como a eleição americana, e grande parte do cancioneiro que escolhemos vem do punk de Nova Iorque e de uma determinada altura em que, estranhamente, algumas das temáticas que são tratadas — e algumas porque são universais, ou particulares e humanas, mas outras também que têm a ver com a crítica à sociedade e com uma certa vontade de ter uma voz dissonante e ainda se mantêm a soar tão fulcrais e tão contracultura e tão relevantes neste momento como ressoavam há cinquenta, sessenta ou trinta anos. Acho que essas ligações também acontecem porque de repente estamos a tratar esta poesia que tem décadas mas que não podia ser mais atual do que é.

Estro/Watts vai passar ainda este ano por Coimbra (11 de dezembro, no Convento de São Francisco) e por Aveiro. Estreou esta sexta-feira no Grande Auditório do Teatro Rivoli, onde repete hoje e no domingo. Os bilhetes custam 9 euros.

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