“A noite de um mundo já a braços com desafios epocais e agora oprimido pela pandemia (…) coloca a uma dura prova a nossa grande família humana”, afirmou o Papa na sua alocução da bênção urbi et orbi deste Domingo de Páscoa.

Ao contrário do habitual, em que uma multidão de milhares de pessoas enche a Praça de São Pedro, desta vez, tal como acontece desde há mais de um mês, Francisco esteve praticamente sozinho, dentro da Basílica Vaticana.

Esta frase do Papa, no início da sua intervenção, pode servir de pano de fundo para sete ideias de um guião possível, que já se pode perceber nas principais intervenções de Francisco acerca do momento presente e como propostas para o pós pandemia.

1. As feridas dentro do barco

“Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados”, afirmou o Papa na sua poderosa Oração pela Humanidade, de 27 de março, quando subiu sozinho a escadaria da Praça de São Pedro, debaixo da chuva que lavava as pedras e o céu. Ao mesmo tempo, somos todos “importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento”, acrescentava. E, como que acordando a memória coletiva, afirmava que estamos todos no mesmo barco e não nos salvaremos se não nos unirmos. “Só o conseguiremos juntos.

Na bênção deste Domingo de Páscoa, o Papa argentino falou do corpo do ressuscitado como um corpo glorioso que, no entanto, é o mesmo do crucificado: “Indeléveis no seu corpo glorioso, traz as chagas: feridas que se tornaram frestas de esperança. Para Ele, voltamos o nosso olhar para que sare as feridas da humanidade atribulada.”

Francisco recordou os que já foram atingidos pelo coronavírus – doentes, mortos, familiares – e, em especial, os que idosos, os que estão sem ninguém ou em particular vulnerabilidade, os que trabalham em hospitais, os que vivem nos quartéis e nas prisões. “Para muitos, é uma Páscoa de solidão, vivida entre lutos e tantos incómodos que a pandemia está a causar, desde os sofrimentos físicos até aos problemas económicos.”

Sozinhos, nada conseguiremos, dissera dia 27; sozinhos a nenhures chegaremos, repetiu nesta Páscoa, de outro modo: “Verdadeiramente palavras como indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo. Mais, queremos bani-las de todos os tempos!”

2. Unidade e doação contra os medos

Se não nos salvamos sozinhos, a afirmação positiva é a de que só a unidade é o caminho. Desde logo, para os crentes, privados que têm estado da celebração comunitária e dos sacramentos, signos tangíveis dessa expressão comunitária da fé no caso cristão e especificamente católico, mas também da convicção pessoal de cada um(a).

“Permanecendo unidos na oração, temos a certeza de que [Deus] colocou sobre nós a sua mão, repetindo a cada um com veemência: Não tenhas medo! ‘Ressuscitei e estou contigo para sempre’.

Só o sentido de comunidade, unidade e fraternidade podem ajudar a ultrapassar os medos que a todas e todos atingem. Desde logo, pelo espírito de doação e serviço de que tantas pessoas têm dado mostras. Na oração de dia 27, o Papa recordou todos os que já entenderam que só salvando outros se podem salvar a si mesmos: as “pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo”. Essas que, “hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, responsáveis, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.

Na bênção do domingo pascal, todos esses foram recordados de novo: “Jesus, nossa Páscoa, dê força e esperança aos médicos e enfermeiros, que por todo o lado oferecem um testemunho de solicitude e amor ao próximo até ao extremo das forças e, por vezes, até ao sacrifício da própria saúde. Para eles, bem como para quantos trabalham assiduamente para garantir os serviços essenciais necessários à convivência civil, para as forças da ordem e os militares que em muitos países contribuíram para aliviar as dificuldades e tribulações da população, vai a nossa saudação afetuosa juntamente com a nossa gratidão.”

3. proximidade, os gestos e o ecumenismo

Um dos primeiros momentos intensos propostos pelo Papa foi quando, a 25 de março, o Papa propôs a todos os cristãos – católicos, ortodoxos, protestantes, anglicanos, evangélicos e muitas outras correntes – que, ao meio-dia, rezassem juntos a oração do Pai-Nosso, num gesto de grande profundidade ecuménica.

“Queremos implorar misericórdia para a humanidade, duramente provada pela pandemia do coronavírus. E façamo-lo juntos, cristãos de todas as igrejas e comunidades, de todas as tradições, idades, línguas e nações”, pediu.“Queremos responder à pandemia viral com a universalidade da oração, da compaixão e da ternura”, justificou o Papa, numa mensagem na rede social Twitter. A iniciativa teve a adesão de muitos responsáveis cristãos, não católicos, do mundo inteiro, no entendimento de que os gestos que unem pessoas em oração recordam “que somos uma família humana”.
Imagem e gesto marcante foi a deslocação do Papa à igreja de San Marcello al Corso, situada numa das ruas mais comerciais e movimentadas de Roma, marcada permanentemente pelo ruído e pela poluição. Agora deserta, tal como milhões de ruas pelo mundo inteiro, com o “Altar da Pátria” de Itália ao fundo, Francisco atravessou a rua a 16 de março. E foi junto de um crucifixo rezar de novo, sozinho, num gesto de proximidade com os cidadãos de Roma, já que muitos deles consideram que foi essa imagem que salvou a cidade da peste. A oração do Papa não entende a pandemia como um qualquer castigo divino nem Deus como o mágico que acabará com o vírus. Antes insiste na ideia da compaixão e da ternura, na presença das vítimas ou dos que ajudam na luta contra a pandemia. E na proposta da fé em Deus como um risco, apesar do mal, como escrevia Fernanda Henriques no 7MARGENS.
O mesmo sentido de proximidade esteve intensamente presente na Via-Sacra de Sexta-Feira Santa. Sem fazer qualquer discurso, o Papa deu voz a reclusos, guardas prisionais, condenados, vítimas de crimes ou voluntários de prisões. O peso da vida, a dor e o sofrimento, o grito das fragilidades humanas – “os inúmeros vazios deste mundo” de que falava também o patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, na sua homilia da missa de domingo de Páscoa – foram sublinhados pelo silêncio despojado que falava numa Praça de São Pedro de novo deserta, iluminada por pequenas velas.4. Perdão da dívida e atenção aos mais pobresNinguém se salva sozinho e isso deve ter consequências também ao nível das decisões pessoais: “Este não é tempo para a indiferença, porque o mundo inteiro está a sofrer e deve sentir-se unido ao enfrentar a pandemia”, afirmou o Papa na bênção pascal. “Jesus ressuscitado dê esperança a todos os pobres, a quantos vivem nas periferias, aos refugiados e aos sem abrigo. Não sejam deixados sozinhos estes irmãos e irmãs mais frágeis, que povoam as cidades e as periferias de todas as partes do mundo.”Esta atitude tem igualmente um lado social e político: “Em consideração das presentes circunstâncias, sejam abrandadas também as sanções internacionais que impedem os países visados de proporcionar apoio adequado aos seus cidadãos e seja permitido a todos os Estados acudir às maiores necessidades do momento atual, reduzindo – se não mesmo perdoando – a dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.”Não por acaso, já na entrevista que, na Semana Santa, deu ao jornalista inglês Austen Ivereigh, o Papa pedira a “conversão a uma economia menos líquida, mais humana”, insistindo na ideia de “desacelerar um determinado ritmo de consumo e de produção e aprender a compreender e a contemplar a natureza”. E insistia: “É o momento de ver o pobre. (…) Descobrir essa quantidade de gente marginalizada… e como a pobreza é cheia de pudor, não a vemos. Estão ali, passamos ao lado, mas não os vemos.”

5. O tempo de um cessar-fogo global e da atenção aos refugiados

Este não é tempo para divisões, insiste o Papa, de diferentes maneiras, nestes dias. Voltou a repeti-lo no Domingo de Páscoa, quando recordou todos “quantos têm responsabilidades nos conflitos, para que tenham a coragem de aderir ao apelo a um cessar-fogo global e imediato em todos os cantos do mundo”, na sequência do apelo do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que Francisco já secundou.

Na sua saudação pascal, o Papa insistiu: “Este não é tempo para continuar a fabricar e comercializar armas, gastando somas enormes que deveriam ser usadas para cuidar das pessoas e salvar vidas. Ao contrário, seja o tempo em que finalmente se ponha termo à longa guerra que ensanguentou a amada Síria”, bem como aos conflitos e tensões no Iémen, Iraque, Israel e Palestina, Ucrânia, vários países da África ou, mesmo, na região de Cabo Delgado, em Moçambique.

“Este não é tempo para o esquecimento. A crise que estamos a enfrentar não nos faça esquecer muitas outras emergências que acarretam sofrimentos a tantas pessoas. Que o Senhor da vida Se mostre próximo das populações da Ásia e da África que estão a atravessar graves crises humanitárias”, apelou, acalentando “o coração das inúmeras pessoas refugiadas e deslocadas por causa de guerras, seca e carestia”. E recordou ainda “os inúmeros migrantes e refugiados, muitos deles crianças, que vivem em condições insuportáveis, especialmente na Líbia e na fronteira entre a Grécia e a Turquia”, não esquecendo a ilha de Lesbos ou a Venezuela, de modo a que haja soluções que permitam “a ajuda internacional à população”.

6. Quo vadis, Europa?

Vindo da América Latina, o Papa Bergoglio olha com atenção especial para a Europa e para a ameaça da desfragmentação da União Europeia, perguntando-lhe para onde quer ela ir. Já em novembro de 2014, em visita às instituições europeias em Estrasburgo, pedira que a Europa não esqueça as suas raízes e não deixe de ser pátria da solidariedade, dos direitos humanos e da justiça, fundadas na sua rica tradição espiritual, de modo a manter viva a “democracia dos povos”, não cedendo aos impérios financeiros.

Depois da II Guerra Mundial, a Europa “pôde ressurgir graças a um espírito concreto de solidariedade, que lhe permitiu superar as rivalidades do passado”, recordou nesta Páscoa. E também na Europa “este também não é tempo para egoísmos, pois o desafio que enfrentamos une-nos a todos e não faz distinção de pessoas”.

No continente, acrescentou, é “urgente” que não ressurjam “rivalidades”, mas que “antes, pelo contrário, todos se reconheçam como parte duma única família e se apoiem mutuamente”.  E a União Europeia tem à sua frente um enorme desafio, “de que dependerá não apenas o futuro dela, mas também o do mundo inteiro”, precisando de “dar nova prova de solidariedade, inclusive recorrendo a soluções inovadoras”. A alternativa? “Apenas o egoísmo dos interesses particulares e a tentação dum regresso ao passado, com o risco de colocar a dura prova a convivência pacífica e o progresso das próximas gerações.”

7. A ressurreição: reajustar a vida

“Hoje ecoa em todo o mundo o anúncio (…) ‘Jesus Cristo ressuscitou’, ‘ressuscitou verdadeiramente’!”, afirmou o Papa Bergoglio neste Domingo de Páscoa, recordando o acontecimento fundador da fé cristã.

Na Oração pela Humanidade, de 27 de março, o Papa falara em “reajustar a rota” e na importância de olhar para as “pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo”, mas que estão hoje, “sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, responsáveis, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.

Estas referências, já repetidas, aos esquecidos e aos que são socialmente menosprezados, obrigará pessoas e sociedades a reajustar critérios, insiste Francisco. De repente, a vida de milhões alterou-se e ficar em casa pode ser ocasião para “refletir, parar os ritmos frenéticos da vida, permanecer com os próprios familiares e desfrutar da sua companhia”. Para outros, “é também um momento de preocupação pelo futuro que se apresenta incerto, pelo emprego que se corre o risco de perder e pelas outras consequências que acarreta a atual crise”.

Por isso, reajustar a vida supõe “trabalhar ativamente em prol do bem comum dos cidadãos”, promovendo “uma vida digna”. E isso passa por muitos dos temas em que o Papa tem insistido: atenção à natureza e à “casa comum” como sinal da presença de Deus que não pode continuar a ser destruído; fim das guerras e dos conflitos e promoção de um mundo com justiça e paz, sem fome nem exploração; e centralidade da pessoa humana, entendida como um todo em que a dimensão espiritual é central.

Este deverá ser um “contágio” diferente, disse o Papa na sua bênção de Páscoa. “Que se transmite de coração a coração, porque todo o coração humano aguarda esta Boa Nova. É o contágio da esperança: ‘Cristo, minha esperança, ressuscitou!’ Não se trata duma fórmula mágica, que faça desvanecerem-se os problemas. Não. A ressurreição de Cristo não é isso. Mas é a vitória do amor sobre a raiz do mal, uma vitória que não ‘salta’ por cima do sofrimento e da morte, mas atravessa-os abrindo uma estrada no abismo, transformando o mal em bem: marca exclusiva do poder de Deus.

Está muito por fazer depois da pandemia. Francisco traça um guião possível.