João Paulo II tinha morrido a 2 de abril de 2005 e, entre 17 e 22 do mesmo mês, era necessário encontrar o seu sucessor. O Conclave começou, fecharam-se as portas. Fumo preto por três vezes, à quarta votação o aguardado fumo branco subiu pela chaminé. O calendário marcava o dia 19 de abril.

Annuntio vobis gaudium magnum: Habemus Papam!
Eminentissimum ac reverendissimum Dominum, Dominum Iosephum Sanctæ Romanæ Ecclesiæ Cardinalem Ratzinger,
qui sibi nomen imposuit Benedicti Decimi Sexti

Pouco tempo depois, as palavras esperadas foram ouvidas na Praça de São Pedro. O primeiro dos cardeais diáconos, o chileno Jorge Arturo Medina Estevez, saudou os fiéis presentes, em várias línguas, e proclamou a "grande alegria" de a Igreja ter encontrado um novo líder: Joseph Ratzinger, que passaria a adotar o nome Bento XVI, sendo o 265.º pontífice da História.

Na prática, a escolha do nome é uma tradição pontifical que data de 533, quando João II optou por esse nome em vez do seu, Mercúrio, por entender que seria polémico guiar a Igreja Católica com o nome de um deus romano. Na sua eleição, Ratzinger acaba por quebrar uma tradição, uma vez que normalmente cabe ao reitor do Colégio dos Cardeais — cargo que ocupava — perguntar ao Papa eleito, ainda no Conclave, se aceita a função e que nome escolhe. No caso da sua eleição, tendo a pergunta de ser feita, foi outro dos cardeais a ter essa responsabilidade.

Minutos depois de o seu nome ter sido divulgado, o Papa recém-eleito falou à multidão, na habitual varanda. A partir daqui começou a existir Bento XVI, mas quem era Ratzinger? Recuemos então no tempo.

Ratzinger, da II Guerra Mundial à Igreja

Joseph Aloisius Ratzinger nasceu em Marktl am Inn, na Baviera, na diocese de Passau, numa família tradicional de camponeses. Os seus pais — Joseph Ratzinger e Maria Peitner — conheceram-se através de um anúncio que o seu progenitor colocou em 1920 no jornal católico "Altoettinger Liebfrauenbote" ["Correio da Nossa Senhora de Altotting"].

O facto, que veio a público na altura da sua eleição enquanto Papa, foi revelado pelo jornal Bild am Sonntag, que se interrogava se a Alemanha teria em 2005 um Papa se não fosse a casualidade de Maria ter respondido ao que foi, na realidade, a segunda tentativa de Ratzinger (o pai)  encontrar cônjuge por aquele meio.

"Modesto funcionário do Estado, solteiro, católico, de 43 anos, com direito a reforma, pretende celebrar casamento com uma rapariga católica, que saiba cozinhar e se possível costurar, com património", dizia o anúncio do pretendente, publicado a 7 de março de 1920.

O pai de Raztinger, então polícia, aparentemente não teve sorte à primeira tentativa e quatro meses depois voltou a tentar, especificando dessa vez que era um "funcionário médio", tendo respondido Maria Peintner, cozinheira, indicou o jornal. O casamento ocorreu em 1920 e tiveram três filhos: Maria, nascida em 1921 e falecida em 1991, Georg, nascido em 1924 e falecido em 2020, e Joseph, que nasceu a 16 de abril de 1927.

Joseph Ratzinger passou a sua infância e adolescência em Traunstein, uma pequena localidade perto da fronteira com a Áustria. "A fé e a educação da sua família prepararam-no para enfrentar a dura experiência daqueles tempos, em que o regime nazi mantinha um clima de grande hostilidade contra a Igreja Católica", lê-se na biografia oficial disponibilizada no site do Vaticano, que acrescenta que "o jovem Joseph viu os nazis açoitarem o pároco antes da celebração da Santa Missa".

Nos últimos meses da II Guerra Mundial, trabalhou nos serviços auxiliares anti-aéreos. Mas não seria a carreira militar a pesar na sua vida. Entre 1946 e 1951 estudou filosofia e teologia na universidade de Munique e em 1951 foi ordenado sacerdote. Passado um ano, iniciou a sua atividade de professor na Escola Superior de Freising. Já em 1953, assumiu em diferentes cidades alemãs as respetivas cátedras de teologia, centrando o seu ensino no dogma e na teologia fundamental.

Em 1969, passou a ser catedrático de dogmática e história do dogma na Universidade de Ratisbona, onde ocupou o cargo de Vice-Reitor. A sua intensa actividade científica levou-o a desempenhar importantes cargos ao serviço da Conferência Episcopal Alemã e na Comissão Teológica Internacional.

Em março de 1977, o Papa Paulo VI nomeou-o Arcebispo de München e Freising e, no ano seguinte, recebeu a sagração episcopal. O título de Cardeal foi-lhe atribuído por Paulo VI. A partir daí tinha a possibilidade de ser Papa, tendo participado nos conclaves que elegeram João Paulo I e João Paulo II. Este último nomeou-o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional, em 1981.

Quase duas décadas antes de ser Papa, Ratzinger presidiu à Comissão responsável por preparar o Catecismo da Igreja Católica. Depois de seis anos de trabalho (entre 1986 e 1992), Ratzinger apresentou o novo catecismo ao Santo Padre.

Já em 1998, o cardeal alemão torna-se também Vice-Decano do Colégio Cardinalício e, em 2002, é eleito Decano. Os cargos acumulavam-se, a sua posição na Igreja era fortalecida.

Ao longo dos anos foi publicando diversos livros. Entre as suas numerosas publicações, ocupam lugar de destaque "Introdução ao Cristianismo" (1968), uma compilação de lições universitárias sobre a profissão de fé apostólica, e o livro "Dogma e Revelação" (1973), uma antologia de ensaios, homilias e meditações, dedicadas à pastoral.

Em 2012, Ratzinger publicou um novo livro: "A Infância de Jesus", onde garante que a virgindade da mãe de Jesus Cristo é uma verdade "inequívoca" da fé e revela que, afinal, não havia burro nem vaca no presépio de Belém — apenas utilizamos as figuras por associação ao local, não existem provas de que lá estivessem além do que consta nos evangelhos apócrifos —, o que desencadeou as mais variadas discussões sobre o tema.

Recebeu ainda numerosos doutoramentos «honoris causa»: pelo College of St. Thomas em St. Paul (Minnesota, Estados Unidos), em 1984; pela Universidade Católica de Eichstätt, em 1987; pela Universidade Católica de Lima, em 1986; pela Universidade Católica de Lublin, em 1988; pela Universidade de Navarra (Pamplona, Espanha), em 1998; pela Livre Universidade Maria Santíssima Assunta (LUMSA, Roma), em 1999; pela Faculdade de Teologia da Universidade de Wroclaw (Polónia) no ano 2000.

O homem dos "nãos" — e as críticas que se fizeram ouvir

Desde 1981, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé — a herdeira da Inquisição —, e até ao fim dos seus dias, as proibições que fez questão de apontar foram várias: não à ordenação das mulheres, não ao casamento dos padres, não à homossexualidade, não ao comunismo, não à Turquia na União Europeia. As suas tomadas de posição mostravam-se cortantes e muitas vezes ameaçaram provocar crises políticas, mas o cardeal Ratzinger também atacou fenómenos mais leves como a música rock, "expressão de paixões elementares".

Face a uma Igreja em crise, preconizou a aproximação a alguns movimentos católicos mais radicais, e até mesmo fundamentalistas. "Quanto mais uma religião assimila do mundo, mais se torna supérflua", afirmou em outubro de 2004, numa entrevista ao semanário italiano Panorama.

"Em contrapartida, os novos movimentos cristãos, como os evangelistas, os carismáticos ou as igrejas livres na Alemanha estão em franco desenvolvimento porque defendem com toda a força os grandes valores morais contra a evolução das mentalidades", sublinhou.

“Estes grupos eram considerados até há pouco, pela Igreja, como fundamentalistas e eram até há pouco adversários ferozes da Igreja Católica, mas começam a aproximar-se, porque compreenderam que apenas a Igreja defende os valores morais e nós aceitamos com alegria essa aproximação”, concluiu na altura.

Com ideias que frequentemente chocavam com as correntes liberais do seu país de origem, o nome Ratzinger surgiu em todas as polémicas no seio da Igreja Católica para travar as tentativas de reforma dos seus correligionários mais progressistas. Na Alemanha, por exemplo, o seu nome aparece ligado ao "braço de ferro" que manteve com o cardeal Karl Lehmann, presidente da Conferência Episcopal alemã, em torno da questão do aborto.

Na Páscoa de 2005, ainda no pontificado de João Paulo II, Ratzinger redigiu os textos de meditação do calvário para a Semana Santa, apresentando uma verdadeira crítica contra "as nódoas", "o orgulho" e "a auto-suficiência" no seio da Igreja.

O tom não surpreendeu, vindo de alguém conhecido pelas suas represálias contra as derivações da Teologia da Libertação defendida por um dos seus alunos, o brasileiro Leonardo Boff, os pensadores dissidentes, como Hans Koung, e mais globalmente contra tudo o que representa a modernidade.

Neste sentido, quando foi eleito Papa, as reações não se fizeram tardar: Bento XVI seria um homem ultra-conservador que daria continuidade ao trabalho de João Paulo II.

D. Jorge Ortiga, que no ano da eleição era presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, acolheu a eleição de Joseph Ratzinger com "muita alegria", classificando-o como "um homem de Deus, de temperamento alemão, mas acessível e de muita proximidade com todos os homens".

Por seu turno, o bispo de Leiria-Fátima descreveu-o como alguém de "muito boa formação teológica e que respeita muito as religiões", enquanto Saturino Gomes, diretor do Instituto Superior de Direito Canónico, se referiu a Ratzinger como um teólogo sábio, conhecedor dos problemas da Igreja Católica, que iria "certamente dar continuidade à doutrina do seu antecessor", sublinhando ainda que o facto do conclave ter durado apenas dois dias significa que a escolha "terá sido consensual" e indicadora de "uma opção por um pontificado de transição, dada a idade avançada" de Ratzinger.

O na altura reitor do Colégio Pontifical Português, em Roma, padre Nuno Brás, deixou antever que, apesar das críticas de conservadorismo instantaneamente ligadas a Bento XVI, este poderia vir a surpreender, uma vez que era "soberbamente inteligente", sendo "capaz de imprimir o seu cunho pessoal no pontificado".

Manuel Braga da Cruz seguiu também esta interpretação: "Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, era obrigado, pelas funções que exercia, a preservar esse legado", sustentou.

Contudo, os mais críticos da Igreja Católica fizeram notar a sua opinião. O ex-sacerdote e teólogo brasileiro Leonardo Boff, defendeu, logo nas primeiras horas de pontificado, que o Papa deveria pensar "mais na Humanidade e menos na Igreja".

"Como cristão aceito e respeito a decisão, fruto da eleição dos cardeais. Mas será difícil amar este Papa, por causa da sua posição em relação à Igreja e ao mundo", disse Boff à agência de notícias brasileira Estado.

Boff foi um dos principais expoentes da Teologia da Libertação, tendência liberal que assumia a prática cristã com forte cariz social e que foi duramente combatida pelos principais responsáveis da Cúria Romana. O próprio Ratzinger, enquanto chefe da Congregação da Doutrina da Fé, foi responsável pela imposição do silêncio a Boff e a outros representantes latino-americanos da Teologia da Libertação durante o pontificado de João Paulo II.

No seu país natal, onde a notícia foi recebida com entusiasmo, as vozes críticas também se fizeram ouvir. O teólogo alemão Hans Kueng considerou que a eleição de Ratzinger foi uma "imensa decepção para inúmeras pessoas" — mas não deixou de dizer que era preciso "dar uma oportunidade" a Bento XVI.

De crentes a ateus, a subida à cadeira de São Pedro do teólogo alemão foi comentada. José Saramago, ateu assumido e escritor que provocou a ira da Igreja com as suas posições, nomeadamente após a publicação do romance "Evangelho segundo Jesus Cristo", considerou no dia da eleição de Bento XVI que "a inquisição subiu ao poder". Em declarações ao diário espanhol El Mundo, deixou expressa a sua opinião: "Deus me acuda com o novo Papa", ironizou.

Agir numa Igreja em crise (e viver com polémicas)

Logo o primeiro ano no trono de uma Igreja confrontada com múltiplas crises veio demonstrar que algumas opiniões estavam erradas — os que esperavam que o Papa conservador, saído da sombra de João Paulo II, sob a qual viveu durante 24 anos, se revelasse um reformador audacioso viram-se frustrados.

O antigo guardião do dogma dedicou-se, antes de mais, a fazer esquecer a "era mediática" do seu antecessor, visando impor um regresso aos "fundamentos" da Igreja Católica: bispos, sacerdotes e leigos, cada um no seu lugar, a "puxarem" na mesma direção para transmitir ao mundo desorientado a mensagem espiritual suscetível, segundo ele, de o salvar.

Mas Bento XVI comprometeu-se a prosseguir o diálogo encetado por João Paulo II com os outros cristãos, bem como com os judeus e muçulmanos.

Muito aguardada, a sua primeira encíclica, publicada a 25 de janeiro de 2006, e intitulada "Deus é amor", insistia na natureza essencialmente espiritual da Igreja e advertia contra o ativismo que atrai, segundo Ratzinger, demasiados católicos.

Persistia também a expetativa de que Bento XVI pudesse ser o Papa que iria fazer mexer a Igreja Católica em questões como o celibato dos padres ou a moral sexual. Contudo, Ratzinger não deu qualquer sinal de abertura nesse sentido. Pelo contrário, tentou uma reaproximação com os fundamentalistas católicos da Fraternidade Santo Pio X e admitiu uma autorização mais alargada da missa em latim.

Por outro lado, Bento XVI desenvolveu várias vezes uma visão pessimista da evolução dos costumes e exortou os católicos a oporem-se às "ameaças" contra a família e aos "atentados" contra a vida humana desde a conceção até à morte natural. Desta forma, posicionou-se contra a opinião de numerosos países ocidentais, que legalizaram as uniões homossexuais, autorizaram as investigações sobre o embrião e admitiram o direito à eutanásia para as pessoas em fim de vida.

Mas vejamos algumas críticas que teceu durante o pontificado:

  • O Papa Bento XVI condenou duramente o nazismo e o comunismo e instou ao não esquecimento dessas formas de "violência inaudita", para que não se repitam, recordando a Segunda Guerra Mundial como um "suicídio da humanidade". "A 8 de Maio de 1945, terminou aquela enorme tragédia que semeou na Europa e no mundo, em dimensões nunca experimentadas até então, destruição e morte. De cada vez que uma ideologia totalitária espezinha o homem, toda a humanidade está seriamente ameaçada", afirmou Bento XVI, em maio de 2005. De acordo com o Papa, com o passar dos anos, as recordações não devem apagar-se, "devem transformar-se numa severa lição para esta e para as futuras gerações".
  • O sumo pontífice recordou por diversas vezes que a tutela da família é um dos temas principais na orientação pastoral da Igreja, afirmando que por toda a parte "aumentaram os divórcios e as uniões irregulares", pelo que "isso constitui paraos cristãos a tarefa urgente de proclamar e testemunhar em toda a sua plenitude o evangelho da vida e da família", afirmou. Ratzinger também sublinhou que a família é chamada a ser "íntima comunidade de vida e amor, porque é fundada no casamento indissolúvel".
  • O Papa condenou "as formas modernas de dissolução do casamento como as uniões de facto e os ‘casamentos de ensaio‘ (experiências pré-matrimoniais), assim como "o pseudo-casamento entre pessoas do mesmo sexo". Bento XVI condenou, igualmente, como "contrário ao amor humano, à vocação profunda do homem e da mulher", o facto de "uma união se fechar de forma sistemática ao dom da vida, e ainda mais de suprimir ou manipular a vida que nasce".
  • Durante o seu pontificado, foi aprovado um documento (a 31 de agosto de 2005)  que impede os homossexuais de ingressarem nos seminários e de acederem ao sacerdócio.
  • O Papa Bento XVI alertou que a "contaminação comercial" do Natal pode alterar o verdadeiro espírito da época, que deve ser marcada pela sobriedade e recolhimento. "Na actual sociedade de consumo, este período é marcado por uma espécie de contaminação comercial, podendo alterar o verdadeiro espírito natalício, que deve ser caracterizado pelo recolhimento, sobriedade e por uma glória íntima", afirmou.
  • Ratzinger rejeitou a ideia de uma contradição entre ciência e fé, num encontro com membros da Congregação para a Doutrina da Fé, em 2006, explicando que "a Igreja acolhe com alegria as verdadeiras conquistas do conhecimento humano e reconhece que a evangelização exige que se esteja a par dos horizontes e dos reptos que o saber moderno descobre". Além disso, frisou que "os grandes progressos do saber científico a que assistimos no século passado ajudaram a compreender melhor o mistério da criação".

Por outro lado, o pontificado também se fez de polémicas: 

  • Em maio de 2006, a imprensa europeia destacou as declarações polémicas do Papa Bento XVI na visita ao campo de Auschwitz, considerando que o chefe da Igreja Católica tentou isentar os alemães de responsabilidades no Holocausto. "Bento XVI isentou o povo alemão de responsabilidades nos crimes nazis", escreveu a título de exemplo o diário El Mundo.
  • As declarações do Papa Bento XVI sobre o Islão, em setembro de 2006, motivaram reações de indignação um pouco por todo o mundo islâmico, acumulando-se as exigências de pedidos de desculpas, retractações ou clarificações ao chefe da Igreja Católica. De visita à Alemanha, Bento XVI estabeleceu implicitamente uma ligação entre o Islão e a violência, nomeadamente no que respeita à jihad, a guerra santa islâmica.
  • Em 2009, Bento XVI, numa viagem a África, a caminho dos Camarões, afirmou que a SIDA não se combate só com dinheiro, "nem com a distribuição de preservativos que, ao contrário, aumentam o problema". As declarações foram criticadas por todo o mundo, uma vez que há "mais de 7.400 novas infecções por VIH a cada dia" no continente africano.
  • Em 2010, os escândalos que davam conta de padres pedófilos mancharam a imagem de Bento XVI, que foi acusado por associações de vítimas de ter encoberto alguns desses casos, acusações desmentidas categoricamente pela Igreja. O Vaticano denunciou uma campanha para atacar o Papa a qualquer custo e enfatizou que Joseph Ratzinger foi quem mais fez na luta contra a pedofilia na Igreja. Já em 2022, um relatório dava conta de que Bento XVI sabia de episódios em que padres abusaram de crianças quando foi arcebispo de Munique, entre 1977 e 1981. O então Papa emérito pediu "perdão" às vítimas, mas garantiu que jamais encobriu padres.
  • O caso VatiLeaks, em 2012, veio também marcar o pontificado. O antigo mordomo do Papa, Paolo Gabriele, de 46 anos, e o informático do Vaticano, Claudio Sciarpelletti, de 48 anos, foram julgados pelo roubo e difusão de centenas de documentos secretos de Bento XVI. O mordomo furtou ao secretário particular do Papa, monsenhor Georg Ganswein, um elevado número de cartas e correios ultrassecretos, incluindo alguns dirigidos a Joseph Ratzinger, e fotocopiou-os para os transmitir para o exterior.

Ratzinger e a terceira parte do segredo de Fátima

É também impossível falar de Bento XVI sem referir a sua relação com Portugal, nomeadamente com Fátima: Ratzinger tinha uma "forte relação" com a interpretação da terceira parte do Segredo de Fátima, relacionando-a com o atentado a João Paulo II de 1982.

O então cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, presidiu à peregrinação de outubro de 1996, onde terão participado à volta de 250.000 peregrinos. Nessa cerimónia foi usada a imagem da Virgem Peregrina de Fátima, que regressava de uma viagem de um ano à Polónia, tendo sido entregue no dia 13 ao Arcebispo Administrador da Rússia Europeia, D.Kondrusiewicz, para uma viagem à Rússia e ao Cazaquistão.

Na homilia principal, o cardeal Ratzinger considerou os santuários de Lourdes e de Fátima como "dois grandes sinais" da devoção mariana, que unem a Igreja na Europa. Nessa ocasião, comentou a terceira parte do segredo, considerando que o seu "verdadeiro conteúdo quer da Revelação, quer do segredo, é sempre o mesmo, isto é, o convite à conversão dos corações, à fé, à comunhão com Cristo".

A terceira parte do Segredo viria a ser revelada em 2000 e dizia respeito a uma visão da Irmã Lúcia envolvendo um "bispo de branco" que "caía como morto" atingido por "tiros e setas" de soldados. No comentário teológico a esta visão, o teólogo alemão considerou que esta imagem retrata o "século XX como século dos mártires, como século dos sofrimentos e perseguições à Igreja, como o século das Guerras Mundiais".

Nesta sua interpretação, relatada no livro Memórias da Irmã Lúcia, Ratzinger ironizou mesmo com as expetativas que existiam sobre a terceira parte do segredo de Fátima. "Quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido. Fátima não oferece tais satisfações à nossa curiosidade", considerou na altura.

Já enquanto Bento XVI, Joseph Ratzinger passou por Lisboa, Fátima e Porto em 2010, naquela que foi a primeira e única visita enquanto Papa a Portugal. O Papa celebrou uma missa na Praça do Comércio, em Lisboa, que juntou cerca de 500 mil pessoas, antes de rumar a Fátima.

O helicóptero branco que levou o Papa embora

O tempo foi passando, muitas histórias foram sendo escritas. O Papa é Papa até à morte e, apesar da idade, Bento XVI dava sinais de ter ainda um pontificado longo por viver. Por isso, ninguém esperava a notícia. A 11 de fevereiro de 2013, o mundo ficou atónito quando o Papa Bento XVI anunciou, durante um consistório no Vaticano, que ia resignar. O pontificado de Ratzinger não foi fácil: ficou marcado por uma diminuição das vocações, escândalos de pedofilia e pela fuga de documentos confidenciais — mas foi devido "à idade avançada" que se justificou a decisão.

Contudo, algumas pessoas já o sabiam antes. O Papa alemão tomou, em agosto de 2012, a decisão de renunciar ao cargo, tendo-o anunciado ao secretário particular em dezembro do mesmo ano.

O antigo secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Angelo Sodano, classificou a renúncia como um "trovão em céu sereno" — e a meteorologia fez questão de deixar a expressão bem marcada no dia: ao início da noite, um raio caiu sobre a cúpula da Basílica de São Pedro. As imagens foram registadas por Alessandro Di Meo, da agência noticiosa italiana Ansa.

Ao suplemento semanal do diário Suddeustsche Zeitung, da Baviera, o arcebispo Georg Ganswein disse que Bento XVI resignou mais cedo do que pretendia, depois de a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, inicialmente prevista para o verão de 2014, ter sido antecipada para o verão do ano anterior, para não coincidir com o Mundial de futebol. E Bento XVI queria garantir que o sucessor assistia à JMJ, o que acabou de facto por acontecer.

O arcebispo não foi exceção e ficou surpreendido com a decisão tomada pelo então Papa. "A minha reação espontânea foi dizer 'Não, Santo Padre, não tem esse direito'. Mas foi uma reação emotiva e rapidamente percebi que ele não me estava a dizer aquilo para tomar uma decisão, mas porque a sua decisão já estava tomada", explicou na altura Ganswein.

Além do secretário, apenas outras três pessoas sabiam da decisão. Por isso, quando o Papa Bento XVI anunciou a renúncia ao clero — em latim —, os cardeais presentes levaram algum tempo a perceber o que se estava a passar. "Alguns rostos estavam petrificados, outros incrédulos, desamparados, chocados. Eles olhavam uns para os outros, perguntando-se 'percebi bem?'".

O exemplo de João Paulo II, que concluiu o pontificado doente e a sofrer, foi determinante na decisão de Bento XVI. "Continuar como o seu antecessor terminou, ou mesmo imitá-lo, não era uma opção" para Bento XVI, sublinhou Ganswein.

A surpresa é facilmente justificável: o último chefe da Igreja Católica a renunciar foi Gregório XII, no século XV (1406-1415), o que criou um espaço de cerca de 600 anos até que voltasse a acontecer.

A 28 de fevereiro o momento foi oficializado. Antes de se dirigir aos fiéis, Bento XVI esteve presente numa cerimónia de adeus aos cardeais na sala Clementina, no Vaticano. Chegando ao local com pequenos passos, visivelmente cansado, prometeu "obediência incondicional" ao sucessor.

"Entre vós encontra-se o próximo Papa, ao qual prometo deferência e obediência incondicionais", declarou, numa breve intervenção algumas horas antes da resignação histórica, acrescentando que estaria próximo dos cardeais "em oração" durante o próximo Conclave, que acabaria por eleger Jorge Mario Bergoglio como o seu sucessor, enquanto Papa Francisco.

Joseph Ratzinger voltou a mencionar os "momentos muito felizes" e os "momentos em que houve algumas nuvens no céu", durante os oito anos de pontificado, numa alusão aos vários escândalos.

No final, os cardeais dirigiram-se ao Papa, para o cumprimentar e despedir-se. Muitos choravam ou estavam muito emocionados, ao beijar o anel papal, ao apertar as mãos e na troca de algumas palavras. Afinal, ninguém esperava testemunhar um momento daqueles.

Apesar da emoção, o dia tinha de continuar. Às 16h07, um helicóptero branco levou o Papa embora, transportando-o até ao palácio episcopal de Castel Gandolfo, a cerca de 25 quilómetros de Roma.

O helicóptero, da República Italiana, mas ostentando uma bandeira do Vaticano, descolou de um heliporto localizado na cobertura de um edifício do pequeno Estado. Ao mesmo tempo, os sinos de Roma e da Basílica de São Pedro tocaram a repique. Ao contrário do habitual, a despedida do Papa não se fazia ainda pela morte, mas por uma decisão pensada.

Contudo, não se ouviu mais Bento XVI na Praça de São Pedro. O último ato público aconteceu já numa outra varanda, em Castel Gandolfo, a residência de verão dos papas.

"Deixarei de ser o sumo pontífice da Igreja Católica às oito da noite. Serei um simples peregrino, que inicia a última etapa da sua peregrinação nesta terra", disse então o teólogo alemão.

"Estou feliz por estar rodeado pela beleza da Criação. Obrigado pela vossa amizade e afeto", disse, sorrindo para a multidão.

Ao final da tarde, tudo estava consumado. Bento XVI não ocupava mais a cadeira de São Pedro e vivia-se um período de "Sede vacante", que vigora entre a morte/renúncia e a eleição do novo Papa. Dali para a frente, uma vida recatada e quase sempre de clausura.

Ao fim de dois meses em Castel Gandolfo, Joseph Ratzinger passou a ter o título de "Sua Santidade Bento XVI, Papa emérito" e regressou ao Vaticano, mas ao silêncio de um mosteiro.

A vela que “serenamente se apaga” e as dúvidas sobre um total retiro da vida da Santa Sé

Muito se especulou sobre como seria a vida de Bento XVI depois da resignação. Um ano depois, em fevereiro de 2014, o então porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, referiu que o Papa emérito não vivia "isolado".

A coabitação inédita de um Papa em exercício e um Papa emérito levou alguns observadores a prever uma tensão surda e um peso adicional para Francisco, mas os dois homens encontraram um bom modo de convivência — e Bento XVI tinha prometido manter-se afastado dos assuntos do sucessor, eleito a 13 de março de 2013.

Lombardi destacou, logo no primeiro ano, "a solidariedade espiritual entre os dois papas (...), pois ambos procuram o bem para o povo de Deus".

Assim, Joseph Ratzinger, na altura com 86 anos, vivia "de modo discreto, sem dimensão pública", garantiu à Rádio Vaticano o padre jesuíta, fiel porta-voz do Papa alemão durante os oito anos de pontificado.

Mas o que fazia Bento XVI na residência 'Mater Ecclesiae', no mosteiro no Vaticano? Tudo aquilo que sempre fez, mas sem a responsabilidade de ser o Santo Padre em funções: levou uma vida feita "de oração, reflexão, leitura, escrita", respondia "à correspondência recebida", encontrava-se "com pessoas próximas, com as quais [era] útil dialogar" e que lhe pediam "conselhos ou proximidade espiritual", explicou Lombardi, fazendo perceber que o teólogo alemão não vivia enclausurado como um monge.

Na nova casa, a vida foi austera por sua opção. Bento XVI levantava-se se às 05h30 (hora local), oficiava missa e dedicava a manhã à leitura. Além disso, gostava de ouvir e tocar no piano, dando primazia aos clássicos preferidos como Bach, Beethoven ou Mozart.

Após o almoço, era habitual fazer uma pequena sesta, seguindo-se um passeio com o secretário pelos jardins do convento. Depois das orações da tarde, regressava à biblioteca para continuar os estudos teológicos. E, para não se desligar do mundo, não perdia o telejornal da noite.

Federico Lombardi, que Francisco decidiu manter nas mesmas funções de porta-voz até 2016, sublinhou ainda que "para a Igreja, Bento XVI é o grande ancião, o sábio, digamos mesmo, o santo", salientando que o Papa emérito dava "uma verdadeira impressão de grande serenidade espiritual": um homem que manteve "o sorriso habitual" — embora muitos o considerassem um Papa mais carrancudo —, que convidava "a avançar, com confiança e esperança".

Por outro lado, muito se especulou sobre os motivos da resignação e se Bento XVI se retiraria completamente da vida da Santa Sé. O falatório levou a que Ratzinger quebrasse o silêncio, através de uma carta publicada a 26 de fevereiro de 2014, no diário italiano La Stampa, depois de os media terem comentado o seu aparecimento na basílica de São Pedro, uns dias antes, durante o consistório de Francisco, uma reunião que visava a criação de 19 novos cardeais. Foi a primeira vez que dois papas, um em exercício e outro emérito, se encontraram na mesma cerimónia.

Nesse momento, o Papa emérito foi aplaudido pelos 150 homens reunidos no local — e o episódio fica para a história. Sentado discretamente na primeira fila, a um canto, numa cadeira simples, por entre os cardeais, Bento XVI foi cumprimentado calorosamente, no início e no fim, por Francisco. Em sinal de deferência e de total submissão ao novo Papa, Bento XVI retirou o solidéu, o pequeno barrete branco que os papas usam na cabeça.

"Não existe a menor dúvida quanto à validade da minha renúncia ao ministério petrino [função papal]. A única condição de validade é a plena liberdade de decisão. As especulações sobre a invalidade da renúncia são simplesmente absurdas", escreveu na altura o Papa emérito, em reposta a questões colocadas pelo La Stampa, depois do sucedido.

Bento XVI explicou também na ocasião porque continuou a usar o hábito branco, associado aos papas, e o nome que escolheu aquando da eleição. "A manutenção do hábito branco e do nome Bento acontece por ser prático. No momento da renúncia, não havia outros hábitos disponíveis. De qualquer forma, eu uso o hábito branco de uma forma absolutamente distinta do Papa. Aqui também falamos de especulações sem o menor fundamento", sublinhou.

Numa primeira análise, apenas os olhos mais atentos perceberiam as diferenças entre as vestes dos dois homens: Bento XVI parecia apenas não usar o amito, espécie de capa curta que é colocada aos ombros do pontífice. Por outro lado, passaram a ter uma semelhança: Ratzinger largou os característicos sapatos vermelhos papais e passou a usar sapatos comuns, tal como Francisco, que manteve a sua simplicidade depois da eleição.

Para esclarecer quaisquer dúvidas sobre a influência no novo papado, Joseph Ratzinger afirmou convictamente que o seu "único e último dever" seria "apoiar o pontificado através da oração".

Todavia, isto não implicaria afastar-se de Francisco, até pelo contrário. Os dois papas encontraram-se por diversas vezes ao longo dos anos e as conversas por telefone também seriam frequentes — e o Vaticano nunca o escondeu.  Assim, a Igreja informou que o primeiro telefonema de Francisco, depois de ser eleito, foi para o antecessor. Tal como também transmitiu, com todos os pormenores, o primeiro encontro histórico entre os dois papas, a 23 de março de 2013, em Castel Gandolfo.

"Ele [Bento XVI] agora vive no Vaticano e alguns perguntam-me como pode acontecer isto, dois papas no Vaticano. Não te incomoda? Não trabalha contra ti?", contou Francisco aos jornalistas, no voo de regresso do Brasil, onde decorreu nesse ano a Jornada Mundial da Juventude.

E o Papa não teve problemas em arranjar uma resposta que seria facilmente perceptível. "Encontrei uma frase para isto: é como ter o avô em casa, mas um avô sábio, numa família em que o avô está em casa, é venerado, amado, ouvido", disse Francisco.

Ao longo dos anos, Bento XVI mostrou saber cumprir o que havia dito. O seu secretário pessoal, Georg Ganswein, lembrava, em 2016, que o Papa emérito era um "homem velho mas muito lúcido", sendo "como uma vela lenta que serenamente se apaga, como sucede a muitos".

Caminhar começou a ser muito cansativo, pelo que precisava de apoio. Mas, apesar de tudo, esteve sempre "sereno, em paz com Deus, consigo e com o mundo".

Nunca perdeu os seus interesses e continuava "com o seu humor fino e subtil". Continuava com a sua correspondência, mas já não escrevia livros. Limitava-se a ditar cartas. Afinal, as palavras que sempre fizeram parte da sua vida iriam continuar lá até ao fim.

Em junho de 2020, Bento XVI visitou o irmão em Ratisbona — que acabou por falecer a 1 de julho —, entre os dias 18 a 22, depois de voar do Vaticano para Munique acompanhado do seu secretário pessoal, de um médico, uma enfermeira, uma outra pessoa também cuidadora e o vice-comandante do Corpo da Guarda do Estado da Cidade do Vaticano. As fotografias falavam por si: a idade fazia-se notar.

Já no início de agosto, o biógrafo Peter Seewald referiu que o Papa emérito, na altura com 93 anos, estava num estado extremamente delicado, embora se mostrasse otimista, apesar da doença. Seewald explicou que Bento XVI ainda raciocinava e mantinha a memória, embora a voz fosse praticamente impercetível.

A 28 de dezembro de 2022, o Vaticano confirmou que o estado de saúde do Papa emérito, agora com 95 anos, se tinha agravado "devido ao avançar da idade", após o Papa Francisco ter pedido orações pelo antecessor, na sua audiência geral.

O tempo passou por Bento XVI e o fim estaria anunciado, pela ordem natural da vida. Mas a morte, essa, prepara-se enquanto ainda se está neste mundo: Ratzinger expressou o desejo de descansar no antigo túmulo do seu antecessor, o Papa João Paulo II, na cripta de São Pedro.

A notícia da sua morte ainda agora chegou e esses pormenores para já não são conhecidos, mas uma coisa é certa: Bento XVI, o teólogo e Papa alemão, marcou a História da Igreja, que por vários anos teve dois pontífices vivos, ao fim de meia dúzia de séculos. O que virá a seguir na história dos Papas?

*Com agências

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