“Do ponto de vista das reivindicações temáticas, das reivindicações substantivas [do movimento estudantil de 1969] muita coisa mudou”, mas o programa dessa luta “está muito longe de estar cumprido”, sustenta, em entrevista à agência Lusa, Celso Cruzeiro, 73 anos, advogado em Aveiro e, então, dirigente da Associação Académica de Coimbra (AAC) e um dos principais protagonistas do movimento conhecido por Crise Académica de 69.
Embora “à primeira vista” pudesse não ser encarado assim, esse programa “era radical na solução material das instituições e do seu modo de funcionamento e do seu conteúdo”.
Os estudantes, sublinha Celso Cruzeiro, lutavam por “uma universidade nova”, que não podia ser “suportada por um regime ditatorial fascista”, nem por “uma universidade tecnocrática”, modelo preconizado por Veiga Simão (sucessor, em 1970, de José Hermano Saraiva à frente do ministério da Educação).
Essa “universidade humanista”, espaço de “fusão de saberes” e “polo central do desenvolvimento não só económico, mas cultural e humanista do país, do povo”, essa “luta milenar da sociedade pela justiça, pela igualdade entre os homens, pelos valores da fraternidade”, mantém-se e o combate de Coimbra em 1969 faz parte deste “longo percurso, que está longe de chegar à meta”.
Cinco dias depois da inauguração do Edifício das Matemáticas – o episódio mais emblemático da Crise Académica –, os estudantes rejeitaram a suspensão dos alunos identificados pelo regime como os principais responsáveis pelo movimento e pelos incidentes de 17 de abril de 1969 e exigiram o levantamento dos processos disciplinares instaurados e as reformas da Universidade constantes do programa da direção da AAC.
Os estudantes exigiam, recorda Celso Cruzeiro, “reformas consequentes, radicais no sistema de funcionamento da Universidade, quer ao nível do modo como o ensino era ministrado, quer mesmo em relação ao conteúdo desse ensino”.
Decidiram ainda que as aulas na Universidade de Coimbra (UC) passassem a debater a suspensão dos estudantes e a crise ou as reivindicadas reformas do ensino, ficando ao critério dos docentes a escolha de um destes temas.
“Alguns (poucos) professores optaram por discutir connosco a reforma do ensino e a Crise Académica”, mas a maior parte não deu aulas, enquanto alguns outros tentaram resistir, mas as votações democráticas dos respetivos alunos determinaram que não haveria aulas (e não houve).
“O Governo entendeu que era preciso fazer uma grande sangria” na UC e “retirar dela rapidamente os fautores, aqueles que apareciam como dirigentes mais responsáveis”, e impôs a incorporação de 49 estudantes no Exército (criando um regime de exceção na legislação que permitia aos alunos com bom aproveitamento protelarem a sua incorporação obrigatória nas Forças Armadas).
Mas essa incorporação forçada teve consequências: “Por vezes, nos quartéis, graduados, embora não concordassem com tudo o que defendíamos, ouviam-nos com grande atenção, pois, no fundo, neles também recaíam as nossas preocupações, as nossas teses de solução”. E, embora não as adotassem, também “não as rejeitavam automaticamente”.
Esses dirigentes estudantis acabaram por “penetrar um pouco nesse tecido da instituição militar com facilidade e com algum acolhimento”.
A Crise Académica de 69 foi “uma experiência única, que marca indelevelmente” as vidas de quem a viveu, porque “teve um cunho de luta contra o regime político, mas também de cunho pela mudança de vida e do sentido da vida. Uma mudança de substituição civilizacional, de substituição de valores, no fundo, uma luta que foi simultaneamente contra o regime e contra o sistema em que esse regime” se ancorava e subsistia, sintetiza Celso Cruzeiro.
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