Mais do que a qualidade dos filmes ou o conteúdo dos discursos, a 94ª edição dos Óscares foi marcada pela estalada do ator Will Smith ao comediante Chris Rock. O momento aconteceu quando Rock, encarregue de entregar o Óscar de Melhor Documentário, aproveitou o seu monólogo para fazer uma piada sobre Smith e a sua mulher, Jada Pinkett Smith.

Aludindo à alopecia de que padece Jada — condição que causa queda de cabelo —, o humorista disse que mal poderia esperar vê-la na sequela de “G.I. Jane”, filme de 1997 no qual a protagonista, interpretada por Demi Moore, rapa o cabelo para entrar no exército. A resposta de Smith, primeiro num sorriso tenso, não se fez esperar, levantando-se e desferindo uma bofetada a Rock e voltando-lhe costas, voltando a sentar-se de seguida.

Se nos minutos seguintes gerou-se a dúvida sobre se o que tinha acontecido fora combinado e fazia parte do número de comédia de Rock, as tiradas de Smith coloridas por palavrões — “tira o nome da minha mulher da m***a da tua boca” — dissiparam-na.

“Deixem que vos diga uma coisa, é muito má prática subir ao palco e atacar fisicamente um comediante. Agora teremos de nos preocupar quanto a quem queira ser o próximo Will Smith em clubes de comédia e teatros”, escreveu a humorista norte-americana Kathy Griffin, no Twitter.

Ao alarme gerado por Griffin somam-se outras reações preocupadas, como as dos realizadores Rob Reiner e Judd Apatow, sendo que o segundo, num tweet entretanto apagado, chegou mesmo a afirmar que a agressão foi fruto de “raiva e violência fora de controlo” e que, por sorte, Chris Rock não morreu. Já o cantor Richard Marx deixou o seguinte aviso: “Hey, comediantes profissionais: tenham atenção! De agora em diante, tem de se certificar que as vossas piadas não ofendem pessoas. Especialmente pessoas extremamente atraentes, famosas e exorbitantemente ricas!”

Mas será que os humoristas vão passar a ter de ter mais cuidado? Para Manuel Cardoso, que leu o tweet de Griffin, o exemplo de Smith não tem de criar um contexto generalizado de insegurança. 

“Julgo que [este episódio] não vai resultar numa corrida aos comedy clubs para baterem em comediantes”, diz ao SAPO24. "Não é a primeira vez que um comediante é agredido, e também não é uma coisa assim tão comum, tanto quanto sei”, adianta, lembrando-se do episódio em que o humorista australiano Jim Jeffries foi agredido em palco, em Manchester, em 2007.

Se, por um lado, não é preciso incorrer em alarmismos, por outro, há matéria para refletir. “Parece que para algumas pessoas houve a validação de uma resposta emocional e imediata a piadas e não uma resposta racional. Não há ninguém que seja obrigado a gostar de piadas, a crítica é perfeitamente válida e salutar, mas este tipo de resposta, de que alguma forma o Chris Rock 'mereceu' [a agressão], não é um discurso assim tão de franja”, adianta.

Ou seja, nota o humorista, algumas das respostas que tem visto — sobretudo nas redes sociais — são de pessoas a subscrever a resposta violenta de Smith à piada de Rock, ao ter uma resposta emocional à ofensa, o que culmina numa agressão, ao invés de ter uma reação racional. “Não sei se não é preocupante não haver uma clara unanimidade em relação à brutal diferença entre estas duas acções, ou se respalda um pouco a legitimação destas respostas emocionais", diz.

Mais tarde, em declarações à SIC Notícias, Bruno Nogueira apresentou uma posição semelhante, lamentando que o foco das discussões tenha sido dominado pelo teor da piada de Chris Rock, a “velha história dos limites do humor”, e não pelo teor das agressões. “Há uma pessoa que disse uma coisa, essa mesma foi agredida e estamos a tentar perceber se a que foi agredida passou os limites”, criticou.

Para Nogueira, “pouco importa se a piada é boa ou má”, pois “a partir do momento em que se legitima que a resposta a palavras seja kickboxing, há muito pouco espaço para a discussão. Fica muito difícil de perceber qual é a zona cinzenta que leva a que uma pessoa possa agredir a outra”, continuou.

Por isso é que, tal como Manuel Cardoso, para si o preocupante é que haja uma corrente de pessoas “que acha normal uma pessoa agredir a outra porque não gostou de uma piada”, frisando que este não é um problema de humor, mas de liberdade de expressão, e que o mais grave foi mesmo “legitimar que uma pessoa bata na outra e a sessão corra como se nada fosse”, com Smith a ser celebrado por ganhar o Óscar de Melhor Ator meia-hora depois das agressões.

É pelo próprio estatuto de Will Smith, contudo, que Manuel Cardoso considera que este não é um caso imediatamente replicável, já que “há várias camadas de inimputabilidade”. “Se tivesse acontecido no Comedy Club de Manchester, em que o Jim Jeffries foi agredido, óbvio que a primeira coisa que aconteceria era aparecer um segurança a colocar essa pessoa na rua”, aponta.

Pelo contrário, tratando-se da cerimónia dos Óscares, uma “festa em que o nível de performance é elevadíssimo e onde não há propriamente uma moral que presida como aquela que temos em casa”, Smith pôde escapar a represálias de uma forma que um agressor num clube de comédia seria incapaz — até porque, nos Óscares, terá havido certamente que tenha tentado “varrer para debaixo do tapete esse faux-pas que aconteceu.”

De resto, correndo os olhos pelas redes sociais, esta tem sido a posição de algumas pessoas ligadas ao humor em Portugal. Fazendo uso do Instagram, Nuno Markl escreveu que “onde a coisa abre um precedente tramado é na violência” pois “o que Will Smith fez foi, para muita gente, validar a ideia de que não gostar de uma piada pode ser respondido e punido com violência. Se isto agora é aceitável, perdemos absolutamente como civilização”.

Fernando Alvim seguiu pela mesma bitola. “De cada vez que vejo alguém a perpetuar uma agressão como a que Will Smith fez ontem à noite nos Óscares, penso imediatamente na quantidade de pessoas que se sentirão inspiradas para replicar a sua atitude, como se aquele gesto legitimasse situações semelhantes”, desabafou.

Já Carlos Pereira escreveu no Twitter que “o que aconteceu ontem foi vergonhoso e preocupante, um homem subiu para cima de um palco para agredir outro homem no exercício da sua profissão: contar piadas”. Numa sequência de publicações, o comediante lamentou ainda a forma como a discussão se centrou no machismo implícito de Will Smith ao defender a honra “da sua dama, num gesto medieval”, e não nas razões para isso. “Mais do que discutir em como a questão da ‘defesa de honra’ é ofensivo para a mulher, importa discutir o que leva um homem a achar que tem de fazê-lo”, adverte.

Nem todos, porém, reagiram com este pesar. Como comediantes que são, muitos aludiram ao episódio com humor. “Aqui para nós podemos achar a piada do Chris Rock de mau gosto, mas um gajo levantar-se armado em macho para defender a mulher, ela não precisa, nem acredito que queira. Fosse ela a dar um soco no Chris era bonito”, escreveu João Quadros.

O próprio Manuel Cardoso disse no Twitter que “um gajo acorda e, de repente, fica a saber que desempenha uma profissão de risco elevado”, ao passo que Daniel Carapeto antecipou que tal nunca aconteceria em Portugal pois “não há um único humorista que não treine Kickboxing.” Já Guilherme Fonseca escreveu que “o Will Smith escolheu bem o Rock, fez isto ao Chris mas não fazia ao The”, em alusão ao ator e ex-wrestler Dwayne Johnson.