O novo Estatuto da Cultura entrou em vigor a 1 de janeiro deste ano, mas as principais mudanças para a vida dos trabalhadores do setor só chegaram a 1 de outubro. Para ajudar a explicar o que está em causa, o SAPO24 contactou duas especialistas em direito fiscal e tributário e direito da segurança social, entre outras matérias.
Ana Paula Santiago é advogada na DCM | Littler e foi — entre outras funções — Técnica Especialista no Gabinete da Secretária de Estado da Cultura no anterior executivo liderado por António Costa, tendo trabalhado na conceção deste documento.
Suzana Fernandes da Costa é advogada na Brochado Coelho Advogados e membro do colégio de especialidade de Segurança Social da Ordem dos Contabilistas Certificados.
O que é o novo Estatuto da Cultura?
O nome oficial é “Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura”, e é uma lei desenhada para dar um novo enquadramento jurídico aos trabalhadores do setor da cultura.
Segundo o Governo, este estatuto “é aplicável a todos os profissionais das artes do espetáculo, do audiovisual, das artes visuais e da criação literária, que exerçam uma atividade autoral, artística, técnico-artística ou de mediação cultural”.
Essencialmente, este estatuto definiu um modelo para os trabalhadores do setor se registarem — o Registo dos Profissionais da Área da Cultura, ou RPAC — para estarem aptos a receber apoios através de um novo regime contributivo e de proteção social. Este inclui, em particular, um subsídio para quem suspender a sua atividade cultural.
Além disso, definiu também novos termos do regime do contrato de trabalho e de prestação de serviços.
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 105/2021, de 29 de novembro de 2021, entrou em vigor a 1 de janeiro deste ano. Os seus efeitos no grosso dos trabalhadores, porém, só tiveram início em outubro, mas já lá vamos.
RPAC? O que é isso?
Este registo tem como objetivo fazer uma contabilização estatística de quantos trabalhadores do setor estão em atividade em Portugal, mas, mais do que isso, cria um regime contributivo especial que, por sua vez, permite o acesso a um novo subsídio: o de suspensão da atividade cultural.
Este é gerido pelo Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais da Cultura e dirige-se tanto a trabalhadores por conta de outrem com contrato de trabalho de muito curta duração — por exemplo, um músico contratado para tocar todos os dias de um evento que dure uma semana — como a trabalhadores independentes. São apenas abrangidos aqueles com atividade aberta e que tenham feito contribuições para a Segurança Social durante, pelo menos, 180 dias.
“Este novo subsídio visa proteger os trabalhadores nos períodos em que estes não estão a prestar qualquer atividade profissional, sem se exigir que estes cessem a respetiva atividade junto dos serviços da segurança social e das finanças”, explica Ana Paula Santiago.
Há, no entanto, contrapartidas:
- Quem se inscrever no registo, passa a ter de fazer uma contribuição ao fundo especial por cada serviço prestado — o dito “regime contributivo especial”;
- Não é obrigatória a inscrição, mas “apenas os inscritos beneficiam de aplicação do regime contributivo especial previsto no Estatuto”, adverte Ana Paula Santiago. Ou seja, só quem está inscrito é que pode ter acesso ao subsídio.
Estas contribuições, porém, não são facultativas para todos.
Como assim?
Apesar dos trabalhadores poderem optar se querem contribuir para o fundo ao inscreverem-se no RPAC, os contratantes destes serviços — tanto empresas como pessoas particulares — não têm escolha.
Desde de que o estatuto entrou em vigor em toda a sua capacidade, qualquer pessoa ou entidade que contrate os serviços de um profissional da cultura tem de pagar uma taxa contributiva, mesmo que este não esteja inscrito no RPAC.
Quanto é o valor do subsídio?
Varia entre 443,2€ e 1.108€, podendo ser atribuído até um período de seis meses. No entanto, para os profissionais com sete ou mais anos de descontos para a Segurança Social e 55 ou mais anos de idade, o subsídio pode ser atribuído até um ano.
Este subsídio só pode ser concedido a cada profissional da área da cultura apenas uma vez em cada ano civil.
Quantas pessoas já aderiram?
Foi comunicado às associações representativas da cultura que, desde que o estatuto entrou em vigor, apenas 2.460 trabalhadores fizeram o registo enquanto profissionais da Cultura na Inspecção Geral Das Actividades Culturais.
Porque é que estamos a falar disto agora?
Porque, conforme explica Ana Paula Santiago, o estatuto entrou em vigor a partir do início do ano, mas apenas para efeitos de inscrição no RPAC e aplicação das novas regras laborais e de prestação de serviços.
Para dar tempo ao setor a reajustar a este novo estatuto, foi preciso esperar até 1 de julho para a segunda fase, onde se começou a contar o prazo de garantia para acesso ao subsídio de suspensão da atividade cultural e entrou em vigor o regime contributivo;
A atualidade do tema chegou com o facto de que foi a 1 de outubro que o Estado disponibilizou oficialmente o direito ao dito subsídio e foi quando começaram a ser aplicadas as novas taxas contributivas — ou seja, entre 1 de julho e 1 de outubro, não foi exigido às entidades que contratem os serviços dos profissionais da cultura que as pagassem.
Mas que taxas são estas?
O Governo disponibilizou o seguinte quadro com as taxas a aplicar:
No caso dos trabalhadores da cultura com contratos de muito curta duração, a taxa contributiva é de 37,1%, sendo que 26,1% deste desconto são da responsabilidade da entidade empregadora e 11% são do trabalhador.
Já no caso dos trabalhadores independentes, a coisa complica-se. A taxa contributiva é sempre de 30,3%, dividindo-se esta percentagem por 25,2% de descontos do trabalhador e 5,1% de contribuições a cargo da entidade, valores que devem ser declarados consoante dois tipos de situações.
Se o trabalhador da cultura prestar o serviço a uma entidade empregadora com o estatuto de pessoa coletiva ou, sendo uma pessoa singular, exerça uma atividade empresarial ou profissional com contabilidade organizada, esta tem a obrigação de fazer as devidas retenções na fonte. Isto quer dizer que tanto os 25,2% devidos pelo trabalhador como os 5,1% devidos pela entidade devem ser pagos pela segunda à Segurança Social.
No entanto, se a entidade beneficiária da prestação de serviços não dispor nem for obrigada a dispor de contabilidade organizada, a responsabilidade recai sobre o trabalhador. Além do pagamento acordado pelas duas partes, a entidade paga 5,1% desse valor ao trabalhador, que depois deverá declarar à Segurança Social, assim como a sua contribuição devida de 25,2%.
Isto parece-me algo confuso. E que tal exemplos?
Elsa Marvanejo da Costa, consultora da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), deu dois exemplos que ajudam a explicar a diferença entre estas duas situações numa nota escrita para a OCC.
Se uma entidade com contabilidade organizada contratar um artista para um evento e o valor acordado for de 1200 euros, esta empresa terá de reter a título de contribuições da Segurança Social (SS) a quantia de 211,68 euros — os 1200 vezes 70% (percentagem sobre a qual é calculado o valor total de prestação de serviços) vezes 25,2% (a contribuição devida à SS). Ou seja, o trabalhador receberá 988,32 euros. Paralelamente, a entidade terá de pagar o valor da contribuição por si devida: 1200 vezes 70% vezes 5,1%, ou seja, 42,84 euros. A entidade beneficiária tem então de somar esse valor aos 211,68 euros retidos, representando um total de 254,52 pagos à SS.
No entanto, se este mesmo artista circense for contratado por um particular para atuar, por exemplo, numa festa de aniversário e o valor acordado for o mesmo, é sobre si que recai o ónus de pagar à SS. Aquando da emissão da fatura, este artista irá acrescer ao valor acordado a mesma quantia de 42,84 euros. Ou seja, o particular irá pagar ao artista um total de 1242,84 euros, mas essa quantia extra deverá ser entregue à SS tal como as suas contribuições devidas — os mesmos 211,68 euros acima calculados.
Ou seja, os cálculos de pagamento mudaram, mas o resultado é o mesmo?
Sim e não. Em teoria, o dinheiro destinado ao trabalhador acaba por ser o mesmo antes e depois desta alteração, mas a mudança tem um "impacto imediato na liquidez", alerta Suzana Fernandes da Costa. É uma questão de timing, no fundo. Vejamos.
A advogada dá-nos dois exemplos:
- Um ator que acordasse 1000 euros por um espetáculo e que tem retenção de IRS e isenção de iva, receberia 750 euros, sendo que a entidade ficaria com 25% de IRS. De três em três meses, o trabalhador teria de entregar à Segurança Social 21,4% de 70% dos honorários mas podendo baixar ou subir esse valor em 25%.
- Se, agora, o mesmo ator tiver optado pelo RPAC e a entidade tiver contabilidade organizada, este recebe 573,6 euros diretos dos 1000 euros acordados. Juntando-se os 250 euros de retenção de IRS (de 25%) aos 176,4 euros de retenção na fonte de Segurança Social (de 25,2%).
Por outras palavras, no primeiro regime, o ator vai necessitar de descontar mais tarde à SS parte do valor, mas fica com 750 euros na conta; no segundo, devido às retenções, já só caem 573,6 euros. Além disso, a empresa tem ainda um custo acrescido da contribuição ao setor de 35,7 euros (os 5,1%).
Mas onde é que entra aqui aquela lógica de contribuir para o fundo do subsídio de suspensão da atividade cultural?
O fundo é alimentado por contribuições independentemente dos trabalhadores estarem inscritos no RPAC. No caso dos trabalhadores com contratos de muito curta duração, 7,5% da taxa devida pela entidade empregadora destina-se ao fundo; já as entidades beneficiárias contribuem com os 5,1% acima referidos. Já os trabalhadores, contribuem com 3,8% das taxas contribuídas por si devidas — isto, se estiverem inscritos no RPAC. Se não for esse o caso, o valor total vai para a Segurança Social.
Como é que estas alterações estão a ser recebidas?
Aqui entram os problemas. Com estas alterações, foram disponibilizados novos formatos para as faturas-recibo e para outros documentos de faturação disponíveis no Portal das Finanças.
Estas mudanças, porém, apanharam alguns profissionais da cultura de surpresa, como o caso da humorista Luana do Bem, que no programa da SIC Radical “Irritações”, descreveu as suas tentativas de passar recibos pela prestação de serviços como confusas e sujeitas a uma lógica de tentativa e erro. “Houve uma mudança profunda e várias alterações e não há nenhuma circular, nem para nós nem para as pessoas das finanças. Passei duas horas para passar um recibo”, lamentou.
Além disso, há relatos nas redes sociais de que nos primeiros dias de outubro houve profissionais com o Código de Atividade Económica da área da Cultura impossibilitados de passar recibos.
Em resposta conjunta ao Polígrafo, o Ministério da Cultura e o Ministério das Finanças afirmaram que “a Autoridade Tributária introduziu novas funcionalidades no Portal das Finanças” na sequência da entrada em vigor do estatuto e que “este processo decorreu com normalidade, ainda que se possam ter registado perturbações pontuais."
Estas perturbações, adiantaram os dois ministérios, deveram-se ao “constrangimento no processo dos registos no Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura" que afetou esses profissionais da área da cultura mas que "está resolvido".
Mas qual é o problema com os recibos?
Foi preciso alterá-los para acolher as mudanças na lei, devido às novas contribuições para o fundo e para a possibilidade de retenção na fonte em alguns dos casos acima descritos.
Suzana Fernandes da Costa recorda que esta alteração foi operada pela Portaria n.º 243/2022 de 23 de setembro. Os modelos presentes no documento são relativamente simples, “mas depois, quando passamos para o seu preenchimento eletrónico, existem subcampos que nem sequer estão publicados oficialmente em Diário da República, que têm de ser preenchidos necessariamente e que causam muito constrangimento aos profissionais desta área”, diz a advogada.
“O modelo de fatura-recibo e de fatura dos profissionais da cultura passou a ter alguns campos que equivalem aos programas de faturação. Ou seja, é preciso colocar referência, unidade, valor… Exigem conhecimentos técnicos e experiência no preenchimento e no manuseamento de programas de faturação que a maioria dos profissionais da área da cultura não tem”, continua.
Quanto a esses subcampos, “quando abrimos o campo das unidades, aparecem-nos mais de 50 referências diferentes e que não se aplicam sequer ao setor”, diz Suzana Fernandes da Costa. “Ainda se fossem concertos ou peças de teatro... em vez disso surgem referentes que dizem respeito aos programas de faturação ou venda de bens e têm muito pouco a ver com a prestação de serviço na área da cultura”, acrescenta.
A agravar esta situação — e reforçando as queixas de Luana do Bem —, a advogada frisa ainda que “os próprios serviços da Autoridade Tributária não estavam preparados no imediato para ajudar as pessoas a preencher os respetivos documentos — nem os próprios funcionários conseguiam ter acesso aos campos informáticos que aparecem quando alguém tenta preencher um recibo na área da cultura”.
“As alterações respeitantes ao estatuto não implicavam tanta complexidade no novo modelo — a Autoridade Tributária, além das questões da contribuição da cultura, introduziu aqui uma série de campos que tornaram tudo isto muito complexo”, conclui.
Que tipo de problemas é que estes novos recibos trouxeram?
Um dos maiores problemas presta-se com os profissionais que mantenham atividades no setor cultural e fora do mesmo em simultâneo.
De acordo com Suzana Fernandes da Costa, há uma pergunta no processo para passar faturas que pode induzir as pessoas em erros: “Tem atividade registada na área da cultura. Deseja emitir um recibo neste âmbito?"
“Esta pergunta é um bocadinho subjetiva, parece que dá a possibilidade a uma pessoa que está coletada num daqueles CAEs ou com aqueles códigos do IRS da área da cultura, colocar a cruz no ‘não’. Na minha opinião, só se deve colocar o não quando temos uma atividade que não é cultural — como tradução ou consultoria — e para essa queremos emitir um documento normal”, alerta.
Ao fazer o contrário — não passar recibos da cultura quando é esse o procedimento a tomar — também se incorre numa contra ordenação. “Quando as atividades são da área da cultura, somos obrigados a emitir o documento de acordo com estes modelos, porque se não o fizermos, não vamos estar a quantificar a contribuição do setor que já é obrigatória desde o dia 1 de outubro”, comenta a advogada.
O risco de cometer erros quando confrontado com a necessidade de preencher recibos para atividades culturais e não cultural aumentou porque são “são dois modelos diferentes de recibo eletrónico para preencher no site” e “os documentos fiscais são diferentes para cada uma das atividades”.
Além disso, há ritmos distintos para entregar as contribuições à Segurança Social. “Para a atividade não-cultural, vão ter de entregar trimestralmente declarações; para a cultural, se estiverem inscritos no RPAC, vão ter obrigações declarativas mensais, podem ter retenções na fonte da parte da contribuição para SS e ainda vão ter de entregar a contribuição do setor quando as entidades pagadoras não tiverem contabilidade organizada”, termina.
Mais alguma informação a ter em conta?
Sim, se for um profissional da cultura, pergunte sempre a que lhe requer o serviço se tem contabilidade organizada ou não, pelas razões acima descritas.
É que se todas as sociedades comerciais são obrigadas a ter contabilidade organizada, um empresário individual — como o dono de um bar, por exemplo — pode optar tanto pelo regime simplificado como pela contabilidade organizada. Esta só obrigatória às entidades com uma faturação anual superior a 150 mil euros.
“Para os artistas, que não são obrigados a saber isto, essa pergunta é feita quando passam recibo — se a entidade pagadora tem ou não contabilidade organizada — e é uma informação que deve ser sempre solicitada antes de se prestar o serviço, porque isso vai ser determinante para saber se vai haver retenção na fonte ou se vão receber os 5,1%”, avisa Suzana Fernandes da Costa.
Se for caso do trabalhador da cultura receber os 5,1% devido pelas entidades beneficiárias — como no exemplo acima mencionado da contratação por parte de uma pessoa sem contabilidade organizada —, a advogada sublinha também que ainda não se sabe quando é que é preciso entregar esse valor à Segurança Social. “Não se sabe se é preciso entregar mensalmente ou, se for um trabalhador independente que não aderiu ao RPAC, se vai poder entregar essa quantia quando for entregar a sua própria contribuição de três em três meses”, frisa.
Já da parte das entidades, devem “perguntar sempre ao prestador se ele está inscrito no RPAC e qual é o CAE ou o código de IRS com o qual ele está a trabalhar”. “Se o CAE for algum daqueles que está identificado na portaria 29-B, aplica-se o estatuto e aplicam-se os 5,1% e o dever de retenção na fonte, eventualmente”, conclui.
E que mais conselhos devo seguir?
De acordo com Suzana Fernandes da Costa, deve:
Fazer simulações antes de optar pelo RPAC;
Pedir ajuda a um contabilista certificado para verificar se o seu enquadramento é o mais correto e para preencher os primeiros recibos, faturas e faturas-recibo neste regime;
Verificar se não perde nenhuma das isenções existentes ao aderir ao RPAC, já que há dúvidas sobre a manutenção das isenções em caso de acumulação com outra atividade ou no caso dos pensionistas, que terão de ser esclarecidas o quanto antes.
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