Ivone Gebara, freira, feminista, teóloga e figura central na Teologia da Libertação no Brasil, esteve em Coimbra, a convite do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, para dar uma lição e participar numa oficina.

Em declarações à agência Lusa, a teóloga - que em 1995, no pontificado de João Paulo II, foi condenada pelo então cardeal Ratzinger a dois anos de "silêncio" pelas suas posições em relação ao aborto - acredita que o papa Francisco pode dar algum "ânimo" aos movimentos progressistas católicos, que, neste momento, são uma minoria no Brasil, mas é descrente de que a mudança se faça com uma só pessoa.

"Há uma tradição católica muito forte de centralização numa pessoa, mas também na Teologia da Libertação e nas políticas de esquerda, de que queremos um messias que resolva todos os problemas. Não é um homem de 84 anos, sozinho, que o vai fazer", vincou.

Segundo a teóloga a viver em São Paulo, o papa Francisco permitiu alguma reconciliação com os movimentos progressistas, porém, aquilo que era a Teologia da Libertação, presente em toda a América Latina e uma das forças por trás dos movimentos populares que lutaram contra ditaduras e ajudaram a eleger governos de esquerda, quase que desapareceu do Brasil - "perdeu o pé" e nenhum outro movimento semelhante tomou o seu lugar, constatou.

"Não apareceram novos movimentos progressistas, mas apareceram muitos movimentos conservadores", resumiu.

Na cúpula da Igreja Católica brasileira, há muita gente que apoiou Bolsonaro, observa Ivone Gebara, seja a partir de apoio público ou velado.

"Para eles, [Bolsonaro] significou uma segurança, uma espécie de volta a uma ordem que as esquerdas pareciam ameaçar. Há bolsonaristas do lado da Igreja Católica, sem a menor dúvida", referiu.

Se encarou como "positivo" o Sínodo da Amazónia pela chamada de atenção para as questões da ecologia e das populações indígenas, também considera que essa posição do papa Francisco poderá não ter grandes consequências junto dos eleitores do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

"Para quem já tem esse paredão ideológico não se deixa convencer", notou.

Sobre a eleição de Jair Bolsonaro, a freira de 74 anos considera que movimentos neopentecostais como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) tiveram um papel fundamental na sua vitória nas presidenciais de 2018 e, sinal disso, foi o atual presidente, "de tradição católica se rebaptizar numa igreja pentecostal, com o vídeo a ser espalhado como se fosse um novo filho de Deus".

Para Ivone Gebara, o crescimento do movimento neopentecostal no Brasil está relacionado com diversos factores, sendo um deles a forma como a religião, nesse caso, trabalha "com as carências humanas, com os medos, com o desemprego, com a droga", criando um mercado "para mostrar a cara do milagre que os pastores são capazes de fazer".

"É impressionante o uso da dor humana", salientou, notando que os movimentos de "curas e mágicas" têm também ganhado espaço dentro da própria Igreja Católica brasileira.

Apesar disso, é nos movimentos neopentecostais que a religião tenta 'vender' de forma mais vincada curas a problemas mais concretos da sociedade, seja a toxicodependência, a pobreza ou o desemprego, afirmou.

"Essas igrejas dão uma espécie de identidade humana. Não dão uma identidade de cidadania, mas é humana. Eu vou lá procurar algo e sou recebida. Fico naquela multidão, mas eu sinto-me alguém", frisou, considerando que, por trás dessa componente, há "uma ambiguidade terrível" e é criada uma ilusão que apenas "fortalece uma elite que está no poder".

"É um jogo muito bem montado de ascensão de um poder político conservador", vincou.

Num país que tem cerca de 70% de católicos (quando no início do século XX seria perto de 100% da população), há caminho para os movimentos neopentecostais continuarem a crescer e a ganhar influência, ainda para mais com um catolicismo associado a "um consumismo cultural da religião - casamento, batizado e enterro".

"A sociedade complexificou-se e ainda estamos numa Igreja [Católica] de há 50 ou 100 anos. Eu sinto que as pessoas estão carentes de lugares onde possam expressar o sentido da sua vida, mas não mais numa celebração em que o padre começa: "Em nome do Pai, Filho e Espírito Santo"", realçou.

Nesse sentido, o futuro que vê para o catolicismo progressista no Brasil passa, primeiro, por fazer perguntas, a um nível pessoal e a um nível coletivo de pequenos grupos e pequenas comunidades, para que o próprio cristianismo possa ser reinventado.

"Tenho que perguntar o que é o cristianismo para mim e o que é que ele me dá. Não apenas como consumidores de missa, bíblia e hóstia. Estamos num momento de peneirar aquilo que foi uma tradição velha e que tem já muito mofo, mofo de certas pregações, mofo de certas formas litúrgicas e orações. As pessoas têm medo de tocar na religião porque não imaginam que é uma criação humana, mas é tão criação humana quanto uma obra de arte", salientou.