Este Natal a Rainha de Inglaterra não compareceu às missas habituais, em Sandringham. Todos os anos, desde tempos imemoriais, e certamente desde que Isabel II subiu ao trono, em 1953, que a família real se retira para férias de Inverno na sua propriedade em Norfolk, na costa leste da ilha. Vão todos à missa, nos dias de Natal e de Ano Novo, a pé do palácio de inverno para a igreja, num cortejo informal observado por centenas de súbditos que não perdem esta oportunidade de ver os “Royals” à distância de um tiro de pistola.
Com 90 anos, Isabel II estava com aquela gripe que este ano derrubou muita gente, sem consideração pelo estatuto real ou plebeu - “uma constipação persistente”, como afirmou o comunicado oficial do Palácio de Buckingham. Há 28 anos que Sua Alteza não faltava, e começaram logo os comentários sobre o estado de saúde da senhora. O digníssimo esposo, Duque de Edimburgo, com 95, também se encontra debilitado, mas compareceu. Desde 9 de Dezembro que Isabel não se via em público (voltou a aparecer agora, neste domingo, 8 de Janeiro), uma ausência rara no constante ritmo de aparições públicas que é seguido de perto pelo Reino.
Este fait divers poderia passar quase despercebido, não fosse o facto lembrar que Isabel II está a chegar a uma idade em que o seu reinado certamente se aproxima do fim. É o mais longo da História da Grã-Bretanha - em 2015 ultrapassou o recorde anterior, detido pela sua tetravó, a Rainha Vitória. Deste que foi coroada o mundo já conheceu cinco papas, numerosos monarcas e presidentes, e incontáveis chefes de Estado. É soberana do Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Também é a chefe da Commonwealth, que durante o seu reinado viu doze antigas colónias ganharem a independência. O seu desaparecimento neste momento provocaria um factor de grande instabilidade no país, a braços com a indefinição do Brexit, o nacionalismo escocês, a crise da imigração, a rotura iminente dos serviços sociais, o aumento da criminalidade e tantos outros factores de preocupação para o cidadão comum.
O mais interessante no sistema político britânico é que todo o poder da Rainha advém do facto de ela não ter poder nenhum. Ou seja, não pode tomar nenhuma decisão política, nem sequer emitir a sua opinião sobre as decisões dos outros poderes sem autorização expressa. O discurso anual da Coroa - uma versão britânica do “Estado da Nação” - é escrito pelo Primeiro-Ministro. O papel é essencialmente simbólico e as suas funções institucionais consistem em estar presente em determinadas alturas e representar o Reino Unido no estrangeiro. Uma espécie de Relações Públicas de luxo. Paradoxalmente, esta figura decorativa representa a coesão do país e nela se personifica a identidade britânica. O seu desaparecimento, quando acontecer e mesmo que logo substituída pelo sucessor natural, terá repercussões políticas e práticas muito para lá do que se poderia esperar de alguém sem poder directo no funcionamento do aparelho de Estado.
Quando nasceu, em 1929, Isabel nem era para ser rainha. É filha dos Duques de York, ele irmão do rei Eduardo VIII. Quando Eduardo abdicou da coroa, em 1936, para se casar com uma plebeia americana, Wallis Simpson, o Duque era o seguinte na sucessão, tendo sido coroado como Jorge VI - o rei gago que vimos no cinema tão bem representado por Colin Firth. Isabel, sendo a mais velha, passou automaticamente para sucessora e começou a ser preparada. Depois da II Guerra Mundial, em 1947, arranjaram-lhe um marido na realeza, como então era de praxe: o Príncipe Filipe, das casas reais da Grécia e da Dinamarca. Em 1953, com a morte de Jorge VI aos 56 anos - era grande fumador e desenvolveu um cancro na garganta - foi aclamada Rainha e o marido recebeu o título de Duque de Edimburgo.
Durante o longo reinado de Isabel os costumes tradicionais sofreram grandes alterações a que ela nem sempre se adaptou com facilidade. Logo em 1954, a sua única irmã, Margarida, apaixonou-se por um plebeu, ainda por cima divorciado, e as duas incompatibilizaram-se, com a opinião pública dividida sobre quem teria razão. Margarida acabou por casar com outro plebeu mais aceitável, mas esse escândalo foi apenas o primeiro de uma longa série de percalços sentimentais que afectaram a família real, sendo o mais famoso o namoro do herdeiro do trono, Carlos, com Camila Parker Bowles enquanto era casado com Diana, a princesa que captou a simpatia da opinião pública britânica.
Períodos houve em que a popularidade da casa real esteve seriamente afectada pelos escândalos constantes que os insaciáveis tablóides ingleses descobriam ou sugeriam, mas Isabel manteve sempre uma boa imagem pública. Nos últimos anos, a sua popularidade tem vindo a aumentar, ao sentir-se que também ela se adaptou aos novos tempos e tomou uma atitude mais compreensiva em relação aos percalços de relações públicas em que a família é perita.
Porque relações públicas é, afinal, a grande missão da casa real britânica. Não podendo ser avaliados pelas suas decisões, terão de ser pela sua simpatia, pelo modo como representam um ideal de britanicidade que, como todos os ideais, é vago e forte ao mesmo tempo. O Império há muito que acabou, o Reino Unido enfrenta problemas internos e externos cada vez mais mal resolvidos pela alternância de governos trabalhistas e conservadores, e é na casa real que os britânicos identificam esse sonho.
E aqui é que a sucessão de Isabel apresenta problemas. Carlos é sem dúvida uma figura muito impopular, não só pela sua vida privada mal vista como também pela tendência de fazer aquilo que não pode, emitir opiniões sobre tudo e mais alguma coisa, desde arquitectura a cinegética. Se for ele o sucessor da mãe, certamente que a instituição monárquica sofrerá um abalo - há republicanos no Reino Unido, a começar pelos escoceses - e com a instituição também sofrerá a imagem imperial a que os ingleses tanto se apegam.
A solução seria passar directamente para o neto de Isabel, Guilherme, jovem, simpático, casado com uma mulher encantadora, Catarina, e com dois filhos que parecem tirados dos livros infantis da década de 1950 - loiros, rosados, apetitosos.
Mas essa passagem só será possível se Carlos abdicar da sucessão - a rainha não pode tomar essa decisão. O Governo ou o Parlamento também não. Ora, não é de todo claro que Carlos tenha essa intenção. Considerado pedante e superficial, o Príncipe de Gales será um dia chamado para o lugar - e as casas de apostas inglesas, que aceitam palpites sobre qualquer coisa, avaliam esta hipótese como mais forte do que Guilherme. As apostas estão presentemente em 11 para Carlos contra 4 para Guilherme.
Mas a Rainha ainda está viva. Foi apenas uma gripe, decerto tratada com os melhores cuidados que existem no mundo. Isabel, a mais antiga e mais popular soberana do planeta, ainda pode assistir a muitos acontecimentos históricos.
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