Em Tondela, distrito de Viseu, como em Tábua, já no território de Coimbra, vencem-se quilómetros e quilómetros, serra acima, serra abaixo, vales profundos ou aldeias empoleiradas nos montes e uma mesma realidade: o fogo correu por ali, há dois anos, sem que nada lhe travasse o ímpeto. E a devastação ficou, no terreno e na memória.
Maria da Piedade, de 83 anos, viu o fogo levar-lhe a casa de dois pisos, habitação em cima, lagar de azeite e espaço para animais no piso térreo, em Ermida, às portas da sede de concelho, Tondela. Ali, num dos municípios com mais casas consumidas pelas chamas – quase 400, de primeira ou segunda habitação e devolutas, dados da autarquia – a idosa não esconde a satisfação pelo novo lar, agora só de um piso, construído de raiz.
“É baixinha e não é nada como a que eu tinha, mas estou contente. Sempre me a fizeram, ao menos não fico na rua. Gosto mais porque é rasteirinha para eu poder viver e mexer-me, porque se fosse alta custava mais a subir as escadas”, declarou.
“Fiquei prejudicada, mas graças a Deus sempre me fizeram um teto para eu viver”, notou Maria da Piedade, lembrando que a habitação original “era muito maior”, mesmo se a reconstrução incluiu um anexo, compensando a área perdida com a passagem do edifício principal para apenas um piso térreo, com cozinha aberta à sala, um quarto e casa de banho.
“Não ficou nada prejudicada com o que se passou, antes pelo contrário. Tem aqui uma casa muito mais prática para a idade dela”, contrapôs o filho Júlio, que, com a irmã Leonor, acompanhou sempre a mãe, “ora em casa de um, ora em casa de outro” ao longo de quase dois anos, até Maria da Piedade ter recebido, em julho, as chaves na nova habitação, uma das 121 construídas de raiz ou reconstruídas quase na totalidade em Tondela.
“O que efetivamente ninguém paga é o valor sentimental, não ficou com um único pedaço para se recordar”, enfatizou Júlio, que agora testemunha o regresso de Maria da Piedade à normalidade possível.
Ainda em Ermida, mas mais afastada do centro da aldeia, Encarnação Marques, de 71 anos, recebe a reportagem da Lusa também na sua casa nova. Logo para começo de conversa, enaltece as alfaces semeadas no estreito canteiro que ladeia o muro da casa e que partilham o espaço com uma fileira de jovens cedros.
Do alpendre, a vista alcança povoações em redor, campos agrícolas, mas também os restos da floresta que por ali existiu.
Fica a ideia de que Encarnação, vestes de negro cerrado e com os filhos emigrados longe, mais do que esperar que os cedros cresçam para, como diz, ficar a salvo dos olhares exteriores quando se senta à soleira da porta, pretende isolar-se no seu novo canto, remoendo, ainda hoje, a tristeza de ter perdido o marido, de doença súbita, pouco tempo depois dos incêndios de outubro de 2017.
“Gosto da minha casa e estou contente com a casa. Falta-me cá é a minha primeira companhia, é só isso que me faz mais tristeza”, afirmou, emocionada, a idosa.
“Estou bem, a casa é jeitosa, é rés-do-chão, também já não tenho forças nas pernas para subir, estou contente”, acrescentou.
Para além da dor de perder a casa e tudo o que nela tinha, Encarnação Marques suportou, ao longo do período “muito longo” de quase dois anos em que esteve sem casa própria, o calvário (inimaginável para quem mora em meio urbano, com transportes públicos) de ter de se deslocar “todos os dias, a pé” da casa de uma filha numa localidade próxima, onde passou a residir.
Ao todo, seis quilómetros, ida e volta, “uma hora de caminho para baixo, outra para cima”, para tratar dos seus animais “que não tinham morrido” no incêndio.
De Tondela para Tábua, no vizinho distrito de Coimbra, há quem ainda hoje continue sem casa e sem apoio para reconstruir. Como Rosa Peres, que se habituou ao longo de mais de 20 anos a chamar de sua a casa onde vivia com o marido e um filho com deficiência, até esta ser destruída pelas chamas.
Como, formalmente, a moradia é propriedade do pai de Rosa, conta como segunda habitação deste e o processo foi chumbado, a candidatura rejeitada, consequência de uma análise “inflexível” perante a letra da lei, denuncia Nuno Pereira, do Movimento Associativo de Apoio às Vítimas de Incêndios de Midões (MAAVIM).
A casa onde Rosa morava está tal e qual como no dia em que foi consumida pelo fogo, sem telhado, paredes despidas e um amontoado de pedras e ferros retorcidos no interior.
No local apenas se mantém uma pequena cadela a proteger, mais pelos latidos do que pela presença física, a ruína que restou, enquanto a família de Rosa – que tem o seu pai doente e a mãe, acamada, a cargo – ocupa uma casa emprestada por uma filha.
“Para a reconstrução desta [a casa onde Rosa residia] bastava fazer a aceitação da escritura para o nome da filha, neste momento o pai até já enviou esse documento a dizer que aceitava, porque fizeram isso a outras pessoas. É isso que não se compreende, aqui é um caso até de negligência, porque estamos a falar de uma família numa situação débil que até tem um miúdo com problemas, o que ainda é mais grave”, frisou Nuno Pereira.
“Tem que se cumprir a lei, é óbvio, mas depois tem de se vir ter com as pessoas para saber o que precisam e qual é a situação de cada um, porque é diferente”, assinalou o dirigente do MAAVIM.
Uns quilómetros mais adiante, quase na fronteira com o município de Oliveira do Hospital, há um íngreme caminho a descer, em terra batida, por onde Nuno Pereira conduz a reportagem da Lusa à propriedade de um casal belga, ali estabelecido há 21 anos.
Como centenas de outros proprietários em Tábua, Leen Van Melle e o marido, ambos reformados, viram a sua casa, localizada no sopé da encosta, “no melhor sítio do mundo”, desaparecer com as chamas.
Com a diferença que, face à burocracia nacional, o casal optou por reconstruir a habitação com meios próprios e a indemnização recebida da seguradora, fugindo assim à tipologia e ao tipo de construção imposto pelo plano de reconstrução.
A casa, em pedra grossa, ainda está longe de estar concluída e Leen, depois de ter passado quase um ano a viver com o marido numa tenda a lembrar as dos índios norte-americanos, acabou por construir, à mão, um abrigo em adobe – técnica que envolve a utilização de terra, misturada com cal e água – onde ambos residem provisoriamente, rodeados de árvores mas longe de pinheiros e eucaliptos.
“Depois do fogo, vamos reconstruir a nossa casa. Tivemos sorte, tínhamos seguro e podemos reconstruir ao nosso gosto. Outras pessoas não, têm apoio, mas têm casas muito mal construídas e com materiais que não queriam. E agora temos uma nova floresta a crescer”, enfatizou.
Leen transborda energia e boa disposição e quando questionada pela Lusa onde vai buscar essa alegria, aponta a “flora muito bonita” da região que a acolheu, lembrando uma pequena flor cor-de-rosa que reapareceu na paisagem “cinzenta” logo após os incêndios de 2017 e se transformou em panaceia contra esses tempos de “energia muito baixa”.
“A flora diz tudo. Só precisa de sol, bom ar, água e amigos, muitos amigos. É muito importante”, argumentou.
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