Quando publicámos o nosso artigo “in memoriam” de 2022, a 26 de dezembro, deixámos aberta a hipótese de não incluir todas as pessoas que partiram neste ano — afinal de contas, faltavam cinco dias até 2023.

No entanto, nada nos preparava para esta sucessão de acontecimentos. Depois de Pelé partir a 29 de dezembro, hoje foi a vez de Bento XVI, o Papa emérito que passou a batuta a Francisco na Santa Sé.

Sua Santidade, cujo nome civil era Joseph Ratzinger, abalou a Igreja ao resignar ao pontificado por motivos de saúde, a 11 de fevereiro de 2013, a dois meses de comemorar oito anos no cargo.

Ratzinger tornou-se no primeiro alemão a chefiar a Igreja Católica em muitos séculos e um representante da linha mais dogmática, ultraconservadora, da Igreja, não obstante o seu pendor intelectual e de formação rigorosa na teologia. Foi o braço direito de João Paulo II por um quarto de século antes de sucedê-lo.

Como a nossa Alexandra Antunes descreveu no perfil que dedicou a Bento XVI, o Santo Padre ficou conhecido por ser o Papa dos “nãos”. 

“Desde 1981, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé — a herdeira da Inquisição —, e até ao fim dos seus dias, as proibições que fez questão de apontar foram várias: não à ordenação das mulheres, não ao casamento dos padres, não à homossexualidade, não ao comunismo, não à Turquia na União Europeia. As suas tomadas de posição mostravam-se cortantes e muitas vezes ameaçaram provocar crises políticas, mas o cardeal Ratzinger também atacou fenómenos mais leves como a música rock, ‘expressão de paixões elementares’”.

A sua conduta foi longe de ser consensual — os abusos sexuais a menores por padres e o “Vatileaks”, caso em que se revelaram documentos confidenciais do Papa, foram casos que agitaram o seu pontificado. No início de 2022, foi atingido por acusações de que teria encoberto quatro casos de pedofilia quando era arcebispo de Munique, entre 1977 e 1981. Perante a pressão dos que o acusavam de negligência na gestão desses casos de pedofilia, quebrou o seu silêncio para pedir "perdão" e manifestar a sua "profunda" vergonha.

No entanto, a mensagem que hoje se quis passar foi de conciliação com o seu pontificado, a começar pelo próprio Papa Francisco, que o homenageou este sábado. "Por falar em gentileza, neste momento, o pensamento vai espontaneamente para o amado Papa emérito Bento XVI, que esta manhã nos deixou. Com emoção, lembramo-nos da sua personalidade tão nobre, tão gentil", disse Francisco durante as orações de Ano Novo na Basílica de São Pedro, evento depois do qual agradeceu ao Pontífice emérito "por todo bem que fez".

Da parte das figuras da Igreja Católica em Portugal, por exemplo, D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa, disse que "Bento XVI deixa um grande legado”. “Acentuo três pontos: a abertura intelectual a todas as questões que o tempo trouxe e a capacidade de as equacionar e esclarecer em chave cristã; a coragem com que enfrentou a necessidade de purificação interna da Igreja e a determinação com que apresentou a sua resignação quando as forças lhe faltaram; a prevalência que sempre deu a Cristo e a caridade, como alma da Igreja", disse ao SAPO24.

Já da parte do setor civil, Marcelo Rebelo de Sousa disse que “ao longo dos seus oito anos de Pontificado, o Papa Bento XVI permaneceu um símbolo de estabilidade e de defesa dos valores da Igreja Católica: o Amor ao próximo, a Solidariedade e o apoio aos mais pobres e aos mais desprotegidos e a importância do Perdão e da Reconciliação".

"Enquanto português", o presidente da República "recordou a Visita Apostólica de Sua Santidade o Papa Bento XVI a Portugal, em maio de 2010, por ocasião do 10.º aniversário da beatificação dos Pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta Marto, não esquecendo as palavras de apreço então expressas relativamente ao nosso país".

Já António Costa quis exprimir “votos de pesar a toda a comunidade católica pelo falecimento do Papa emérito Bento XVI”. “Recordo a honra de o ter acolhido em Lisboa, quando era presidente da Câmara, e a bela celebração a que presidiu no renovado Terreiro do Paço", escreveu no Twitter.

Esta é provavelmente a última grande morte de 2022, mas o seu lastro estende-se para 2023. O funeral acontece a 5 de janeiro — e será Francisco a presidir ao funeral. Será a primeira vez na história milenar da Igreja Católica que um Papa em exercício enterrará outro Papa — tal como foi inédita a coexistência de dois Papas em vida, olhando para os últimos 600 anos. 

Dezenas de milhares de pessoas são esperadas, incluindo chefes de estado e líderes de outras religiões, no funeral do 265.º Papa da história. O corpo de Bento XVI estará exposto a partir de segunda-feira, dia 2, na Basílica de São Pedro para receber o último adeus dos fiéis.