Esta conversa tem 50 anos e teve como protagonistas uma jornalista italiana e Henry Kissinger. Muito jovem Oriana Fallaci foi uma partisan, ou seja, integrou a resistência à Itália de Mussolini e às forças nazis, e o seu trabalho como jornalista e escritora tornou-se conhecido pelas entrevistas a grandes líderes mundiais. Nomes como Indira Gandhi, Golda Meir, Yasser Arafat, Willy Brandt, Reza Palahvi, Deng Xiaoping, Ayatollah Khomeini, Lech Walesa - e Henry Kissinger. Numa nota mais próxima, também Mário Soares integrou a lista de entrevistados de Fallaci, na qual  está representada uma boa parte do mundo da segunda metade do século XX.

Oriana Fallaci - Suponho que, na base de tudo, esteja o seu sucesso. Ou seja, como um jogador de xadrez, fez duas ou três boas jogadas. A China, em primeiro lugar. As pessoas gostam de jogadores de xadrez que fazem xeque-mate ao rei.

Henry Kissinger - Sim, a China tem sido um elemento muito importante na mecânica do meu sucesso. E ainda assim, não é o mais importante. O mais importante... Bem, eu digo-lhe. O que é que me importa? O mais importante advém do facto de que sempre atuei sozinho. Os americanos gostam imenso disso. Os americanos gostam do cowboy que abre caminho ao comboio cavalgando à frente, sozinho com o seu cavalo, o cowboy que cavalga completamente sozinho em direção à cidade, à vila, com o cavalo e mais nada. Talvez até mesmo sem uas arma, já que não vai disparar. Ele age, é só isso, ao estar no lugar certo na hora certa. Em resumo, um western.

Mas voltemos a esta conversa de novembro de 1972 com Henry Kissinger. Pouco dado a entrevistas pessoais, aceitou ser entrevistado por Oriana Fallaci por ter ficado impressionado com a entrevista que ela fizera, três anos antes, ao general do exército do Vietname do Norte, e mais tarde ministro da Defesa e vice-primeiro-ministro, Võ Nguyen Giáp, para muitos um dos grandes estrategas militares do século XX (e, por curiosidade, também um centenário que viveu entre 1911 e 2013).

Os factos curiosos sobre esta entrevista, vistos a cinco décadas de distância, não ficam por aqui. Por exemplo, o facto de uma entrevista rara e com a densidade que a jornalista italiana colocava no seu trabalho ter sido publicada na Playboy americana (não era assim tão raro à época).

No ano seguinte, Oriana Fallaci esteve num conhecido talk show da televisão americana  – The Dick Cavett Show – e contou detalhes sobre essa conversa, numa entrevista em que dividiu estúdio com Paul Newman e Joanne Woodward – eram esses os tempos.

Disse que Kissinegr era um homem tímido, que lhe confessou estar desconfortável por estar a ser entrevistado por uma mulher e que a entrevista foi menos longa do que deveria ter sido porque o presidente americano, Nixon, lhe ligou enquanto decorria. “Ligava-lhe a cada cinco ou dez minutos minutos”, relatou Fallaci. Kissinger, disse a própria jornalista no talk show, afirmou mais tarde lamentar ter dado a entrevista, e que algumas respostas teriam sido usadas “fora de contexto”. “Geralmente, eu edito as minhas entrevistas. Neste caso escolhi não o fazer, escrevi na ordem exata do que me disse, como me disse”. Porque disse então “doutor Kissinger” o contrário? “É um político e um diplomata, e a política e a diplomacia são a sublimação da mentira. Eu percebo, é uma necessidade. Mas eu sou uma jornalista e tenho de fazer o contrário, tenho de contar a verdade”, conclui Oriana Fallaci.

A verdade e a mentira sobre Henry Kissinger, que faz 100 anos este sábado, 27 de maio, é, em boa medida, a verdade e a mentira sobre o século XX, o que faz também dele um dos nomes mais controversos dos últimos 100 anos. Para os admiradores, é um dos grandes homens de Estado e um dos arquitetos da política internacional dos últimos 100 anos; para os críticos, é responsável por terríveis acontecimentos e mesmo um criminoso de guerra – uma acusação que não é meramente política, tendo sido formulada judicialmente.

De Heinz a Henry

Não nasceu Henry, como Fonda, com quem Fallaci o comparou na entrevista enquanto cowboy solitário dos filmes, mas sim Heinz. E não nasceu americano, mas sim alemão, em Fürth, cidade vizinha de Nuremberga que, décadas mais tarde, acolheria o tribunal que julgou os crimes nazis na II Guerra Mundial. Será em Fürth que encerrará um conjunto de celebrações do seu centenário, que começam em Nova Iorque, continuam em Londres e terminam na cidade natal. É também esta a vitalidade do “doutor Kissinger” nos seus 100 anos, sendo que há uma semana, a 20 de maio, estava em Lisboa, como convidado da reunião do Clube de Bilderberg.

Gostava de jogar futebol quando era novo, mas o filho, David Kissinger [atualmente CEO da produtora de Connan O’Brien] , assegura, num artigo por ocasião dos seus 100 anos no Washington Post, que não foi prática desportiva que lhe garantiu a longevidade, mas sim a curiosidade pelo mundo que o rodeia.

“No sábado, o meu pai, Henry Kissinger, celebra o seu 100.º aniversário. Isso pode ter um ar de inevitabilidade para qualquer pessoa familiarizada com a sua força de caráter e amor pela simbologia histórica. Não só sobreviveu à maior parte dos seus colegas, detratores eminentes e alunos, mas também permaneceu incansavelmente ativo ao longo dos seus 90 anos. 

Mesmo a pandemia não o desacelerou: desde 2020, concluiu dois livros e começou a trabalhar num terceiro. (...) A longevidade do meu pai é especialmente miraculosa quando consideramos o estilo de vida que seguiu ao longo da sua vida adulta, que inclui uma dieta rica em bratwurst [salsicha alemão] e Wiener schnitzel [panados à moda de Viena], uma carreira a tomar decisões de forma implacavelmente stressante e um amor pelo desporto puramente como espectador, nunca como participante.”, escreveu David Kissinger.

Ainda assim, foi muito por causa do futebol que foi alvo da perseguição nazi aos judeus, quando se escapulia para assistir a jogos, e terá sido mais que uma vez espancado pelos polícias de uma Alemanha segregacionista .O mesmo país que não o deixou ser admitido no liceu e que impediu o pai de continuar a ensinar, factos que convergiram na decisão da família de sair da Alemanha quando Kissinger tinha apenas 15 anos, primeiro em direção a Londres e depois a Nova Iorque, ainda antes do início da II Guerra Mundial.

Muita ordem e pouca justiça

“A Alemanha da minha juventude tinha muito de ordem e pouco de justiça. Não era sítio que inspirasse uma devoção à ordem em abstrato”, afirmou mais tarde, numa declaração cuja veracidade é questionada por Walter Isaacson, que, em 1992, publicou a primeira edição da biografia de Kissinger e que considera que a experiência na Alemanha dos anos 30 o influenciou a tornar-se o expoente político da “real politik” que se tornou.

Nos Estados Unidos, estudou num liceu em Upper Manhattan, na zona de residência da comunidade judaica em que estava integrado. Depois de um primeiro ano em regime diurno, passou a estudar à noite e a trabalhar de dia numa fábrica. E quando acabou o liceu foi estudar contabilidade, estudo que interrompeu quando foi chamado ao exército americano em 1943, o que o levaria de volta à Europa, cinco anos depois de ter deixado para trás a Alemanha nazi. Tinha então 20 anos.

Não perdeu o sotaque alemão, mesmo depois de cinco anos nos Estados Unidos, e terá sido essa umas das particularidades que o fez notado na 84.ª Divisão da Infantaria por outro alemão, Fritz Kraemer, que o recomendou para os serviços de intelligence da divisão. É nessa condição que é enviado para o campo de batalha na Europa, para a Batalha das Ardenas (ou Battle of the Bulge), naquela que foi um das últimas grandes ofensivas alemãs na frente ocidental, entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945.

Já depois da derrota nazi, Kissinger é colocado no Counter Intelligence Corps (CIC), uma agência de informação americana que atuou durante a II Guerra Mundial e o início da Guerra Fria. Da experiência na guerra e na CIC, diria mais tarde que o fez “sentir-se como americano”.

Para Walter Isaacson, o encontro entre Henry Kissinger e Fritz Kraemer foi decisivo no que seria o percurso político e intelectual da figura agora centenária. Kraemer também tinha saído da Alemanha de Hitler, em 1933, mas não pelas mesma razões que a família Kissinger. Não era judeu, era luterano, e a sua oposição a Hitler vinha de fundamentos mais à direita do que propriamente de preocupações com o rumo ditatorial do regime nazi. Era 15 anos mais velho que Kissinger, o que significa que era muito jovem, apenas tinha 25 anos quando abandonou a Alemanha. Para a história fica esse encontro, que fez de um mentor e outro discípulo, e que daria a Kissinger os fundamentos de conservadorismo que pautaram a sua intervenção vida fora.

De Harvard para o mundo: "Legitimidade não deve ser confundida com justiça"

A carreira política de Kissinger começa a desenhar-se em Harvard, onde se licencia, faz mestrado e doutoramento entre 1950 e 1954. Tinha pressa de progredir e era visto como brilhante, ainda que “arrogante e abrasivo”, mesmo para os padrões de Harvard. Facto curioso desse período é a história da sua tese de licenciatura intitulada "O significado da História: Reflexões sobre Spengler, Toynbee e Kant". Tinha mais de 400 páginas e conta-se que terá servido de parâmetro para o limite atual de extensão das teses.

Conta-se também que, nos anos de Harvard, aspirava a tornar-se um espião no FBI.

Mas, a nível académico, é na sua tese de doutoramento que mais claramente se vislumbra o futuro Secretário de Estado e Conselheiro de Segurança Nacional. Em "Paz, Legitimidade e Equilíbrio", Kissinger introduz o conceito de “legitimidade”, sublinhando que não deve ser confundido com justiça. É, na aceção que apresenta, uma plataforma de acordo internacional “sobre a natureza de acordos viáveis ​​e sobre os objetivos e métodos admissíveis na política externa”. Uma ordem internacional que é aceite pelas principais potências é, assim, "legítima", ao passo que uma ordem internacional que não é aceite por uma ou mais das grandes potências é "revolucionária" e, portanto, perigosa.

Entre 1956 e 1958, já com créditos firmados em Harvard, Kissinger conhece um novo patrono – Nelson Rockefeller, que apoiaria anos mais tarde na corrida presidencial de 1964 - e entra no mundo dos ricos e poderosos, ao juntar-se ao Rockefeller Brothers Fund como diretor da unidade de Estudos Especiais. Foi também consultor em várias agências governamentais e think tanks (incluindo a RAND Corporation, agência em que trabalhava o whistleblower que denunciou o dossier americano sobre o Vietname e que é retratado no filme “The Post”).

Entramos assim na década a partir da qual Henry Kissinger passa a ter a sua marca nos principais conflitos internacionais que envolveram a América, que é o mesmo que dizer que fez parte dos grandes conflitos internacionais da segunda metade do século XX.

"Kissinger era um cidadão internacional. Nixon era muito americano"

Kissinger é chamado a integrar o gabinete de Nixon em janeiro de 1969 como Conselheiro de Segurança Nacional. Não foi uma nomeação óbvia, não existia proximidade prévia, mas Kissinger ter-se-á insinuado a partir do momento que Nixon ganhou a nomeação republicana. O Vietname é o seu primeiro grande teste no ativo da política. Tinha visitado o país pela primeira vez em 1965, a pedido do embaixador Henry Cabot Lodge, e era sua convicção que a América não podia ali ganhar uma guerra. É criticado por não ter usado a sua voz nesse sentido, mas a preocupação de Kissinger foi sobretudo orientada a como sair da guerra sem ser sob o manto da derrota.

É um homem muito inteligente, com um conhecimento prático da realidade internacional dos últimos 50 anos como ninguém. Agora, é infalível? NãoLívia Franco, investigadora

Kissinger desempenhou um papel dominante na política externa dos Estados Unidos entre 1969 e 1977. Foi o tempo da guerra do Vietname – cujos acordos de paz lhe valeram um dos Prémios Nobel mais estranhos e e controversos da história, em 1973. Foi agraciado em conjunto com o general e diplomata vietnamita Lê Đức Thọ, que se recusou a aceitar o prémio. Kissinger doou o dinheiro do Nobel para caridade, não compareceu à cerimónia e posteriormente ofereceu-se para devolver a medalha associada.

A colaboração com Nixon teve os contornos do que hoje se chamaria uma relação tóxica, disfuncional, mas em que ambos partilhavam interesses comuns. Um dos capítulos da biografia de Walter Isaacson intitula-se “Os Co-Conspiradores” e cita Kissinger nas suas memórias da Casa Branca, em que descreve Nixon como alguém que tinha uma "tendência poderosa de ver-se cercado por uma conspiração que alcançava até mesmo os seus colegas de gabinete”. O mesmo relato de paranóia é devolvido por outros membros do gabinete em relação a Kissinger, o que torna o par mais parecido do que diferente.

Kissinger e Nixon partilhavam o mesmo apreço pelo sigilo e conduziram numerosas negociações "por canais alternativos". Uma dessas negociações envolveu, por exemplo, conversas com o embaixador soviético nos Estados Unidos, Anatoly Dobrynin, à margem do Departamento de Estado.

“Eram uma dupla fascinante. De certa forma, complementavam-se perfeitamente. Kissinger era o encantador e cosmopolita que tinha a graça e a respeitabilidade intelectual que Nixon não possuía, desprezava e aspirava ter. Kissinger era um cidadão internacional. Nixon era muito americano. Kissinger tinha uma visão de mundo e uma habilidade para ajustá-la de acordo com os tempos, Nixon tinha pragmatismo e uma visão estratégica que dava as bases para as suas políticas. Kissinger diria que não era político como Nixon, mas na verdade era tão político quanto Nixon, tão calculista, tão implacavelmente ambicioso... eram impulsionados tanto pela necessidade de aprovação e pelas suas neuroses, quanto pelas suas forças”, escreve David Rothkopf, também ele um ex-funcionário, mas da administração Clinton, no livro "Running the World".

As negociações entre o Vietname do Norte e do Sul para o desfecho da guerra constituem um retrato realista da forma como Kissinger olhava para a defesa dos interesses americanos, ou da sua visão dos interesses americanos, no mundo. Quando Nguyen Van Thieu, líder do Vietname do Sul, recusou aceitar seu próprio suicídio político implícito no acordo desenhado pelos americanos com o Vietname do Norte, Kissinger defendeu novos bombardeamentos ao Vietname do Norte para obter emendas que não seriam mais do que cosméticas, mas que apaziguariam os vietnamitas do sul.

A viragem para a China

Foi também na era Kissinger que aconteceu a aproximação dos Estados Unidos à China, e que teve lugar a política de desanuviamento, nomeadamente no que respeita ao armamento nuclear e ao braço de ferro com a União Soviética. O que ficou de europeu no americano Kissinger refletiu-se, provavelmente, na preocupação e empenho que teve nessa etapa da história da guerra fria.

O papel desempenhado por Kissinger na aproximação dos Estados Unidos à China já teve várias leituras, tantas quantas são permitidas com a perspetiva que só anos de história trazem. Nessa medida, já foi o visionário que viu, antes de todos os outros, a abertura à China como caminho para o mundo globalizado (ou americanizado) e a fórmula para evitar uma segunda guerra fria. Ao mesmo tempo, foi parte interessada, com os negócios que se tornaram públicos (soube-se que tinha uma empresa a fazer negócios no país), e também o jogador de xadrez que não mediu bem a jogada, atendendo à evolução recente do poder da China no mundo e à disputa da hegemonia aos Estados Unidos.

E, claro, sempre a real politik. Em abril de 1970, tanto Nixon como Kissinger prometeram ao líder de Taiwan, Chiang Ching-kuo, que nunca deixariam de apoiar o país ou fariam quaisquer compromissos com o líder da China, Mao Tse-Tung. Nixon terá falado vagamente sobre melhorar as relações com a República Popular da China, mas não foi mais do que isso.

Enquanto o então embaixador americano na ONU, George H. W. Bush, fazia lobby pela formulação das "duas Chinas" – ou seja, o reconhecimento de Taiwan - , Kissinger dizia a Nixon que Bush era "muito brando e não era sofisticado" o suficiente para representar adequadamente o país.

Taiwan era reconhecida como Estado pelas Nações Unidas e tinha o estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança desde 1945. A 25 de outubro de 1971, a Assembleia Geral da ONU aprovou, com 76 votos a favor, 35 contra e 17 abstenções, a resolução 2758, texto que “restaurou” os “direitos jurídicos” da República Popular da China, “reconhecendo os representantes do seu Governo como os únicos representantes legítimos da China nas Nações Unidas”.

O desfecho foi esta votação e a atribuição do assento no Conselho de Segurança da ONU à República Popular da China.

As viagens de Kissinger abriram o caminho para uma cimeira histórica em 1972, entre Nixon e o presidente do Partido Comunista Chinês, Mao Tse-Tung (ou Mao Zedong), que formalizaram as relações entre os dois países, encerrando 23 anos de isolamento diplomático e hostilidade mútua. Em 1979, os Estados Unidos aceitaram o princípio de "uma só China", ainda que mantendo a garantia de apoio a Taiwan em caso de agressão.

Chile, a hora mais negra?

Um dos capítulos negros da vida política de Henry Kissinger foi a sua atuação no Chile após a vitória do candidato socialista, Salvador Allende, nas eleições legislativas de 1973.

Mediante o aconselhamento de Kissinger, a administração Nixon deu luz verde à CIA para apoiar um golpe militar que impedisse a tomada de posse do presidente eleito. O plano fracassou, mas com o apoio da CIA, a 11 de setembro de 1973, teve lugar um golpe militar conduzido por Augusto Pinochet, de que resultou a morte de Salvador Allende. Três anos depois, em setembro de 1976, Orlando Letelier, opositor chileno ao regime de Pinochet, foi assassinado em Washington com uma bomba que explodiu no carro.

O assassinato foi apontado como fazendo parte da Operação Condor, um programa secreto de repressão e perseguição política, organizado por várias ditaduras da América Latina, no qual Kissinger foi acusado de estar envolvido. Em 10 de setembro de 2001, um dia antes da América sofrer o maior abalo da sua história contemporânea com o atentado às Torres Gémeas, a família do general chileno René Schneider, líder do exército que se recusou a compactuar com a intentona para impedir a posse de Allende, moveu um processo contra Kissinger, acusando-o de colaborar na organização do sequestro de Schneider, que resultou também na sua morte. Décadas depois, a CIA admitiu o seu envolvimento no sequestro do General Schneider, mas não no seu assassinato.

Mais episódios da história mundial têm o seu nome inscrito, da Argentina ao Paquistão e Laos, da guerra de Yom Kippur ao envolvimento alargado no conflito israelo-árabe.

"Interpretou mal a situação em Angola desde o início. Nunca esperou a intervenção dos cubanos"

Um dos capítulos menos mediáticos da atuação de Kissinger é, curiosamente, aquele que se cruzou com interesses de Portugal ou dos portugueses, nomeadamente em Angola, após o 25 de abril. O continente africano não tinha desempenhado até então importância de maior no xadrez americano, mas para Kissinger, no rescaldo de uma campanha desastrosa no Vietname, era importante reforçar a influência dos Estados Unidos noutra região do mundo e, ao mesmo tempo, conter a expansão da ideologia marxista.

Num artigo publicado esta semana, o jornal inglês The Guardian dá voz a políticos e historiadores que apontam o dedo a Kissinger. O ex-embaixador dos Estados Unidos na Nigéria, Donald Easum, que atuou na equipa de Kissinger como secretário-assistente de Estado para assuntos africanos, foi um deles, nas memórias que deixou. Escreveu sobre o seu "desprezo" pela África negra e referiu em concreto a sua visão em relação aos acontecimentos que decorreram da independência de Angola.

Easum resumia assim a ambição de Kissinger: "Estava determinado a aproveitar em Angola o que ele considerava uma situação oportuna para mostrar a força da América (e de Henry Kissinger)”. Continua o ex-embaixador: “acreditava que derrotar o MPLA, que considerava pró-soviético, poderia apagar a imagem dos Estados Unidos enfraquecidos e em retirada após o Vietname. Além disso, achava que podia fazer isso de forma barata, com a colaboração clandestina da CIA. Provar-se-ia que estava completamente errado”.

"Tinha a reputação de ser um génio estratégico", refere-se, no mesmo artigo, citando Nancy Mitchell, historiadora e autora de "Jimmy Carter in Africa: Race and the Cold War". "Mas se estudarmos o que Kissinger fez em Angola e na Rodésia (atual Zimbabúe), fica evidente a fraqueza de toda a sua política na África, mas também no Oriente Médio e no Vietname. Interpretou mal a situação em Angola desde o início. Nunca esperou a intervenção dos cubanos."

Também em Timor, a história não traz boas recordações da atuação americana.

Em dezembro de 1975, o então ditador indonésio Suharto terá discutido os planos de invasão durante uma reunião com Kissinger e o presidente Ford, em Jacarta. Tanto Ford quanto Kissinger deixaram claro que as relações dos Estados Unidos com a Indonésia permaneceriam fortes e que não se oporiam à anexação proposta. Mas tinha de ser "rápido" e não poderia acontecer enquanto estivessem de visita ao país. Consequentemente, Suharto adiou a operação por um dia e, em 7 de dezembro, as forças indonésias invadiram a antiga colónia portuguesa. Suharto prosseguiu com o plano de anexação que teve no massacre de Santa Cruz, em 1991, um momento de viragem na opinião pública internacional. Mas seria necessário quase mais uma década para que o país tivesse a sua autodeterminação.

"Kissinger é controverso na atualidade como qualquer pessoa que adote uma postura de real politik”

Os teóricos das relações internacionais e da ciência política têm um nome para quem atua como Kissinger sempre atuou. Chamam-lhe um “realista”, ou seja, alguém que privilegia a defesa do interesse do Estado, num cenário em que os Estados estão em permanente competição ou potencial conflito.  Nas palavras de Lívia Franco, professora e investigadora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, "Kissinger é controverso na atualidade como qualquer pessoa que adote uma postura de real politik”. Como acontece, exemplifica, àqueles que tentam enquadrar os interesses da Rússia no quadro da invasão da Ucrânia.

Sobre a atuação em África, a académica chama a atenção para outro ângulo da mesma história. “Antes de Angola, há Portugal e a chamada estratégia da vacina, que levou os Estados Unidos a ponderarem deixar ‘cair’ o país durante o PREC para que pudesse servir de exemplo a outros países do sul da Europa, como Itália ou Grécia”, recorda .

A análise que fez sobre Angola e a solução "barata" com apoio da CIA revelou-se efetivamente errada, facto atestado pelo prolongamento da guerra civil no país. Na África do Sul e na Rodésia, a opção Kissinger acabou também por se provar um erro de estratégia. “É um homem muito inteligente, com um conhecimento prático da realidade internacional dos últimos 50 anos como ninguém. Agora, é infalível? Não”, diz, sem hesitar, Lívia Franco.

Para a professora, não é a discussão sobre África que torna Kissinger mais ou menos polémico, apesar de, face aos países envolvidos, ser mais relevante para Portugal. “Depende tudo do ângulo de observação, basta pensar na controversa atuação que teve no Chile ou na Argentina”, lembra.

O enquadramento teórico é, no entanto, coerente com o alinhamento que sempre mostrou ter. “Com uma lógica realista, tudo isto faz sentido”, diz , recordando a frase de um dos autores clássicos do realismo, Tucídides que trouxe até nós a guerra do Peloponeso: “nas relações entre potências, não há lugar para a justiça”. Não está longe do conceito de "legitimidade" que Kissinger invocou na sua tese de doutoramento.

Se em África, Kissinger falhou a análise, com a China é dele que parte o primeiro sinal de aproximação ao afirmar que não iria haver equilíbrio no mundo sem esse país.

No livro de 2014 intitulado "Ordem Mundial" e numa entrevista de 2018 ao Financial Times, afirmou que acredita que a China deseja restaurar seu papel histórico como o Reino do Meio e ser "o principal conselheiro de toda a humanidade". Em 2020, durante um período de deterioração das relações sino-americanas causado pela pandemia de COVID-19, os protestos em Hong Kong e a guerra comercial entre os EUA e a China, Kissinger expressou preocupações de que os Estados Unidos e a China pudessem entrar numa segunda Guerra Fria e eventualmente num conflito militar semelhante à I Guerra Mundial. Uma guerra entre China e Estados Unidos seria "pior do que as guerras mundiais que arruinaram a civilização europeia" – é a forma como vê o xadrez.

Foi também nos anos da era "oficial" Kissinger que avançaram os acordos de controlo do armamento e a chamada política de détente. Como Conselheiro de Segurança Nacional na administração Nixon, procurou reduzir a tensão entre as duas superpotências e a negociou as Conversações sobre a Limitação de Armas Estratégicas (que culminaram no Tratado SALT I) e o Tratado de Mísseis Antibalísticos com Leonid Brejnev, então secretário-geral do Partido Comunista Soviético, como parte dessa estratégia.

“Convém lembrar que foi também um dos arquitetos do desarmamento nuclear, impulsionado por uma visão prática do mundo. A pergunta que se fez foi 'se não podemos extinguir, como podemos limitar?”, afirma Lívia Franco.

Na verdade, é a mesma pergunta que aos 100 anos faz sobre a inteligência artificial, as suas fronteiras e perigos. “Percebe que é uma tecnologia altamente disruptora e que tem de se estabelecer regras para o jogo. Que é o que um realista faz”.

Fora da análise teórica das relações internacionais, Lívia Franco não tem dúvidas que a atuação de Kissinger "teria hoje menos espaço e uma receção menos boa na opinião pública internacional". Opinião pública que, em boa verdade, aos longos destes seus 100 anos, Kissinger sempre aparentou ignorar.

Quando completou 90 anos, em 2013, na passadeira vermelha da festa desfilaram republicanos como John McCain e democratas como John Kerry e Michael Bloomberg. Um artigo no Women's Wear Daily relatou que coube a Bill Clinton e John McCain os brindes de aniversário numa sala decorada em estilo chinês. Hillary Clinton, dizem os relatos, entrou de braços abertos e perguntou se estavam “prontos para a segunda rodada”. McCain afirmou: "Não conheço ninguém que seja mais respeitado no mundo do que Henry Kissinger".

Kissinger manteve-se fiel ao clube de futebol da sua cidade natal, o SpVgg Fürth (agora SpVgg Greuther Fürth) que regressou esta época à 2ª Divisão da Bundesliga. É membro honorário, tem entradas vitalícias para os jogos e quando estava no exercício de funções oficiais, a embaixada alemã informava-o todas as segundas-feiras de manhã sobre os resultados da equipa. É talvez das poucas coisas que não mudou no seu século de vida.

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