Na recorrente questão de quando começa e acaba um século, ou quando nasce e morre uma Era, as opiniões são muitas. Diz-se, por exemplo, que o século XIX começou prematuramente em 1783, com a construção de uma máquina a vapor útil, ou que a Era Moderna surge de rompante em 1789, com a Revolução Francesa. São discussões académicas, porém interessantes, tentando por ordem nesta cavalgada sem freio que é a civilização, dando tino ao desatino colectivo da espécie.
Nesta ordem de ideias, é mais ou menos consensual que o século XX arrancou em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, catorze anos atrasado em relação ao tempo cronológico; e que a Era Atómica, ou, se quiserem, pós-Industrial, explode em 1945 com a bomba atómica em Hiroshima.
E quando terá acabado o século XX e começado o XXI? É mais difícil classificar a História quando ainda se está dentro dela e não se tem o recuo para ver a importância posterior dos acontecimentos. Alem disso, há a tendência para escolher marcos políticos em detrimento de outros aspectos civilizacionais. Por exemplo, poder-se-ia dizer que o século XX começa em 1911, quando Kandinsky pinta os primeiros quadros abstractos; ou em 1905, com a Teoria da Relatividade de Einstein.
O começo do século XXI, ainda tão novinho e já cheio de hematomas, achava-se que tinha sido acontecido também prematuramente, com derrube do Muro de Berlim, em 1989, simbolizando o fim da ideologia que marcou (ou assombrou, conforme as opiniões) toda a centúria. Mas depois viu-se que terá desabado um ano depois da sua morte temporal, em 2001, com as Torres Gémeas de Nova Yorque – isto porque, embora a guerra dita assimétrica (ou de guerrilha, ou tantas outras coisas) fosse anterior, o colapso daqueles edifícios simbólicos é demonstração mais estrondosa de como o modo de guerrear mudou.
No entanto talvez seja mais pertinente considerar a morte dum século, ou mesmo duma Era, pelo desaparecimento dos seus ícones. São eles que determinam as ideias, o comportamento, os sonhos e o estilo de vida duma época, tanto para o bem como para o mal. Despertam a imaginação das pessoas, a veneração mais profunda ou o ódio mais visceral. Mas são incontornáveis.
Nessa perspectiva, o século XX entrou em perda em 2011 (Steve Jobs), acelerou em 2013, (Nelson Mandela, Margareth Thatcher) e finou-se de vez este ano. Em 2016, os ídolos dos baby boomers (a geração que nasceu a partir de 1945) estão a morrer como se a peste negra da Idade Média tivesse voltado. E em todas as áreas.
Alguns são génios reconhecidos de que praticamente toda a gente gostava, como David Bowie, Prince e Leonard Cohen. Os três são responsáveis pelas mais reconhecidas tendências musicais do século XX, mas não morreram sozinhos. Com eles – só este ano, não esquecer – foram-se Leon Russel (tocou com os Beach Boys, Rolling Stones e Elton John), Glenn Frey, guitarrista dos Eagles, Paul Kantner, guitarrista dos Jefferson Airplane, Maurice White, dos Earth Wind & Fire, George Martin, o “quinto Beatle”, Keith Emerson, dos Emerson, Lake and Palmer, Gato Barbieri (Último Tango em Paris) e tantos mais que seria uma triste e interminável sinfonia enumerar todos.
Actores... Gene Wilder, o original Willy Wonka, Robert Vaughn (The Man from Uncle), Allan Rickman, (o Professor Snape em Hoggarth), George Kennedy (tantos, mas tantos filmes). Até Burt Kwoouk, aquele chinês que lutava interminavelmente com Peter Sellers na Pantera Cor de Rosa não aguentou a invernia. Dois realizadores, pelo menos: Michael Cimino, que fez “O Franco Atirador”, incontáveis filmes com Clint Eastwood e ganhou cinco Óscar; e Guy Hamilton, com vários “James Bond” famosos.
Repare-se que não estamos aqui apenas a debitar nomes: estas pessoas tiveram um papel importante no imaginário de muita gente. “O Franco Atirador”, por exemplo, é considerado um dos filmes mais representativos do trauma da Guerra do Vietname.
E, já que falamos em cinema, Nancy Reagan, a actriz que foi o cérebro de um presidente impossível de ignorar; e no jornalismo, Morley Safer, aquele senhor grisalho e muito simpático que durante trinta anos era um dos rostos do “60 minutos”.
Ainda não falamos de Muhammad Ali? A sua postura contestatária marcou indelevelmente o movimento de igualdade racial do século. Quanto ao fotógrafo Bill Cunningham, retratou como ninguém todas as cores do século no dia a dia das ruas de Nova Iorque. Já outro fotógrafo, David Hamilton, registava as ninfetas no espaço etéreo que representam o romantismo lírico e erótico duma geração. E não esquecer Harper Lee, autora cujo único livro, “Matar a Cotovia”, fez a cabeça de gerações.
Podíamos continuar nesta ladainha – e o ano ainda não acabou – mas vamos já para a machadada final. Pois é, o Fidel. Já se esperava que morresse, já não mandava, aparecia decrépito, vestido com o equipamento Adidas do inimigo... Mas há muito mais em Fidel do que a Revolução Cubana. Fidel foi (e continuará a ser) o símbolo da revolta da América do Sul contra o domínio político e económico da América do Norte. Essa revolta dominou completamente a segunda metade do século XX nas Américas e, entre Allende e Jânio Quadros, para citar só dois, foi o único governante de la Sud América que conseguiu fazer frente à maior potência militar e económica do período pós 1945.
Não só fez frente como provocou, achincalhou e soprou-lhes fumo de charuto na cara. Nós, europeus, que sempre tivemos a questão capitalismo/comunismo como um caso doméstico, a resolver entre iguais, não podemos compreender a importância que Fidel teve para os milhões de sul-americanos que viveram debaixo da arrogância estrangeira. Para eles, a questão não era o sistema político – até porque o temperamento latino não vai muito com igualdades socialistas – a questão era a libertação psicológica, moral mesmo, que Fidel representava.
Os tempos mudaram – pois, o século XX acaba aqui – e os norte americanos já não são os opressores, têm outras preocupações, mas o sentimento perdura. A morte de Fidel é o fim de uma antítese do continente americano, e não são figuras menores como Maduro ou Lula que a vão perpetuar. Com o desaparecimento de Fidel morre o romantismo revolucionário do século. Dá lugar a situações bem mais prosaicas e menos comoventes – a corrupção no Sul, o terrorismo no Norte.
Das grandes figuras politicas do século XX, parece que o único que ainda está vivo é Mikhail Gorbachev, o homem que teve a coragem de destruír o seu próprio posto de trabalho... Mas dos vivos não reza a História.
Nota: na foto em destaque neste artigo vemos uma atuação de dança, em Berlim, junto ao Memorial de Guerra Soviético - Treptower Park, em junho de 2014 durante o evento "20 bailarinos para o século XX", produzido pelos franceses do "Musee de la danse". O memorial foi erguido após a Segunda Guerra Mundial para homenagear os 80 mil soldados soviéticos que perderam a vida na batalha de Berlim. Berlim, outro dos ícones do século XX.
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