O romance foi publicado em Portugal pela editora A Alma dos Livros, na 'rentrée literária, com tradução de Carla Ribeiro, tem como cenário a guerra no Vietname, entre 1959 e 1975, que levou à intervenção dos Estados Unidos, um conflito que a escritora viveu ainda menina.
“Escrevi este livro para pedir paz e para que os humanos amem mais os humanos. ‘Quando as Montanhas Cantam’ destaca o custo das guerras além da morte e dos ferimentos. Ele mostra como as guerras separam famílias, destroem culturas, a natureza e traumatizam as pessoas durante gerações”, disse a autora à Lusa.
As feridas causadas pela guerra são ainda hoje “muito sentidas” pelo povo vietnamita, garantiu Nguyen Phan Quế Mai, em entrevista por escrito à agência Lusa, numa troca de perguntas e respostas em inglês.
A guerra terminou há quase 50 anos, “mas centenas de milhares de pessoas ainda estão desaparecidas da guerra", afirmou. "Há uma grande quantidade de bombas não detonadas que continuam a matar pessoas, muitas delas fazendeiros e crianças. Milhões ainda vivem com a dor e o trauma do ‘agente Laranja’”, herbicida usado como arma química, sobre o qual a escritora publicou um artigo no jornal The New York Times, em 2021.
Um “trauma” que os vietnamitas querem ultrapassar, garantiu à Lusa. “Quase não falamos sobre o trauma do passado, mas ele está lá e é doloroso”.
“Se visitar o Vietname, verá que somos um país dinâmico. As pessoas anseiam pelo futuro, trabalham duro para melhorar seus padrões de vida e enviar as crianças para boas escolas. Amamos comida, música, arte e literatura”.
Foi precisamente a literatura que reconciliou a autora com os Estados Unidos, país sobre o qual tinha um “ressentimento”.
Este romance “também é sobre o poder da narrativa e da literatura”, afirmou Nguyen Phan Quế Mai, prosseguindo: “No romance, a avó Diệu Lan diz à neta, Hương, ‘Se nossas histórias sobreviverem, não morreremos, mesmo quando nossos corpos não estiverem mais aqui na Terra’"
"Neste livro, a minha personagem Hương tinha doze anos quando viu as bombas norte-americanas que foram lançadas em sua cidade, Hanói. Ela odiava a América por afastar os seus pais e enviá-los para a guerra, mas depois apaixonou-se pelo povo americano ao ler literatura americana. Pensou consigo mesma: ‘Eu tinha ressentimento da América. Mas ao ler os seus livros, vi o outro lado deles — a sua humanidade. De alguma forma, eu tinha a certeza de que se as pessoas estivessem dispostas a ler-se umas às outras e a ver a luz de outras culturas, não haveria guerra na Terra".
Nguyen Phan Quế Mai refere-se a “Quando as Montanhas Cantam”, como uma “ficção histórica”, tendo entrevistado “centenas de pessoas”.
“Sim, ‘Quando as Montanhas Cantam’ é uma ficção histórica. É sobre a história do Vietname no século XX, por meio das vidas de quatro gerações de uma família vietnamita. Mas é mais do que isso: é sobre o Vietname além das guerras e conflitos armados, o Vietname como um país com mais de 4.000 anos de cultura, um país de pessoas que amam a paz e que anseiam pela paz”.
“Entrevistei centenas de pessoas para este romance”, prosseguiu a autora, referindo que se “pode dizer que muitas coisas no livro são inspiradas em eventos da vida real”.
“A minha avó foi morta na Grande Fome [1944-1945], quando morreram dois milhões de vietnamitas". A autora referiu-se ainda à violência da ocupação francesa, presente desde 1887 até à saída das suas forças em 1954, e à japonesa, durante a II Guerra Mundial. "Então fui compelida a escrever sobre isso no livro. Pensei que buscaria vingança, mas encontrei perdão quando cheguei ao final”.
A autora reconhece, na sua narrativa, a influência dos contadores de histórias tradicionais.
“Eu queria trazer as tradições de contar histórias vietnamitas para este livro. Então, teci muita poesia, assim como tradições ancestrais de contar histórias orais do Vietname, canções para adormecer, provérbios, narrativas de avós [para] netos. Escrevi ‘Quando as Montanhas Cantam’ em inglês [‘The Mountains Sing’], para que os vietnamitas tenham uma voz na literatura mundial. Mas eu precisava de ter certeza de que este livro é autenticamente vietnamita”, argumentou.
A autora introduz na sua narrativa uma carga espiritual que não pode ser confundida com o “realismo mágico”, e que justifica com a prática quotidiana do seu país.
“O Vietname é um lugar de crenças espirituais. Nós praticamo-las todos os dias na nossa adoração aos ancestrais. Temos muitos templos, pagodes e igrejas. Cada casa tem um altar para os entes queridos que morreram. Comemoramos aniversários de morte cozinhando certos pratos e oferecendo-os aos mortos. Acreditamos que os ancestrais não morrem e cuidam de nós. Então eu precisava de trazer todos esses aspetos para o romance”.
À Lusa, a escritora afirmou que, tal como a personagem Hương de "Quando as Montanhas Cantam", queria ser escritora, mas tinha os seus medos, e citou uma parte do livro que descreve a sua hesitação em tornar-se escritora quando era mais jovem.
“Eu achava as palavras bonitas, mas não sabia se seria corajoso o suficiente para ser escritor. Eu lia os livros de Phùng Quán, Trần Dần, Hoàng Cầm e Lê Đạt — escritores que foram presos no movimento ‘Nhân Văn Giai Phẩm’ [movimento político cultural no ex-Vietname do Norte]. O trabalho deles em meados da década de 1950 clamava por liberdade de expressão e Direitos Humanos, aproximando-me do meu avô, que viveu na época e tinha as mesmas ideias liberais. No entanto, esse trabalho, para mim, também realçou os riscos que os escritores enfrentavam, com um Governo que censurava tudo. ‘Um equilibrista de circo equilibra dificuldades de tirar o fôlego’, escreveu o poeta Phùng Quán”.
“Ainda mais difícil é ser um escritor que perdura uma vida inteira no caminho da verdade”, disse Nguyen Phan que acrescentou: “Eu sabia que, como Phùng Quán, se eu escrevesse, só poderia ser a verdade como eu a via. Eu não poderia distorcer as minhas palavras para agradar aos ouvidos do poder”.
Questionada sobre como este seu livro pode ser lido, à luz dos atuais eventos de guerra, como a invasão da Ucrânia e a ofensiva israelita na Palestina, Nguyen Phan Quế Mai afirmou: “Quando eu era uma criança fiquei uma vez na estrada da minha aldeia, olhando para as crateras das bombas e as pessoas feridas em meu redor, para as pessoas que perderam os braços e pernas na guerra, e disse a mim mesma: ‘A raça humana não seria tão estúpida a ponto de travar outra guerra. Olhe-se só para isto!’”.
“Estou devastada com o estado do mundo, como os humanos continuam matando outros humanos. Quantas crianças estão sendo assassinadas todos os dias. Espero sinceramente que toda a violência acabe, que cada país respeite os Direitos Humanos e a liberdade do outro. Também espero que os humanos aprendam a viver juntos, pacificamente. Espero que todos se leiam uns aos outros e simpatizem uns com os outros. Assim como [a personagem] Hương disse em ‘Quando as Montanhas Cantam’: ‘Se as pessoas estivessem dispostas a ler-se umas às outras e a ver a luz de outras culturas, não haveria guerra na Terra’".
Nguyen Phan Quế Mai escreve em vietnamita e em inglês. É utora de 12 livros de ficção, poesia e não-ficção.
A sua poesia em vietnamita tem sido interpretada em canções populares e recebeu o Prémio de Poesia do Ano, em 2010, da Associação de Escritores de Hanói.
Os seus dois romances em inglês, “The Mountains Sing” (“Quando as Montanhas Cantam”) e “Dust Child” alcançaram o segundo lugar no Dayton Literary Peace Prize e foram distinguidos com o PEN Oakland/Josephine Miles Literary Award, o International Book Award, o BookBrowse Best Debut Award e o Lannan Literary Fellowship in Fiction.
Os seus livros foram traduzidos para mais de 25 idiomas, segundo a editora portuguesa, sendo este o primeiro título da escritora publicado em Portugal.
Nguyen Phan Quế Mai foi nomeada pela Forbes Vietnam como "uma das 20 mulheres inspiradoras de 2021".
A autora é doutorada em Escrita Criativa pela Universidade de Lancaster, do Reino Unido.
*Por Nuno Lopes, da agência Lusa
Comentários